sexta-feira, 27 de novembro de 2020

Fernando Gabeira - Gigante solitário

-  O Estado de S. Paulo

É preciso ocupar todos os espaços para se contrapor ao cercadinho de Bolsonaro

Ainda muito jovem, estagiário, lembro-me de uma tarefa jornalística no Itamaraty. Com a ajuda do poeta e empresário Augusto Frederico Schmidt, Juscelino acabara de lançar a Operação Pan-Americana. Era uma iniciativa regional, mas partia do Brasil e, de certa forma, expressava o otimismo dos anos 1950.

No mundo de hoje vejo muito movimento. Os Estados Unidos derrotaram Trump e se preparam para voltar às alianças globais e ao Acordo de Paris. A Europa movimenta-se e 15 países da Ásia e da Oceania, um terço do PIB mundial, acabam de celebrar importante acordo sob a liderança da China.

No meio de todo esse movimento, apesar da pandemia, é razoável perguntar pelo Brasil. Jogamos todas as fichas numa relação com Trump, sempre desfavorável ao País. E agora Trump foi para o espaço. Ficamos sós e espetacularmente desarmados, como diria o poeta.

Um projeto especial como o desenvolvido com a Noruega e a Alemanha na Amazônia foi bombardeado por Bolsonaro e Salles. Perdemos investimentos, até para nos protegerem de incêndios na floresta e no Pantanal. Recentemente, numa live sobre os incêndios no Pantanal, autoridades de Mato Grosso lembraram que a modernização de sua estrutura de combate a incêndios dependia desse dinheiro. E não há nada no lugar, exceto o corre-corre do vice-presidente Mourão para seduzir os europeus e uma sensação vazia de nacionalismo no discurso de Bolsonaro. Nem Alemanha nem Noruega exigiam nada senão projetos sustentáveis.

Merval Pereira - Restaurar a moralidade

- O Globo

O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Luis Fux, foi surpreendentemente explícito ontem, durante a fala de abertura do 14º Encontro Nacional do Poder Judiciário promovido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), ao fazer uma ligação clara entre a decisão que tomou logo depois de assumir o cargo, em outubro, de tirar das turmas e levar para o plenário as ações penais e inquéritos, e a vontade de não permitir a desconstrução da Operação Lava Jato.

“O primeiro ato praticado por mim, não quero nenhum louvor, estou apenas dando esse esclarecimento: todas as ações penais e todos os inquéritos passarão pela responsabilidade do plenário, porque o STF tem o dever de restaurar a imagem do país a um patamar de dignidade da cidadania, de ética e de moralidade do próprio país".

Foi a maneira que Fux encontrou para reafirmar seu empenho de evitar que a Segunda Turma, que é responsável por analisar os processos da Lava-Jato, use uma maioria já firmada para obstruir as investigações. A Segunda Turma tinha o ministro Celso de Mello com fiel da balança. Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski votam na maioria das vezes na mesma direção, assim como a ministra Carmem Lucia e o ministro Edson Fachin. Enquanto não foi escolhido o substituto de Celso de Mello, a dupla Gilmar e Lewandowski levou a melhor, pois o empate favorece ao réu.

Eles ganharam depois o reforço do novo ministro indicado por Bolsonaro, Nunes Marques. O pronunciamento de Fux aconteceu dois dias depois que a 2ª Turma do STF decidiu que manterá no colegiado os recursos que já começaram a ser julgados antes da decisão que definiu a competência do plenário. A posição foi entendida como uma reação do presidente da 2ª Turma, ministro Gilmar Mendes, que vem se destacando como um dos adversários mais ferrenhos da Lava-Jato no Supremo.

Bernardo Mello Franco - Um sem-teto no Planalto

- O Globo

Jair Bolsonaro não gosta dos sem-teto, mas poderia pedir uma carteirinha ao movimento. Na semana passada, o presidente completou um ano sem estar filiado a nenhum partido. Virou um desabrigado político com gabinete no Planalto.

O capitão deixou o PSL em novembro de 2019. A razão não foi ideológica. Ele perdeu a disputa com o dono da sigla, Luciano Bivar, pela chave do cofre. Só neste ano, a legenda recebeu R$ 199 milhões do fundo eleitoral.

A tentativa de criar um partido do zero tem sido um fiasco. Depois de receber 57 milhões de votos, o presidente é incapaz de coletar 492 mil assinaturas para registrar o Aliança pelo Brasil. Até aqui, ele só conseguiu validar 42 mil adesões. Isso equivale a 8% do total exigido por lei.

Luiz Carlos Azedo - Três cidades

- Correio Braziliense

Em São Paulo, Bruno Covas é assediado por  Boulos; no Rio de Janeiro, Eduardo Paes está praticamente eleito; em Recife, Marília e João Campos têm disputa acirrada

Muito interessante a disputa nas três principais capitais onde há segundo turno: São Paulo, Rio de Janeiro e Recife. Apontam tendências políticas completamente diferentes. A única conclusão que podemos inferir em relação a 2022, com segurança, é o fato de que o presidente Jair Bolsonaro caiu do cavalo nas três cidades. Seus candidatos não emplacaram. A queda de sua popularidade em quase todo o território nacional, em razão da pandemia de coronavírus, das altas taxas de desemprego e das suas patacoadas em relação a alguns temas relevantes, como a política externa e o meio ambiente, fez com que seu apoio se tornasse irrelevante.

Em São Paulo, Bruno Covas (PSDB) mantém a liderança, mesmo caindo de 48% para 47%. Guilherme Boulos (PSol) estacionou nos 40%, segundo o DataFolha. Como o candidato de Bolsomaro, Celso Russomano (Republicanos), virou mosca morta no segundo turno, a disputa reflete uma guinada à esquerda na capital paulista. Bruno Covas é um tucano de raiz, com uma narrativa que não nega a herança familiar do ex-governador Mario Covas. É falsa a acusação de que seria um bolsonarista, sua candidatura se posiciona no campo da centro-esquerda.

Ricardo Noblat - Tal pai, tal filho. Ou a arte dos Bolsonaros de negar o inegável

- Blog do Noblat | Veja

Quem puxa a quem

Como Jair Bolsonaro veio primeiro ao mundo e também à política, é de supor que seus três filhos zero tenham aprendido com ele a negar o inegável. Dito de outra maneira: a mentir.

Mas seria injusto não reconhecer que o pai também aprendeu com os filhos, principalmente com o mais ardiloso deles que o guia nas redes sociais – o vereador Carlos Bolsonaro, o Zero Dois.

Ontem pela manhã, Carlos valeu-se de sua conta no Twitter para culpar a “mídia” por mentir ao dizer que o presidente Jair Bolsonaro anunciara o fim da Lava Jato. Ele escreveu:

“Mas segundo as antas e outros bichos a lava-jato não ia acabar? Toda semana o mesmo papo furado e grande parte da imprensa mentindo sem qualquer pudor!”

Referia-se a uma nova operação da Lava Jato. esqueceu, ou fingiu esquecer, que seu pai, no dia 7 de outubro último, em cerimônia no Palácio do Planalto, afirmou:

“É um orgulho, uma satisfação que tenho ao dizer a essa imprensa maravilhosa que não quero acabar com a Lava Jato. Acabei com a Lava Jato porque não tem mais corrupção no governo”.

Se apenas foi irônico, pouco importa. Ele disse. Está gravado. Como gravado está para a posteridade que Bolsonaro também afirmou o que ontem à noite teve a cara de pau de negar.

Dora Kramer - Vai ser diferente

- Revista Veja

A próxima eleição presidencial terá desafios que Bolsonaro não enfrentou naquela que passou

Muito mais importante que o resultado do segundo turno das eleições municipais deste domingo para definir posições e articulações preparatórias ao embate nacional de 2022 é a escolha dos presidentes da Câmara e do Senado.

Na verdade, o mundo político considera importante mesmo a escolha dos deputados, porque em fevereiro eles definirão quem será a pessoa com poder de vida ou de morte sobre pedidos de impeachment contra o presidente da República.

Um presidente da Câmara fidelíssimo ao Palácio do Planalto tende a arquivar os pedidos, enquanto outro não alinhado se inclina a deixar essas solicitações na prateleira, ou “sentar em cima”, no jargão algo vulgar corrente no Parlamento. Assim fez Rodrigo Maia, em cuja gaveta se acumulam mais de cinquenta contra Jair Bolsonaro. Já Lula e FH contaram com aliados para levar semelhantes intenções e ideias ao arquivo.

Essa é a chave do início da corrida. Não porque haja no horizonte dos opositores do atual presidente uma intenção real e premente de lhe interromper o mandato. A ideia é muito mais manter ativa a espada de Dâmocles.

César Felício - Outra vez, a tradição que se renova

- Valor Econômico

Mesmo se perder, Boulos muda de patamar político

A grande novidade da eleição paulistana este ano, Guilherme Boulos, mostrou em sua campanha a prefeito de São Paulo que velhas fórmulas dão certo quando reembaladas com nova roupagem.

Como candidato, Boulos lança mão de arquétipos encontrados na arqueologia eleitoral brasileira. Ele interpreta com maestria, por exemplo, um velho conhecido: o personagem que encarna o tostão contra o milhão, Davi contra Golias. É a vida simples na periferia, a modéstia no estilo de vida, com seu “Celtinha” prata que lhe serve de transporte, a parceria na chapa com Luiza Erundina, símbolo de um PT já perdido, guardiã da pureza e encantamento radical de uma estrela que se apagou.

No discurso, não economiza promessas. Fala em 100 mil “soluções de moradia” para a população carente, acena com auxílio emergencial, com a adoção de um modelo sul-coreano de controle da covid, com testagens em massa, e por aí vai. A fórmula é antiga. Chegou o amigo do povo, que vai governar para as pessoas, e não para o grande capital.

Hélio Schwartsman - Bolsonaro tenta infinitos modos de destruição

- Folha de S. Paulo

A entropia, definida como a medida de desorganização de um sistema, é uma força poderosa. No longo prazo (algo como 10100 anos), ela levará à morte térmica do Universo, mas produz, desde já, um argumento bacana contra a existência de Deus (cf. Bertrand Russell).

Em escalas de tempo mais compatíveis com as percepções humanas, a entropia não se mostra tão inexoravelmente fatal, mas ainda é capaz de gerar estragos consideráveis.

O governo do presidente Jair Bolsonaro está entre os mais entrópicos de todos os tempos no Brasil. Seu nível de desorganização é preocupante e já afeta outros sistemas, como a economia e a saúde.

A incapacidade do Ministério da Economia de até sinalizar convincentemente sobre seus próximos passos está agravando a precária situação fiscal do país. Vai ficando cada vez mais complicado rolar a dívida pública, o que pode afetar a relativa estabilidade da inflação e outros indicadores.

Bruno Boghossian – O silêncio de Bolsonaro

- Folha de S. Paulo

Expectativa de impunidade no caso da PF ajuda presidente a evitar riscos e desarmar holofote para Sergio Moro

Em silêncio, Jair Bolsonaro disse muito. O presidente avisou ao Supremo que não vai prestar depoimento no inquérito aberto para apurar suas tentativas de interferência no comando da Polícia Federal. A intromissão foi registrada em gravações e declarações públicas, mas ele sugere ter motivos para não se preocupar com a investigação.

Há sete meses, Bolsonaro estava emparedado pelas acusações feita pelo ex-ministro Sergio Moro. O presidente se enrolou nas explicações, admitiu que gostaria de trocar a chefia da PF no Rio por interesse de seu grupo político e indicou que a mudança tinha relação com aliados sob investigação no STF.

Reinaldo Azevedo – Bolsonaro é um homem de palavra

- Folha de S. Paulo

Em reunião com forças conservadoras em Washington, o presidente foi profético sobre o próprio governo

O governo de Jair Bolsonaro acaba de comprar mais um conflito estúpido com a China; ainda não reconheceu a eleição de Joe Biden nos EUA; acusou recentemente países europeus de comprar madeira ilegal do Brasil —o que os tornaria, quando menos, corresponsáveis pelo desmatamento— e é hostil à Argentina, um dos principais clientes, ainda que em declínio, da combalida indústria brasileira.

O festejado acordo UE-Mercosul é agora só miragem, e o ingresso do país na OCDE vai ficando mais distante. Bolsonaro é hoje um dos líderes mais isolados no planeta. Em seu rosto, percebem-se laivos de nanico orgulhoso, que não se dobra à grande conspiração contra os homens justos. Não é sem razão que suas honras viris mereceram o reconhecimento de Vladimir Putin.

Vinicius Torres Freire – O voto de velhos e jovens paulistanos

- Folha de S. Paulo

Eleitor de mais de 60 é cada vez mais relevante e vota à direita; jovens são inconstantes

Em São Paulo, a disputa principal foi sempre entre esquerda e direita desde que a cidade voltou a eleger seu prefeito, em 1988. O voto dos mais velhos é sempre marcadamente mais direitista. Mas em poucas vezes a maioria dos mais jovens votou na esquerda; em poucas vezes o voto dos idosos teve um peso tão decisivo quanto deve ter no segundo turno deste ano, entre Bruno Covas (PSDB) e Guilherme Boulos (PSOL).

É entre os eleitores de 60 anos ou mais que Covas abre sua maior vantagem sobre Boulos, consideradas as categorias maiores e mais tradicionais em que as pesquisas dividem o eleitorado (sexo, idade, renda, instrução) e com dados comparáveis com os levantamentos mais antigos.

Na pesquisa Datafolha mais recente, de 24 e 25 de novembro, Boulos vence Covas entre os eleitores de 16 até 44 anos; entre o eleitorado de 16 até 59 anos, empatam. Entre aqueles de 60 anos ou mais, o tucano vence de longe, por 61% a 28% (ou 68% a 32%, nos votos válidos).

Ruy Castro - Impossível segurar Diego

- Folha de S. Paulo

Como convencer um deus de que ele tem um inimigo que não pode ser vencido?

Há duas semanas, quando se soube que Diego Maradona forçara sua liberação do hospital em Buenos Aires onde fora operado de um hematoma no cérebro e iria "se recuperar" em casa, ficou claro que o fim ia chegar. O médico alegou que era "impossível segurar Diego". Não explicou que Maradona precisava sair dali porque não podia passar sem álcool. Não por falta de caráter, de força de vontade, de querer ou não beber, mas por uma exigência orgânica, que, se não atendida, custa caro ao indivíduo.

O mundo descobriu a expressão síndrome de abstinência, mas não o que ela significa. Significa delírio, alucinação, desespero, descontrole geral dos órgãos, risco de ferimentos autoinfligidos, inclusive mutilações, e, no limite, parada cardíaca e respiratória. Hoje há remédios para isso —há 100 anos, era a camisa de força. A própria cirurgia a que Maradona fora submetido deve ter sido problemática. Se feita de emergência, sem prevenir a síndrome, ele pode ter passado por aquilo.

Pedro Doria - Duas ideias novas pela democracia

- O Globo

Em essência, elas preveem que os algoritmos das grandes plataformas digitais precisam ser mais transparentes

Esta semana, duas propostas diferentes para como lidar com a desinformação on-line foram postas na mesa. São inovadoras, se implementadas mudarão de forma radical como as grandes plataformas digitais funcionam. Ambas têm por objetivo defender as democracias dos movimentos populistas e autoritários que as capturaram subvertendo as redes sociais. Uma é um projeto de lei da União Europeia. Outra, a ideia de um trio de acadêmicos puxados pelo cientista político Francis Fukuyama. E ambas podem funcionar juntas, se completam.

Os detalhes da nova legislação europeia iam ser divulgados na terça-feira, durante uma teleconferência em que as grandes companhias do Vale do Silício estariam representadas. A conversa foi adiada para a quarta que vem. De qualquer forma, o DSA — ou Ato dos Serviços Digitais na sigla em inglês — será apresentado também na semana que vem ao Parlamento Europeu. A partir daí, ao longo de 2021, os países membros da UE deverão ratificar o texto um por um. Então vira lei no mercado comum.

José de Souza Martins* – Racismo incolor

Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

A história tem gravíssimas tensões sociais e raciais. O massacre do Quilombo dos Palmares, em que negros fugidos resistiram por cem anos à repressão, não é uma história de harmonia

Ficaram aquém do historicamente correto as interpretações que do racismo fizeram o vice-presidente da República e o presidente a propósito do assassinato, por asfixia, de João Alberto Silveira Freitas, de 40 anos de idade, trabalhador, pobre e negro. Foi ele espancado até a morte por dois seguranças de um supermercado em Porto Alegre.

O general Mourão declarou: “Para mim, não existe racismo no Brasil. É uma coisa que querem importar, mas aqui não existe”. Bolsonaro falou que o caso indica “importação” de ideias e ações de quem quer dividir o país e tomar o governo. É velho argumento do autoritarismo brasileiro.

O racismo é uma das manifestações mais radicais do preconceito. O preconceito está na estigmatização da diferença representada por traços de personalidade, traços físicos, cor, costumes, apresentação pessoal, nos atributos identitários de alguém. O racismo é o preconceito ativo contra alguém em decorrência de sua diferença social, de raça ou cor.

Aqui, há preconceito de cor, de classe social, de religião, de aparência, de cultura. São também manifestações preconceituosas a referência aos que temem a pandemia porque maricas. Ou a referência aos maranhenses como boiolas por apreciarem um tradicional refrigerante local cor de rosa.

No Brasil, o preconceito racial é muito diferente do preconceito que há nos EUA, o que o general Mourão não considerou. Portanto, não é importado. O sociólogo Oracy Nogueira, que foi professor na Escola de Sociologia e Política de São Paulo e na USP, é autor de um estudo clássico sobre essa diferença. Ele, que fez seu doutorado nos EUA, mostra que lá o preconceito é de origem, aqui é de marca. Lá, um branco que tenha algum ancestral negro continua negro e discriminado, mesmo que pela mestiçagem tenha se tornado branco. Aqui a cor da pele é que estigmatiza, se for negra.

Daniel Rittner - Os US$ 4 bilhões que travaram na Esplanada

- Valor Econômico

Empréstimos do BID, CAF e NDB esbarram em vaivém de pareceres

O governo Jair Bolsonaro está deixando parado um financiamento internacional de US$ 4 bilhões, com taxas de juros mais baixas e prazos mais longos do que as captações feitas pelo Tesouro no mercado, para arcar com o pagamento do auxílio emergencial e ações de combate à crise econômica provocada pela pandemia.

A tomada do crédito, que foi anunciada em maio, travou na burocracia da Esplanada dos Ministérios. Enquanto isso, o Brasil abre mão de um alívio de algumas centenas de milhões de reais na gestão de sua dívida pública porque é obrigado a pagar mais caro para credores privados que têm financiado o gigantesco déficit primário no nosso “Orçamento de guerra”.

Seis bancos multilaterais e agências de desenvolvimento se dispuseram a emprestar para o Brasil. Todos já aprovaram, em suas instâncias decisórias, a liberação do crédito. As fontes de financiamento são as seguintes: US$ 1 bilhão do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), US$ 1 bilhão do Banco Mundial, US$ 1 bilhão do NDB (conhecido como Banco do Brics), US$ 420 milhões do banco de fomento alemão KfW, US$ 350 milhões do Banco de Desenvolvimento da América Latina (CAF) e US$ 240 milhões da Agência Francesa de Desenvolvimento.

Rogério F. Werneck - Entalo fiscal

- O Globo | O Estado de S. Paulo

Governo finge que quer preservar o teto de gastos

Neste final de ano, a política fiscal do governo está fadada a ter um encontro marcado com a verdade. Já não há mais espaço para autoengano sobre suas reais possibilidades. Ao cabo de meses e meses de ilusionismo, falta de foco e escancarada procrastinação do anúncio das medidas de ajuste nas contas públicas que se fazem necessárias, o Planalto se descobre, agora, com não mais que três semanas e meia para escapar do entalo fiscal em que se meteu.

O governo nem mesmo conseguiu que o Congresso aprovasse a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO). E a apreciação do Orçamento ainda inspira cuidados. Vem sendo tumultuada pela disputa precoce pelo controle das mesas do Congresso, instigada pelo próprio Planalto. Vai-se entrar em dezembro sem que Comissão Mista de Orçamento tenha sido sequer instaurada. É espantoso.

Míriam Leitão - A incômoda visita da alta dos preços

- O Globo

Há uma distância entre o número da inflação oficial e como ela é sentida pelos brasileiros. No meio de uma recessão, com impacto maior sobre os alimentos, com queda da renda e alta do desemprego, ela pesa muito mais do que os 4,22% dos últimos 12 meses do IPCA-15. Hoje, sairá o IGP-M de novembro e pode superar 3%, como no último mês. Os IGPs estão nas alturas, em torno de 25%, por causa dos preços por atacado. A inflação tem natureza e peso diferentes desta vez. Não existe hora boa para a chegada da inflação, mas agora ela é uma visita ainda mais incômoda.

Em ambiente recessivo, os preços não deveriam subir. Mas já aconteceu recentemente. Em 2015 e 2016, quando houve o descongelamento de tarifas de energia, o índice passou de 10%. Agora, de novo, há vários motivos específicos. Uma forte desvalorização do dólar, o aumento das exportações de alimentos, um descompasso dentro da cadeia produtiva e até uma pressão de demanda em plena recessão. O auxílio emergencial produziu um aumento de renda temporário, mas a maior alta de preços bateu exatamente nos alimentos, que são os itens que mais pesam no orçamento das famílias.

Flávia Oliveira - O fracasso no Alemão

- O Globo

Comunidade tornou-se monumento à derrota de uma gestão pública pautada pela força

Uma década depois da ocupação que deveria inaugurar nova etapa na política de segurança pública, via Unidades de Polícia Pacificadora, e nas relações do Estado com a favela, por meio de políticas sociais, o Complexo do Alemão perdeu dez anos. A safra de investimentos públicos e privados, que, durante o governo de Sérgio Cabral, agora preso e condenado por corrupção, deram em intervenções urbanas, conjunto habitacional, cinema, agência bancária, filial de varejista de eletrodomésticos, serviços de telefonia e TV por assinatura, hoje é vaga lembrança. Abandonado, o teleférico, obra de mobilidade inspirada na revitalização de Medellín, cidade colombiana outrora refém do tráfico de drogas, tornou-se monumento ao fracasso de uma gestão pública pautada pela força, em vez da inclusão social.

Amanhã, em sinal de que outra abordagem é possível, o jornal “Voz das Comunidades”, à frente Rene Silva, vai entregar em mutirão 16 mil livros a moradores do Alemão e do Complexo da Penha. A proposta brotou num tuíte em que o jovem empreendedor social manifestou a intenção de distribuir dez mil livros para marcar a efeméride. “Passaram-se dez anos e nada mudou. Então, quero dizer que a invasão que queremos é de educação”, resumiu. A Invasão dos Livros foi encampada por uma legião de aliados: da atriz Patricia Pillar ao rapper Emicida, da cantora Maria Rita ao humorista Helio de La Peña, da atriz Regina Casé ao cantor Leoni. Só a Bienal do Livro conseguiu 12 mil livros.

O que a mídia pensa: Opiniões / Editoriais

Relação com a China exige visão de longo prazo – Opinião | O Globo

Estratégia para lidar com chineses deveria se estender para além do comércio, do agronegócio ou do 5G

Não é novidade que o deputado federal Eduardo Bolsonaro não tem estatura nem preparo para comandar a Comissão de Relações Exteriores da Câmara. Já havia ficado claríssimo na tentativa frustrada de comandar a embaixada brasileira em Washington. Também não há nenhuma surpresa no tuíte em que ele acusou a China de usar a quinta geração da telefonia celular (5G) para espionagem, fazendo eco literal à campanha do governo americano para desacreditar a tecnologia chinesa.

O entrevero, que ensejou uma resposta dura da embaixada chinesa, chama a atenção por outro aspecto: o despreparo para lidar com a China não se restringe ao Zero Três ou às falanges bolsonaristas. Se diatribes e teorias da conspiração encontram eco, é em parte porque o Brasil ainda carece de uma estratégia consistente para lidar com seu maior parceiro comercial, maior potência emergente no planeta e, em questão de anos, a maior economia global (por alguns critérios, já é).

Dirigir à China um olhar menos ideológico e mais pragmático é uma necessidade que ultrapassa a autorização para chineses participarem de leilões na telefonia. As exportações do agronegócio brasileiro à China estão em torno de 38% do total (em 2019 eram 32%). A China respondeu por 70% do superávit comercial brasileiro até agosto (em 2019 eram 58,5%). Para cada dólar que o Brasil exporta aos Estados Unidos, exporta outros 3,5 à China. Dos dez produtos mais vendidos pelo país em 2019, seis foram aos chineses.

Música - Paulinho da Viola - Memórias conjugais

 

Poesia | Fernando Pessoa - Grandes

 

Grandes são os desertos, e tudo é deserto. 
 Não são algumas toneladas de pedras ou tijolos ao alto 
 Que disfarçam o solo, o tal solo que é tudo. 
 Grandes são os desertos e as almas desertas e grandes 
 Desertas porque não passa por elas senão elas mesmas, 
 Grandes porque de ali se vê tudo, e tudo morreu. 

 Grandes são os desertos, minha alma! 
 Grandes são os desertos. 

 Não tirei bilhete para a vida, 
 Errei a porta do sentimento, 
 Não houve vontade ou ocasião que eu não perdesse. 
 Hoje não me resta, em vésperas de viagem, 
 Com a mala aberta esperando a arrumação adiada, 
 Sentado na cadeira em companhia com as camisas que não cabem, 
 Hoje não me resta (à parte o incômodo de estar assim sentado) 
 Senão saber isto: 
 Grandes são os desertos, e tudo é deserto. 
 Grande é a vida, e não vale a pena haver vida, 

 Arrumo melhor a mala com os olhos de pensar em arrumar 
 Que com arrumação das mãos factícias (e creio que digo bem) 
 Acendo o cigarro para adiar a viagem, 
 Para adiar todas as viagens. 
 Para adiar o universo inteiro. 

 Volta amanhã, realidade! 
 Basta por hoje, gentes! 
 Adia-te, presente absoluto! 
 Mais vale não ser que ser assim. 

 Comprem chocolates à criança a quem sucedi por erro, 
 E tirem a tabuleta porque amanhã é infinito. 

 Mas tenho que arrumar mala, 
 Tenho por força que arrumar a mala, 
 A mala. 

 Não posso levar as camisas na hipótese e a mala na razão. 
 Sim, toda a vida tenho tido que arrumar a mala. 
 Mas também, toda a vida, tenho ficado sentado sobre o canto das camisas empilhadas, 
 A ruminar, como um boi que não chegou a Ápis, destino. 

 Tenho que arrumar a mala de ser. 
 Tenho que existir a arrumar malas. 
 A cinza do cigarro cai sobre a camisa de cima do monte. 
 Olho para o lado, verifico que estou a dormir. 
 Sei só que tenho que arrumar a mala, 
 E que os desertos são grandes e tudo é deserto, 
 E qualquer parábola a respeito disto, mas dessa é que já me esqueci. 

 Ergo-me de repente todos os Césares.   
 Vou definitivamente arrumar a mala.   
 Arre, hei de arrumá-la e fechá-la;  
 Hei de vê-la levar de aqui, 
 Hei de existir independentemente dela. 

 Grandes são os desertos e tudo é deserto, 
 Salvo erro, naturalmente. 
 Pobre da alma humana com oásis só no deserto ao lado! 

 Mais vale arrumar a mala.