Alberto Carlos Almeida
DEU NO VALOR ECONÔMICO
O que tem a ver a sucessão em São Paulo e a eleição presidencial daqui a dois anos? Muitos vão dizer que se Marta Suplicy vencer em São Paulo será um enfraquecimento da candidatura José Serra. Outros mencionarão que, se Marta for eleita, ela tentará ser candidata a presidente, competindo com Dilma Roussef pela indicação do PT. Nada disso importa. O que há de importante na eleição de São Paulo e tem a ver com a eleição presidencial, seja qual for o vencedor, Marta ou Kassab, serão os mapas de votação. Tudo indica que eles mostrarão que o PT é muito forte na periferia, nas áreas mais pobres, e o PSDB e os Democratas nas áreas menos pobres da cidade.
Em 2002 a votação de Lula foi muito homogênea em todos os grupos sociais. Em 2006 a mudança foi grande: Lula foi muito mais votado entre os mais pobres e o candidato do PSDB mais votado, em termos relativos, entre os de renda mais elevada.
A principal marca do PT é a de partido que defende as pessoas mais pobres e necessitadas. Lula foi retirante, operário e sindicalista. Faz parte de uma nova elite de poder, uma elite que veio de baixo. Isso não é monopólio de Lula, grande parte do PT tem trajetória semelhante, ainda que poucos sejam ex-operários. O nome do partido traz a palavra "trabalhadores" e antes de chegar à Presidência as posições de Lula e do PT eram extremamente intransigentes na defesa dos interesses dos mais pobres. Desde sua fundação, nos anos 1980, até a vitória de 2002 foram aproximadamente 20 anos construindo uma marca, a marca de defesa do social.
Assim, é possível analisar a trajetória do PT antes de conquistar a Presidência da República exclusivamente como uma trajetória de comunicação: o PT construiu uma marca. Bateu-se insistentemente - e de forma intransigente - na mesma tecla: defesa de aumentos salariais reais, erradicação da miséria, caravanas da cidadania, enfim, toda sorte de discursos e de ações que colocassem o partido claramente ao lado dos mais pobres.
Em 2002, Lula foi eleito presidente. O que ocorreu desde então? A marca não se perdeu. O presidente e seu governo mantiveram a marca do partido: programas Fome Zero, Bolsa Família, ProUni, crédito consignado. Enfim, foram tomadas várias medidas para incluir os pobres no sistema bancário, universitário, no mercado de trabalho formal e coisas desse tipo. Os pobres agradeceram elegendo Lula novamente em 2006.
Não basta botar o ovo, é preciso cacarejar. Tudo o que o governo faz na área social, por menor que seja, é alardeado com vigor. Não estou afirmando que sejam programas abrangentes ou extremamente úteis. Interessa-me aqui, apenas, o efeito que isso tem na comunicação e na formação de imagem. Lula e o PT, mesmo com Aerolula, Mensalão, Lulinha, aumento dos gastos públicos e outras medidas e acontecimentos condenáveis e pouco consensuais, ainda com tudo isso, ambos conseguiram preservar e até mesmo exacerbar a imagem de partido comprometido com a população mais pobre.
Voltemos à eleição de São Paulo. A campanha de Paulo Maluf para a prefeitura, em que pese o fato de não ter chance de vitória e servir apenas para pôr o nome dele em evidência visando à eleição para deputado federal, é uma campanha das antigas, da época em que o social não era a prioridade. Maluf fala em obras, obras e mais obras. Fala das obras que fez e das que vai fazer. Foi-se o tempo em que um candidato era eleito em razão das obras viárias que fazia e prometia. Hoje, em São Paulo, será eleito aquele que for mais persuasivo no que tange ao tema social e mais especificamente no que diz respeito à saúde. Aquele que persuadir o eleitor que vai resolver o problema da saúde tende a vencer as eleições. Portanto, não será Maluf.
No passado, muitos pobres analfabetos não votavam. O voto do analfabeto foi permitido somente em 1988. No passado, os pobres que votavam eram mais conformados com o próprio destino do que são hoje. Eles não conectavam o voto à possibilidade de melhoria de vida. Era uma sociedade menos móvel, baseada mais na família e na comunidade local do que em qualquer outra instituição.
À medida que as pessoas aumentam a escolaridade, passam a ver o mundo de maneira diferente. Em todos os lugares do mundo os menos escolarizados acham que não adianta nada se associar para pressionar o governo. É só aumentar um pouco a escolaridade ou passar, por alguma razão, a participar de um sindicato, como fez Lula, que os pobres mudam de crença: passam a achar que o voto deles pode mudar o próprio destino, a acreditar que, se pressionarem o governo, vão obter algum tipo de ganho ou benefício. Maluf era eleito pelos pobres do passado. Lula foi eleito e reeleito pelos pobres de hoje.
Qualquer que seja o candidato a presidente do PSDB, Serra ou Aécio Neves, é previsível hoje, neste mês, qual será o principal discurso do candidato petista, a sua principal marca: cuidar dos pobres. Não será mais Lula a cuidar dos pobres, mas será um candidato com a bênção do Bolsa Família, do ProUni, da conta bancária, etc. É previsível o discurso do candidato governista: quem fez isso e isso pelos pobres vai continuar fazendo, desta vez aquilo e aquilo.
Já há sinais acerca desse "aquilo". Lula anunciou que vai construir centenas de Unidades de Pronto-Atendimento (UPAs) em todo o Brasil. A UPA é o principal símbolo do programa de saúde levado a cabo por Sérgio Cabral no governo estadual do Rio. As UPAs atingem em cheio o principal problema social de praticamente qualquer município e Estado: a saúde pública.
Nosso país tem esta grande dificuldade: massificar o acesso, dar acesso aos pobres a coisas que eles não tinham ou têm. O governo Fernando Henrique fez isso ao baixar a inflação, colocou comida na mesa do pobre. Os símbolos da época, todos se recordam, foram o frango, o queijo e o iogurte. Fernando Henrique fez mais: deu acesso ao telefone. Não importa qual meio é utilizado para isso, se a privatização ou não, o que importa é que, por um longo período, o PSDB disputou com o PT a agenda de realizações para os pobres, o esforço de dar acesso aos pobres a bens e serviços que eles nunca tiveram.
Nem tudo são flores nesse caminho. Caíram os preços das passagens aéreas e o caos aéreo se instalou. Quando estava chegando a hora de os pobres começarem a voar, os preços subiram novamente e o sistema voltou a "funcionar corretamente". É irônico, mas foi exatamente o que aconteceu. Isso revela a dificuldade que o Brasil tem, toda vez que as soluções envolvem o setor público, de massificar o acesso dos pobres a bens e serviços.
Caíram os preços das passagens aéreas e o sistema entrou em colapso; ampliou-se o crédito, mais carros foram comprados e nossas cidades entraram em colapso; foi criado o SUS e universalizado o acesso à saúde e o sistema entrou em colapso. Esse é o país aristocrático chamado Brasil, que tem dificuldade em massificar as coisas. O PT se propõe a fazer isso, mas nem sempre as intenções levam ao fato.
Ocorre que será esse o discurso - o discurso do social - da sucessão presidencial, sucessão que na sua primeira simulação, exatos dois anos antes da eleição presidencial, põe a desconhecida Dilma Roussef com 8% das intenções de voto, 30 pontos porcentuais abaixo do candidato mais forte do PSDB, o governador José Serra. Aécio tem menos votos do que Serra por um único e exclusivo motivo: o recall dele é menor, ele é menos conhecido nacionalmente do que o governador de São Paulo. Ambos, porém, vão precisar de argumentos - na área social - para enfrentar o discurso petista.
Tome-se o exemplo de São Paulo. É útil, sem duvida, ter visibilidade nacional aprovando uma lei restritiva ao fumo; lei que, aliás, conta com ampla aprovação nacional. Porém, seria mais útil, em termos de comunicação e de marketing, transformar São Paulo no primeiro Estado livre da pobreza e da miséria.
Isso não é possível, é verdade. Trata-se de uma peça de comunicação. Mas é possível, sim, fazer um amplo programa de grande impacto, com início em 2009 e término em, por exemplo, 2029, visando a acabar com as favelas, resolver o tempo de espera na saúde, melhorar a educação, enfim, atingir objetivos ambiciosos em todas as áreas sociais importantes. São Paulo tem recursos para isso e os gestores do PSDB têm a competência.
Note-se, esse exemplo de programa de ação combinado com comunicação moveria o PSDB para mais perto do novo centro político do Brasil. Mais do que isso, poria a nossa direita, assim como fez a direita em todos os países europeus depois de perder o poder para os partidos de esquerda, em melhores condições de enfrentar a marca social do PT. É possível que o principal tema dos próximos 20 anos da política brasileira seja o tema do social. Ocorreu assim no pós-guerra europeu. Esse longo ciclo foi rompido apenas nos anos 1970, depois do governo de Margaret Thatcher na Grã-Bretanha.
Em todo esse período a direita européia, para enfrentar a esquerda em igualdade de condições, caminhou para a esquerda, caminhou para o social. Isso havia acontecido antes mesmo da Segunda Guerra Mundial, durante o período do assim chamado "todos os governos burgueses" na Alemanha. Foram os partidos de direita, na república de Weimar, que mais adotaram políticas de redistribuição de renda. Os conservadores da época avaliaram que isso era necessário para que fosse possível enfrentar o partido social-democrata alemão.
Afirma-se que aprender com os nossos acertos é obrigação, mas aprender com os acertos dos outros é sabedoria. Acertar, neste caso, ocupar o terreno do adversário. Hoje, do ponto de vista do PSDB, ocupar o terreno do adversário é ter muitos e muitos votos na extrema zona leste e zona sul paulistanas e no que ela representa Brasil afora.
Alberto Carlos Almeida, sociólogo e professor universitário, é autor de "A Cabeça do Brasileiro" (Record).