O governo vai entrar no combate à inflação, prometeu o ministro da Fazenda, Guido Mantega, ao anunciar, com quase dois meses de atraso, a meta fiscal para 2014, uma economia de R$ 99 bilhões para o pagamento de juros da dívida pública. Com atraso muito maior - três anos ou mais - ele reconheceu, ao apresentar uma decisão política, a importância de uma boa gestão orçamentária para a estabilidade dos preços. A economia prometida é o chamado superávit primário, o dinheiro posto de lado para os compromissos financeiros. A contenção de gastos, segundo o ministro, ajudará a frear a alta de preços e abrirá espaço para uma política monetária "menos severa", isto é, menos focada na alta de juros, como tem sido, de novo, desde abril de 2013.
Há dois anos e meio, no fim de agosto de 2011, os dirigentes do Banco Central (BC) cortaram a taxa básica, a Selic, e iniciaram uma fase de afrouxamento, só interrompida em abril do ano passado. Uma de suas alegações para iniciar os cortes foi a previsão de austeridade fiscal no ano seguinte. A outra foi a expectativa de acomodação dos preços internacionais das commodities. As duas apostas foram erradas. Mas o erro maior foi, sem dúvida, a confiança na condução mais séria das finanças federais.
A insistência no erro, até os primeiros meses do ano passado, erodiu a confiança na política monetária e comprometeu a imagem do BC como entidade autônoma de fato, embora formalmente subordinada à Presidência da República. Com a inflação desembestada e a inegável crise de credibilidade, o Comitê de Política Monetária (Copom) decidiu enfim voltar à velha política e iniciar uma nova alta de juros. Será ainda capaz de manter essa orientação? A taxa básica, hoje 10,5%, deverá chegar a 11,25% ainda este ano, segundo as previsões coletadas no mercado pelo BC no dia 14, na pesquisa Focus. Mas pelo menos uma parte dos analistas parece ter adotado novas expectativas depois do anúncio da meta fiscal, na quinta-feira.
Previsões de uma política monetária mais branda começaram a difundir-se logo em seguida. O alcance dessa mudança deve ser conhecido quando o BC divulgar, na segunda-feira, a nova pesquisa semanal. Mas o mais importante é saber se os dirigentes do BC, membros do Copom, vão novamente demonstrar confiança nas promessas de uma política orçamentária mais cuidadosa e responsável, especialmente num ano de eleições e de muita pressão por gastos e favores.
A nova programação orçamentária, disse o ministro da Fazenda, foi elaborada sem preocupação com objetivos eleitorais. Pode ser. Desde o começo do ano o governo tem procurado reconquistar a confiança e a boa vontade dos mercados e eliminar o risco de rebaixamento da nota de crédito do Brasil. Foi esse o principal objetivo da viagem da presidente Dilma Rousseff a Davos, em janeiro, depois de esnobar por três anos o Fórum Econômico Mundial. O risco permanece, porque o governo ainda terá de mostrar sua seriedade na prática, isto é, na execução da política fiscal, pelo menos durante alguns meses. Os avaliadores de crédito provavelmente ficarão à espera dessa demonstração, antes de consolidarem uma opinião sobre a nova política.
Mas a presidente e sua equipe vão precisar de muita firmeza para seguir o rumo da austeridade - ou, mais provavelmente, um rumo um pouco mais austero que o dos últimos três anos. A base parlamentar do governo tem estado notavelmente indócil, cobrando mais postos na administração federal e mais atenções. A reunião de líderes da base num jantar em Brasília, com participação do presidente da Câmara, deputado Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN), foi suficientemente difundida para eliminar qualquer dúvida sobre o assunto. Os aliados querem muito mais e podem criar problemas para a presidente.
Os grupos de oposição, apesar de sua indiscutível incompetência, também podem criar problemas, cobrando, por exemplo, liberação mais ampla de verbas para as emendas orçamentárias. O corte dessas verbas é parte do programa de austeridade prometido pelo ministro da Fazenda. A oposição hoje se distingue da base aliada principalmente pela espantosa inépcia no planejamento e na execução de suas ações. Quanto ao fisiologismo e à concepção pífia da função parlamentar, é difícil encontrar alguma diferença entre os dois grupos.
Além dessas pressões, o governo terá de enfrentar uma porção de problemas técnicos para produzir o resultado fiscal prometido. Não se sabe, ainda, como as contas do Tesouro serão afetadas pelo aumento do custo da energia. Se o governo insistir em subsidiar o consumo, a despesa poderá ir muito além dos R$ 9 bilhões previstos no Orçamento. Além disso, o superávit primário dependerá, mais uma vez, de receitas extraordinárias - no mínimo, R$ 13,5 bilhões resultantes de concessões, segundo se anunciou.
Por todos esses fatos, e também porque a inflação continua vigorosa e inquietante, seria uma imprudência o BC afrouxar sua política, apostando mais uma vez na contribuição da política fiscal. Não se deve menosprezar a prévia da inflação de fevereiro. O IPCA-15, com a mesma estrutura do Índice de Preços ao Consumidor Amplo, subiu 0,7% entre o meio de janeiro e o meio deste mês. A apuração do mês anterior havia mostrado 0,67%. O acumulado em 12 meses ficou em 5,65%. O detalhe mais importante do mês talvez seja o indicador de difusão: houve aumento em 70,4% dos itens. Foi uma taxa menor que a de janeiro (75,1%), mas ainda muito alta. Não se trata de pressões localizadas em alguns preços, mas de um movimento de alta ainda muito amplo.
Não é hora de afrouxar a política anti-inflacionária. Se a gestão fiscal ajudar, tanto melhor. Mas o BC já errou uma aposta, há mais de dois anos, e o Brasil pagou caro - literalmente - por esse engano, com uma humilhante combinação de economia estagnada, contas públicas em deterioração e inflação alta, muito mais alta que a dos países concorrentes.
*Rolf Kuntz é jornalista.
Fonte: O Estado de S. Paulo