*Kamala Harris, candidata a vice na chapa de Joe
Baden
Política e cultura, segundo uma opção democrática, constitucionalista, reformista, plural.
terça-feira, 3 de novembro de 2020
Opinião do dia - Kamala Harris*
Merval Pereira - Relações carnais
Acompanhei
de Nova York a eleição em 2008 que fez de Barack Obama o primeiro presidente
negro dos Estados Unidos. Me lembro da festa nas ruas, do clima de esperança
que a eleição de Obama transmitiu. O candidato republicano, John McCain, um
herói de guerra, teve comportamento exemplar durante a campanha.
Oito
anos depois, com a vitória de Donald Trump sobre Hillary Clinton, Obama fez um
belíssimo discurso, uma aula de democracia. “Esta é a natureza da democracia.
Às vezes é duvidosa e barulhenta, muitas vezes não é inspiradora. Quando o povo
vota e perdemos a eleição, aprendemos com nossos erros, fazemos reflexões. E
voltamos ao jogo. O importante é que sigamos em frente, com a presunção de
boa-fé dos nossos cidadãos. (…) Vou fazer tudo para que o próximo presidente
tenha sucesso, porque, no final, estamos no mesmo time”.
Nada
parecido espera-se para esta eleição de hoje, que o mundo inteiro acompanha com
tanta ou mais expectativa de quando o primeiro negro foi eleito presidente dos
Estados Unidos. Quebrou-se ali simbolicamente uma barreira racial, embora na
prática o racismo continue sendo um dos maiores dramas da maior potência
mundial, causa de assassinatos que, de tempos em tempos, horrorizam o mundo e
indignam a comunidade negra, que se sente ameaçada e perseguida pela polícia.
Hoje,
mais do que em 2008, está em jogo a própria democracia americana, com o
presidente Donald Trump ameaçando não reconhecer uma provável vitória de Joe
Biden, o candidato democrata que foi vice de Barack Obama. Uma derrota de Trump
terá reflexos na política de meio-ambiente internacional, na política de
direitos humanos, na própria economia mundial.
Míriam Leitão - Negros, latinos e jovens decidem
A
eleição americana, que hoje tem seu dia D, está sendo marcada pelo acirramento
do conflito racial. Foram mortes em série, desde George Floyd, e manifestações
constantes. O que agravou a tensão foi a atitude do presidente Donald Trump de
não manifestar solidariedade às vítimas e ainda se recusar a condenar grupos
supremacistas brancos. O voto dos negros sempre foi majoritariamente contra os
republicanos. Negros, latinos e jovens serão decisivos, indo ou não indo votar.
Os
latinos também votam mais azul que vermelho, mas numa proporção menor que os
negros. O banco de dados da Universidade de Cornell registra que, em 2016, 89%
dos eleitores negros votaram na candidata democrata e 66% dos latinos. Juntos,
negros e latinos são 34% do eleitorado. O grupo latino é tratado como unidade
apenas para efeito estatístico, mas é muito heterogêneo. Há uma enorme
diferença entre um brasileiro que foi para Nova York, um cubano de Miami ou o
mexicano da Califórnia.
Bernardo Mello Franco - O Trump deles e o nosso
Em
julho de 2019, Donald Trump definiu o presidente Jair Bolsonaro, logo ele, como
um “grande cavalheiro”. “Dizem que ele é o Trump do Brasil. Eu gosto disso. É
um elogio!”, acrescentou.
O
republicano poderia ter economizado a última parte. Vaidoso e egocêntrico, ele
batizou torres comerciais, condomínios, hotéis, resorts e campos de golfe com o
próprio nome. Seria estranho se não gostasse de alguém tão empenhado em
imitá-lo.
Desde
a campanha, Bolsonaro faz de tudo para ser comparado a Trump. Ele já copiou os
tuítes destrambelhados, as teorias conspiratórias, as provocações à China e os
ataques à imprensa. Só faltou besuntar o rosto com aquela pasta laranja.
Truques
lançados lá foram repetidos à exaustão por aqui. Um dos mais manjados foi
tachar de fake news qualquer
notícia incômoda para o governo. Outro foi ressuscitar o fantasma do comunismo,
como se o Muro de Berlim ainda estivesse de pé.
Pablo Ortellado* - Eleições nos EUA pautam o futuro da esquerda
Vitória
de Biden deve dar alento a estratégias eleitorais mais centristas; derrota vai
estimular correntes à esquerda
Joe
Biden construiu sua carreira política promovendo o diálogo bipartidário no
Congresso —ficou conhecido como um político
de centro que sabia compor com os republicanos quando necessário. Sua
candidatura à Presidência é uma aposta do Partido Democrata de que é mais
viável uma candidatura de centro que tenha apelo a uma base mais larga de
eleitores do que uma candidatura mais à esquerda que mobilize e estimule o
eleitorado.
Por
isso, uma vitória de Joe Biden terá grande repercussão sobre as estratégias
eleitorais da esquerda, inclusive fora dos Estados Unidos, reorientando o
debate que teve início quando Hillary Clinton foi derrotada por Trump em 2016.
A
esquerda do Partido Democrata argumenta que a vitória de Trump em 2016 se deveu
à concorrência com uma candidata centrista e pró-establishment, fria e sem
grande apelo com o eleitorado. Ela argumenta que Bernie Sanders, o principal
adversário de Hillary nas primárias, oferecia melhores respostas para os
problemas sociais e ambientais do país e que o engajamento que sua campanha
produziria aumentaria o comparecimento às urnas.
Cristina Serra - O mundo sem Trump
Sua
derrota ajudaria a resgatar um pouco de esperança
Nunca
uma eleição
foi tão crucial para os EUA, o mundo e o Brasil. A derrota de Trump é a
única opção para os que se preocupam com a democracia e o bem-estar da
civilização. Sua política criminosa de separar crianças de seus pais imigrantes
já seria motivo suficiente para desejar não só seu malogro como sua prisão por
crime de lesa-humanidade.
Mas
ele vai além, ao corroer a democracia aos poucos e por dentro, como cupim.
Trump desacredita eleições, regras e instituições. Mente e agride. Estimula
grupos racistas e milícias, investe na violência e no caos, semeia ódio.
Esticou a corda a tal ponto que se aventa a possibilidade de conflitos armados
nas ruas caso não vença. Quem diria, os EUA com vapores de república bananeira?
Hélio Schwartsman - Uma eleição paradoxal
Quanto
mais avançada uma democracia, menos importantes os resultados eleitorais
Quanto
mais avançada é uma democracia, menos importantes são os resultados eleitorais.
O paradoxo tem uma explicação. Para o regime funcionar bem, isto é, para que a
alternância se dê de forma pacífica, é preciso que os custos para o grupo que
deixa o poder sejam mínimos.
Para
tanto, é necessário que a troca de comando não produza resultados irreversíveis
nem mesmo muito dramáticos. Não é que a democracia rejeite mudanças, mas elas
precisam vir em doses moderadas, para que não seja mais tentador para quem
perde a eleição agarrar-se ao poder pela força do que ir para a oposição e
depois voltar pelo voto.
Os EUA são uma democracia avançada, mas, ao contrário da maioria dos pleitos anteriores, o resultado de hoje faz enorme diferença. O que está em jogo não é apenas a possível alternância entre um programa mais à esquerda e um mais conservador, mas sim entre um candidato que sempre se pautou pelas regras da democracia e outro que, no poder, passou os últimos quatro anos testando seus limites. Pior, um candidato que se recusa até mesmo a comprometer-se em aceitar os resultados da eleição se estes não lhe forem favoráveis.
Eliane Cantanhêde - Falando sozinho
Risco
de derrota de Trump é bom para mundo, EUA e Brasil, mas péssimo para Bolsonaro
Os
eleitores norte-americanos não estão decidindo entre o republicano Trump e o
democrata Joe Biden,
mas, sim, fazendo um plebiscito, a favor ou contra Trump, estivesse quem
estivesse do outro lado. Casou de ser Biden, com uma vice poderosa, Kamala Harris, mulher, negra, filha de
imigrantes e defensora ardorosa dos princípios que dão sustentação à democracia
americana: direitos humanos, igualdade, justiça.
Trump usou o “America First” para escamotear o “só America, dane-se o resto” e bombardear o multilateralismo, a começar da ONU, da Organização Mundial do Comércio (OMC) e da Organização Mundial da Saúde (OMS), em plena pandemia. Se confirmado presidente, Biden retornará ao Acordo de Paris e a todas elas. Para alívio geral, menos para regimes populistas de extrema direita, como os da Hungria, Polônia e Brasil, que ficarão isolados.
Luiz Carlos Azedo - O que está em jogo
A
maioria das pesquisas aponta a vitória de Biden, mas há cenários em que é
possível a reeleição de Trump, mesmo que a maioria dos eleitores tenha votado
no democrata
O
mundo acompanha com grande expetativa as eleições norte-americanas, com as
pesquisas de opinião apontando o favoritismo do democrata Joe Biden.
Entretanto, o presidente republicano Donald Trump não se deu por vencido e
trabalha abertamente para melar o resultado das eleições. Faz uma aposta no
tapetão da Suprema Corte, cuja maioria é bastante conservadora, prometendo
judicializar o pleito. Deseja questionar os votos por correspondência e não
pretende aguardar o resultado final da apuração das urnas, declarando-se
vencedor, caso nas primeiras 24 horas de contagem dos votos esteja em vantagem
em relação a Biden.
Ontem,
mais de 90 milhões de cidadãos norte-americanos já haviam votado e são
exatamente os votos dos últimos dias, que vão se somar aos de hoje, que
retardarão o resultado da contagem. A maioria das pesquisas aponta a vitória de
Biden, mas há cenários em que é possível a reeleição de Trump, mesmo que a
maioria dos eleitores tenha votado no democrata. Porque eleição do presidente
dos Estados Unidos se dá num colégio eleitoral, cujos delegados são eleitos em
bloco nos estados, não importa a proporcionalidade de votação dos candidatos.
Simplesmente, quem ganha a votação no estado indica todos os seus delegados.
Ricardo Noblat - Ganhe Trump ou Biden, a eleição de hoje já passou à história
Nunca
tantos votaram tão cedo
A
eleição presidencial norte-americana de 2020 já garantiu seu lugar na história.
Em um país onde o voto não é obrigatório, até o final da tarde de ontem,
pessoalmente ou pelo Correio, 97,6 milhões de pessoas já haviam votado. Isso
significa mais de dois terços do número total de votos apurados na eleição de
2016.
No
último dia de campanha, na maioria dos cinco comícios que fez em quatro
Estados, o presidente Donald Trump atacou a Suprema Corte onde 6 dos 9
ministros são conservadores. Trump disse que tribunal pôs o país em perigo ao
permitir que a Pensilvânia aceite votos que chegarem pelo Correio após o dia da
eleição.
Segundo
Trump, a decisão da Suprema Corte foi política e poderá estimular manobras
fraudulentas dos seus adversários. No Twitter, escreveu que ela seria capaz até
de induzir “à violência nas ruas”. De imediato, o Twitter classificou as
afirmações do presidente como potencialmente falsas e alertou os seus usuários
para isso.
José Casado - O custo do amadorismo
Brasil
nunca foi e dificilmente será prioridade na agenda americana
O
resultado da eleição americana vai moldar a segunda metade do mandato de Jair
Bolsonaro. A embaixada em Washington tem procurado líderes republicanos e democratas
para reafirmar o interesse num amplo acordo econômico e de defesa com Donald
Trump ou Joe Biden.
Isolado,
com seu chanceler já oficializando a condição de “pária” no mundo, Bolsonaro
tenta garantir nos EUA uma apólice de seguro na travessia da crise global. Além
disso, passa noites insones devaneando na crendice de que as colunas da Casa
Branca ocultam o portal de “salvação do mundo” — como define o Itamaraty — da
força da China.
O
Brasil nunca foi e dificilmente será prioridade na agenda americana. Mas
Bolsonaro se oferece, propenso a pagar o sobrepreço inerente ao notável
amadorismo diplomático.
Carlos Andreazza - Água dura em pedra mole
Jair
Bolsonaro é um autocrata em busca de brechas
Não
dará em coisa alguma (agora). Mas importa examinar o padrão; sobretudo se o
leitor estiver entre os que acreditam que água mole em pedra dura tanto bate
até que fura. Não sendo irrelevante considerar que a pedra talvez não seja tão
dura; e que a água tenda a endurecer depois, por exemplo, de uma reeleição.
O
padrão: todo governo de natureza autoritária, tanto mais se com dificuldades
(por razão de incompetência) em tocar agenda, solta balões de ensaio para
testar campo a uma nova Constituição. Tem sido assim no Brasil. Um país de
cultura constitucional inexistente, vazio propício a que governantes
populistas, com compreensão utilitária da República, especulem frequentemente
sobre um processo constituinte que resultasse em conjunto de leis a lhes facilitar
a vida.
O
faro oportunista-personalista de que a ocasião possa fazer Constituição deriva
da deturpação antiliberal segundo a qual Constituição seria estorvo. O espírito
do tempo é autoritário, empecilho também sendo a democracia representativa. A
mentalidade, patrimonialista, donde a busca por legislação desamarrada da
impessoalidade republicana.
Jair
Bolsonaro é um autocrata em busca de brechas. O populismo de oportunidades aí
só está, em fase influente, porque houve Fabrício Queiroz e Alexandre de Moraes
(com seu inquérito inconstitucional) para desacelerar o motor golpista. (Que
voltará a girar.) Só por isso Ricardo Barros, o proponente de turno da
Constituinte, é líder do governo na Câmara. Ele é a busca por brechas ora
possível ao presidente — e, diante da baixa adesão à sua ideia de nova
Constituição, sempre poderá recorrer ao “falava por mim quando a apresentei”.
Joel Pinheiro da Fonseca* - Nas urnas, a vitória é brasileira
Em
termos de mecânica democrática, o Brasil dá de 7x1 nos EUA; nossa urna
eletrônica é simples, segura e rápida na apuração
Aguardamos
ansiosos o início da apuração americana na noite desta terça-feira (3). Muitos
brasileiros torcem por Biden, que as pesquisas dão como favorito. Só não abra o
champanhe ainda. Ninguém ganha eleição de véspera. E, além disso, o gás já vai
ter acabado quando o resultado definitivo for finalmente computado e
oficializado.
Em
termos de mecânica democrática, o Brasil dá de 7x1 nos EUA. Nossa urna
eletrônica é simples, segura e rápida na apuração. A Justiça Eleitoral
garante que a organização e contagem dos votos fique acima das disputas
políticas.
Assim
que se contabilizam os resultados, resta aos candidatos apenas aceitar. Bolsonaro
bem que tentou atacá-las, mas até agora o populismo brasileiro foi inócuo
contra a confiança nas urnas.
Nos
EUA, a coisa é diferente. O sistema eleitoral descentralizado, com regras do
século 18 e que fica nas mãos da política local é prato cheio para o populismo.
As dificuldades impostas para se registrar como eleitor e o fato de se ter que
votar em dia de semana —sem justificar a falta no trabalho— dificultam o voto
para os mais pobres (não raro, negros) em muitos estados.
Paulo Hartung* - Cidades inteligentes, sustentáveis e humanas
Que
estas eleições sejam mais um passo para fortalecer os valores humanísticos.
Em
poucos dias o País vai às urnas para o primeiro turno das eleições municipais.
Trata-se de um pleito marcado por peculiaridades importantes. A primeira é que
ocorre em meio a uma pandemia agoniante e terrível nos planos sanitário e
socioeconômico, exigindo novos protocolos num dos momentos mais desafiantes
para as atuais gerações.
Estamos
testemunhando o fim das coligações proporcionais, o que deve mudar o quadro
partidário nacional, algo necessário e urgente. Há ainda o aumento da inserção
de movimentos cívicos. O voto é importante, mas não se encerra aí a
participação da sociedade civil. Nestas eleições podemos destacar candidaturas
oriundas de iniciativas dedicadas a estimular e formar jovens para o mundo da
política, como o Livres, o Raps e o RenovaBR.
Só
a partir do RenovaBR se colocaram 1.032 candidatos, sendo 115 a prefeito, filiados
a 29 dos 33 partidos brasileiros, em 398 cidades de todos os Estados. É um
esforço para preencher o enorme vazio de lideranças no nosso país. A esperança
é que os partidos se inspirem e assumam também a formação de novos quadros.
Luiz G. Belluzzo e Elias Jabbour* - A China e seus 50 anos em 5
No
Brasil, o governo está obcecado com a cor do gato. Se o gato é capaz de caçar
ratos, isso não interessa
O
professor Yu Yongding observou, recentemente no Valor (“A estratégia de
‘dupla circulação’ da China, 30/09/2020) que “a politica de dissociações e
ações do governo Trump deixaram a China sem escolhas a não ser dobrar a ligação
do crescimento econômico com a demanda doméstica, para garantir uma posição
sólida nas cadeias globais de valor”. Eis um raciocínio. Por outro lado, ainda
na chamada “geoeconomia”, o prestigiado professor Lanxin Xiang, autor de um
verdadeiro best seller lançado recentemente (“The Quest for Legitimacy in
Chinese Politics”, Routledge) tem sintetizado um grande debate que ocorre nos
círculos intelectuais chineses sobre o abandono, por Xi Jinping, do conselho
original de Deng Xiaoping de que a China deveria esperar seu tempo e manter um
perfil discreto.
O
que determinadas discussões acadêmicas sobre a China acabam não levando em
consideração é que Deng Xiaoping, um homem capaz de apontar o dedo no horizonte
como poucos no século XX, não poderia prever duas ordens de acontecimentos,
inter-relacionados: 1- A financeirização das economias ocidentais tornou muito
mais instável a instabilidade sugerida por Hyman Minsky, o que suscitou ameaças
à legitimidade das chamadas “democracias liberais” e 2- A China simplesmente
aproveitou as brechas históricas abertas diante de si para avançar em
velocidade máxima, tanto nos caminhos das cadeias globais de valor quanto nos
territórios econômicos externos.
Os
chineses partem para a execução de seu 14º Plano Quinquenal, em meio a
instabilidades e incertezas, apetrechados dos recursos institucionais e
políticos para arrostar as ameaças à paz sonhada por Deng para o
desenvolvimento do país. O que poderia ocorrer somente em 2049 foi antecipado
em quase 30 anos.
Os
“neo-institucionalistas” Douglas North, Daron Acemoglu e outros, insistiram em
previsões equivocadas a respeito do destino da China ao ignorar as peculiaridades
do arranjo institucional construído pacientemente depois das reformas iniciadas
no crepúsculo dos anos 70. Hoje, essas instituições peculiares se preparam para
mais uma resposta que pode botar de queixo-caído os profetas da desgraça.
O QUE A MÍDIA PENSA – Opiniões / Editoriais
Eleição
americana é decisiva para o futuro dos Estados Unidos, do Brasil, do planeta —
e da democracia
‘Uma República, se puderem mantê-la.’ Com tais
palavras, Benjamin Franklin definia, ao final da Convenção da Filadélfia, o
sistema de governo criado pela Constituição escrita naquelas semanas de 1787 —
que resultaria, nas 23 décadas seguintes, na democracia mais longeva, mais
próspera e mais bem-sucedida do planeta. Nunca a manutenção daquela República
esteve tão em xeque quanto na eleição de hoje, transformada numa espécie de
plebiscito em que os americanos escolherão se ficam com Donald Trump no poder
ou o trocarão pelo democrata Joe Biden.
O
comparecimento promete ser recorde. Pelo menos 98 milhões, ou 71% do
eleitorado de 2016, já haviam votado pelo correio ou pessoalmente até ontem. No
Texas, um dos estados mais disputados, a votação antecipada já superava a de
quatro anos atrás na última sexta-feira. Num país onde o voto é facultativo,
tamanho engajamento em plena pandemia dá uma dimensão do que está em jogo.
Uma
vitória de Trump traria não apenas uma surpresa maior do que quando ele
desafiou todas as previsões e derrotou Hillary Clinton. Não é exagero afirmar
que seria a maior ameaça já vista àquele sistema descrito por Franklin. A
reeleição de um presidente cujo comportamento nada republicano guarda ecos dos
monarcas e autocratas lançaria o país, nas palavras do analista Michael Hirsh,
“como mais um dejeto na pilha de cinzas das repúblicas fracassadas que se
estende à Grécia e Roma antigas”. Os Estados Unidos se tornariam, segundo o
cientista político Eliot Cohen, “não um estado fracassado, mas uma visão
fracassada, uma potência em declínio cujo tempo passou”.
Quem
quer que vença —pode levar semanas até sabermos —, as feridas permanecerão
abertas num país rachado ao meio, onde o fantasma da secessão continua a
assombrar. Além do terremoto interno, o resultado repercutirá em todo o
planeta. O isolacionismo de Trump fez recrudescerem o risco climático, a
proliferação nuclear, as disputas comerciais. Um segundo mandato traria um
divórcio mais duradouro dos europeus, um conflito mais acirrado com os chineses
e uma influência mais abrangente de atores perniciosos como Rússia ou Irã.
Poesia | Carlos Drummond de Andrade - O Amor bate na porta
Cantiga do amor sem eira
nem beira,
vira o mundo de cabeça
para baixo,
suspende a saia das mulheres,
tira os óculos dos homens,
o amor, seja como for,
é o amor.
Meu bem, não chores,
hoje tem filme de Carlito!
O amor bate na porta
o amor bate na aorta,
fui abrir e me constipei.
Cardíaco e melancólico,
o amor ronca na horta
entre pés de laranjeira
entre uvas meio verdes
e desejos já maduros.
Entre uvas meio verdes,
meu amor, não te atormentes.
Certos ácidos adoçam
a boca murcha dos velhos
e quando os dentes não mordem
e quando os braços não prendem
o amor faz uma cócega
o amor desenha uma curva
propõe uma geometria.
Amor é bicho instruído.
Olha: o amor pulou o muro
o amor subiu na árvore
em tempo de se estrepar.
Pronto, o amor se estrepou.
Daqui estou vendo o sangue
que escorre do corpo andrógino.
Essa ferida, meu bem,
às vezes não sara nunca
às vezes sara amanhã.
Daqui estou vendo o amor
irritado, desapontado,
mas também vejo outras coisas:
vejo corpos, vejo almas
vejo beijos que se beijam
ouço mãos que se conversam
e que viajam sem mapa.
Vejo muitas outras coisas
que não ouso compreender...