- O Estado de S.Paulo
Nos anos 70 do século passado Enrico Berlinguer, talvez o último grande dirigente do comunismo histórico, extraía para seu país, a conturbada Itália, uma lição advinda da tragédia de Salvador Allende na então distante América Latina. Impossível traçar, dizia Berlinguer, uma estratégia de superação das contradições mais agudas de uma sociedade – qualquer que fosse ela, mas especialmente as sociedades mais desenvolvidas – se a nação estivesse partida, digladiando-se ferozmente em metades inconciliáveis. Não bastaria à esquerda ter 50% mais um dos votos do eleitorado para levar adiante suas propostas: o apoio teria de ser mais amplo, as motivações, mais argumentadas e, particularmente, nenhuma dúvida poderia pairar sobre a obediência estrita das principais forças mudancistas às exigências da democracia política.
Não importa que a História se tenha mostrado bem mais imprevisível do que um político sofisticado como Berlinguer podia admitir com sua generosa estratégia de compromisso entre todos os democratas, muito além dos muros da cidadela da própria esquerda. O dado essencial a ser aqui considerado é que a partir de então, se dúvida havia, nenhuma esquerda podia mais pôr em questão o fato de que, para se credenciar a um papel dirigente, de nada lhe valeria colocar-se fora da dialética democrática em seu sentido mais estrito – a validação dos resultados eleitorais, a legitimação conferida aos adversários, a admissão da alternância no poder. Estratégias ou palavras de ordem inutilmente divisivas seriam pagas com o fracasso dos reformistas ou, pior ainda, com a perda da noção de um terreno comum a todos os cidadãos e definidor dos patamares mínimos de convivência.
O PCI de Berlinguer, a propósito, pisava em campo minado, que não podia ser transposto segundo a perspectiva da época. O sistema estava bloqueado nos termos da guerra fria. Havia o que se convencionou chamar de “sistema de poder” em torno dos democratas-cristãos e tal sistema se reproduziria aparentemente de modo indefinido, produzindo, entre outras coisas, o que os comunistas italianos não hesitavam em chamar de autêntica “questão moral” – e seus críticos viam como moralismo sem alcance estratégico. A ocupação do Estado pelos mesmos partidos, ainda que longe da patologia dos partidos-Estado do Leste Europeu, era causa de degradação dos costumes políticos e administrativos. E não podia prenunciar boa coisa. O bloqueio seria rompido menos pela política partidária do que pela irrupção clamorosa de uma operação judicial inédita até então, a qual, surpreendentemente, reverberaria no Brasil de nossos dias.
A ideia de que nos anos dourados do petismo se estava a gerar algo como um extraordinariamente resistente “sistema de poder” é uma boa pista a explorar. Episódios como o mensalão e o petrolão, entre outros, pareceram obedecer a uma lógica de ocupação numa escala desconhecida em nosso sistema político-partidário, que, diga-se de passagem, nunca se notabilizara pela transparência nos custos de campanha e no financiamento de suas atividades em geral. Havia aqui, como os autos indicam, “tenebrosas transações” entre empresas públicas, dirigentes partidários e grandes companhias privadas, capazes de gerar recursos para campanhas eleitorais com custos fora de qualquer controle – e os inevitáveis desvios colaterais para bolsos privados.