Trinta anos sem Tancredo
Primeiro presidente civil eleito após o golpe de 64, Tancredo neves viveu um drama que paralisou o país durante cinco semanas, após ser internado de emergência na véspera da posse. no aniversário de sua morte, hoje, o globo publica artigos de analistas, sobre a importância do político mineiro, e de quem presenciou de perto sua agonia durante a internação. vice de Tancredo, José Sarney lembra como foi instado por Ulysses Guimarães a assumir o cargo, para garantir a transição democrática
Ator dos principais fatos históricos dos últimos 60 anos
Jorge Bastos Moreno – O Globo
Despedida. O caixão com o corpo de Tancredo deixa o Palácio do Planalto, seguido por um cortejo com Sarney e a viúva, Risoleta Neves, à frente: internado na véspera da posse, o presidente eleito morreu após 5 semanas que pararam o país
De todos os principais fatos da História do Brasil dos últimos 60 anos, Tancredo Neves só esteve ausente de dois: o do primeiro impeachment de um presidente da República e o da eleição do primeiro operário no cargo máximo da República. No da sua posse, que não houve, participou, literalmente, de corpo presente, como protagonista de um dos episódios de maior comoção popular da nossa História.
Aos 37 anos, como ministro da Justiça, Tancredo viu Getúlio Vargas agonizando nos seus braços e no da filha Alzira Vargas, numa cena descrita por ele a mim, em entrevista, com requintes cinematográficos:
- Getúlio morreu nos meus braços e de sua filha Alzira. Quando entramos no seu quarto, cenário da traumatizante tragédia, ainda o encontramos com vida, com o seu corpo pendente em parte para fora do leito. Estava agonizando. Do seu coração jorrava intenso jato de sangue. Acomodamo-lo na cama, quando ele lançou um olhar circunvagante à procura de alguém. Por fim, fixou em Alzira e expirou. Até hoje, não consigo me libertar da profunda emoção e do terrível impacto dessa inesquecível ocorrência.
Tancredo Neves, em outro importante episódio da História do país, para garantir a posse de João Goulart na Presidência da República, com a renúncia de Jânio Quadros, assumiu o cargo de primeiro-ministro do governo parlamentarista, criado às pressas para resolver a crise. Depois, com a eclosão do golpe militar, como líder do governo deposto, tentou impedir a decretação da vacância do cargo ocupado pelo próprio Jango. Como deputado federal, tentou impedir, também sem êxito, o fechamento, por duas vezes, do Congresso Nacional. Apesar de ameaçado várias vezes de perder o mandato, sobreviveu à ditadura e, junto com Ulysses Guimarães, escreveu a História do MDB/PMDB.
Como repórter, cobri várias missões políticas de Tancredo, principalmente a sua campanha pelo colégio eleitoral e a sua viagem ao exterior, como presidente eleito, sua agonia e morte.
Tive várias conversas com Tancredo sobre todos esses episódios. Muitas dessas conversas foram em formas de entrevistas ou matérias em "off". Agora, nos 30 anos de sua morte, decido tornar pública uma dessas conversas, publicada como matéria de texto corrido, em off , no "Jornal de Brasília", onde iniciei minha carreira profissional.
A conversa foi sobre a cassação de Juscelino Kubitschek:
A cassação de Juscelino surpreendeu a todos, parece que menos ao senhor. É verdade?
É a mais pura verdade. É uma história muito triste, pois, para explicar por que essa cassação não me surpreendeu, preciso revelar fatos que preferia mantê-los na mais absoluta discrição. No gestão do presidente Juscelino, (Carlos) Lacerda fez uma enorme campanha difamatória contra o governo junto às Forças Armadas. Preocupado com esses fatos, o presidente incumbiu-me a missão de desfazer essas intrigas junto à Escola Superior de Guerra.
E o senhor conseguiu realizar essa missão?
Tive esse êxito, mas graças ao seu diretor do centro de estudos, Humberto de Alencar Castelo Branco, de quem acabei ficando muito amigo, nessa ocasião.
Mas o senhor acabou não votando em Castelo para presidente, não é?
Mesmo se quisesse, estava moralmente impedido. Eu era líder do governo deposto. Voltando aos fatos, tempos depois saiu a aguardada lista de promoções do Exército. Havia boatos de que, influenciado pelo ministro da Guerra, marechal Lott, inimigo de Castelo, Juscelino não o promoveria e o mandaria para a reserva. Diante dessa ameaça, fui ao encontro do presidente e verifiquei que, de fato, o nome de Castelo não estava na lista.
E o que o senhor fez?
Perguntei-lhe o motivo, e o presidente não se fez de rogado: "O Lott me disse que Castelo é um golpista, mau-caráter e filho da puta!" Não me contive e, com todo o respeito, disse-lhe que estava sendo injusto com o militar, que o ajudara a desfazer as intrigas de Lacerda junto às Forças Armadas. Cheguei a dizer: "Presidente, o senhor tem uma dívida de gratidão com o Castelo, e essa gratidão tem que ser expressada agora com a sua promoção".
E qual foi a reação de Juscelino?
Ato contínuo, pediu ao ajudante-de-ordem para que este colocasse Castelo do outro lado da linha. E Juscelino já o recebeu saudando como titular do novo posto. Suspirei aliviado, achando que o episódio estava encerrado. Ledo engano, os desdobramentos viriam mais tarde.
Como assim?
Na noite desse mesmo dia, quando Castelo comemorava a promoção com amigos, um companheiro de farda estragou a festa: "Essa promoção foi conseguida às duras penas. Se não fosse o Tancredo, o presidente não a teria assinado".
Como esse militar ficou sabendo disso?
Só estavam três pessoas no gabinete presidencial: o próprio presidente, eu e o ajudante-de-ordem. Tire suas próprias conclusões.
E como ocorreram esses desdobramentos?
Vitorioso o movimento de 64, Castelo sendo indicado à Presidência, Juscelino e ele tiveram um encontro na casa de Joaquim Ramos, no Rio. Nessa ocasião, Juscelino já estava propenso a votar em Castelo, e ouviu deste a promessa de que não alteraria o processo eleitoral e que, ao final de um provisório mandato, promoveria a realização de eleições diretas. Embora até hoje ninguém confirme esse fato, Castelo teria insinuado apoio à candidatura de Juscelino à sua sucessão.
E Juscelino?
Parece que não esboçou a menor reação a essa possibilidade, mas garantiu seu apoio à eleição de Castelo. Esse contato fez com que ele, em nenhum momento, pensasse que viria a ser cassado por aquele a quem havia hipotecado apoio, juntamente com a maioria da bancada do PSD. Nem às vésperas da cassação.
E como ele ficou sabendo?
Foi surpreendido pelos acontecimentos, embora eu o tivesse avisado.
Como o senhor ficou sabendo?
Por uma deferência do próprio Castelo. Ele me chamou para avisar sobre a consumação daquele ato e me pediu que levasse essa triste notícia para Juscelino. Fui imediatamente ao sítio do presidente Juscelino em Luziânia, onde ele se encontrava reunido com um grupo de amigos, entre eles o poeta Augusto Frederico Schmidt, que praticamente quase me expulsou do local: "Estive ontem com Castelo, e ele me disse que sua mão secaria, mas que ele jamais assinaria a cassação de Juscelino". No dia seguinte, "A Voz do Brasil" confirmou a minha informação.
Por que então Castelo mudou de ideia?
Apesar de ele nunca ter me dito, sempre achei que a participação de Castelo não foi uma decisão da sua vontade, mas um ato que lhe foi imposto por injunções inevitáveis da revolução. E isso está muito claro na justificativa do ato dessa cassação.
E como entra o episódio da promoção nessa história?
Nada me tira da cabeça o sentimento de que o marechal só me comunicou a cassação de Juscelino por conta da minha intervenção na sua promoção e pela atitude de Juscelino de não ter atendido seu próprio ministro da Guerra, que não queria essa promoção.
O Castelo, nem indiretamente, comentou esse episódio com o senhor?
Nunca! Estive com ele, inclusive, dias antes do trágico acidente que o vitimou, conversamos sobre vários assuntos, mas nada sobre essa promoção.