Luiz Sérgio Henriques
Editor do site Gramsci e o Brasil
Texto de apresentação da revista Política Democrática, nº 22
Q presente número da Política Democrática, justamente por se concentrar na comemoração dos vinte anos da Carta Magna de 1988 e por manter sua discussão quase permanente sobre a história, limites é possibilidades da! esquerda brasileira, é particularmente relevante para o leitor atento, seja qual for o ponto do espectro político em que estiver.
A Constituição de 1988, por exemplo, é aqui vista de ângulos diversos e até freqüentemente opostos. A partir do depoimento de Roberto Freire, um dos protagonistas do processo constituinte, desenrola-se uma série de textos e avaliações de uma Carta que, de fato, está na base do mais longo período de vida democrática da história moderna do pais. O próprio Freire examina dilemas daquela época que nos acompanham até hoje, como um grande desequilíbrio de poderes, em favor do “presidencialismo imperial” e em detrimento do Congresso, a casa por excelência da democracia; o tratamento insuficiente dos problemas do Judiciário; os impasses relativos à anistia; e a condução da reforma agrária. Em muitos desses casos, formulações constitucionais excessivamente analíticas, ainda que de caráter progressista,: contribuíram para retardar a aplicação prática das medidas de reforma, contrariando a boa intenção de constituintes, inclusive os de esquerda.
De todo modo, está claro que o documento de 1988 marca a retomada vigorosa da construção de uma «era de direitos” no pais, embora, ao longo dos anos noventa, reformas liberais tenham incidido sobre o texto no âmbito da rediscussão do papel do Estado e do mercado, tão própria daquela década. Que balanço fazer dos anos de reforma liberal que, a rigor, começou com Collor e, grosso modo, não parou mais desde então, na falta de inflexões mais visíveis rumo a um desenvolvimentismo de novo tipo? Como entender as sucessivas emendas sofridas pela Carta cidadã? Tratou-se de um aggiornamento necessário, tendo em vista a intensa transformação pela qual passavam a economia e a sociedade em nível planetário, ou, ao contrário, significaram perda generalizada de direitos e inserção subalterna nas engrenagens do capitalismo globalizado?
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Eram uma decorrência de excessos discursivos, que engessavam a ação ordinária dos governos, ou, como afirma Marcelo Cerqueira, chegaram perigosamente a ameaçar “bens públicos, constitucionalmente indisponíveis”, como ás florestas e os rios?
São discussões que ainda hoje animam o debate público, e pessoalmente considero difícil deixar de pensar que todo este tempo, desde 1988, combinou substanciais ganhos democráticos que, aos poucos, vão se enraizando capilarmente na nossa sociedade, com a persistente “crise do desenvolvimento nacional”, que taxas relativamente altas nestes anos mais recentes encobriram, mas não resolveram com firmeza. Discutem-se assim na sociedade os resultados do jogo que, muitas vezes, não são bons, mas, querendo ou não., raramente se põe em questão o essencial, que é. a manutenção da regra democrática, a adesão mais ou n generalizada aos princípios do Estado democrático de Direito. Eventuais quebras das regras do jogo, como a manobra da reeleição em meados dos anos 1990 em beneficio, do governante no poder, ou, mais recentemente, indecentes sugestões de terceiro mandato, têm encontrado. quase’ unânime condenação, ainda que, no primeiro caso, isto só seja possível.retrospectivamente. Não é pouco, num país de vida constitucional conturbada como a nossa.
Um outro eixo importante de discussão aqui presente é a questão da esquerda e dos desafios da sua renovação. Em tempos de crise aguda dos mercados globais cujo paralelo mais evidente é 1929 e a década trágica que, se seguiu, até desembocar no flagelo da Segunda Guerra, é bom ter presente a necessidade de uma esquerda de novo tipo, radicalmente democrática, que.não se deixe: desencaminhar pelo “grave equívoco (de) pensar que o que está ocorrendo hoje é o fim da idéia do capitalismo” (Fréire).
Neste mesmo sentido, Alberto Aggio lança a discussão de um novo reformismo, recuperando semanticamente uma ‘palavra que costumava: cair como chumbo sobre os militantes do velho Partidão, supostamente desqualificando sua opção pela luta legal contra o regime militar. O que se propõe, a respeito, é a ruptura com o padrão bolchevíque / soviético e o cubano / guerrilheiro, ambos conformadores da esquerda brasileira e ambos, flagrantemente insuficientes para compreender nossa realidade e nela agir, introduzindo reformas incisivas, concretas - se não consensuais, pelo menos amplamente majoritárias, apontando para níveis-mais altos de progresso e civilização.
Temos de admitir que o ato de nascimento deste reformismo forte, adepto incondicional da democracia política como o terreno mais favorável para.a luta dos setores “de baixo”, ainda não se deu, nem mesmo como visão geral ‘ou estilo de fazer política aceito pelas forças da esquerda brasileira, na variedade das suas manifestações. E, diga-se de passagem, as dificuldades do PT em relação á Carta de 1988, contra a qual votou ë que assinou, apenas protocolarmente, tais dificuldades são muito ilustrativas de um suposto radicalismo que mal encobre subalternidade e incapacidade de uma verdadeira direção do destino do país e das suas grandes escolhas.
O reformismo forte de que falamos supõe, evidentemente, a incorporação de outras matrizes e orientações além do marxismo, a assimilação de problemáticas novas, como, a da ecologia ou a da questão urbana, que adquirem uma feição antes inteiramente desconhecida e que também são tratadas em outros textos deste número.
A associação pode ser arbitrária, mas não resisto a lembrar que, certa vez, o poeta Caetano Veloso fustigou a selvageria do trânsito, dizendo que nós, motoristas brasileiros, insistimos pateticamente em perder os sinais verdes e avançar os vermelhos. É uma boa imagem para compreender a situação das esquerdas, enquanto não nascer e ganhar vigor este novo reformismo: continuaremos a ansiar por rupturas e revoluções, por ataques frontais ao palácio de poder, enquanto desperdiçamos o sinal escancaradamente aberto às mudanças que a vida em democracia proporciona.
Editor do site Gramsci e o Brasil
Texto de apresentação da revista Política Democrática, nº 22
Q presente número da Política Democrática, justamente por se concentrar na comemoração dos vinte anos da Carta Magna de 1988 e por manter sua discussão quase permanente sobre a história, limites é possibilidades da! esquerda brasileira, é particularmente relevante para o leitor atento, seja qual for o ponto do espectro político em que estiver.
A Constituição de 1988, por exemplo, é aqui vista de ângulos diversos e até freqüentemente opostos. A partir do depoimento de Roberto Freire, um dos protagonistas do processo constituinte, desenrola-se uma série de textos e avaliações de uma Carta que, de fato, está na base do mais longo período de vida democrática da história moderna do pais. O próprio Freire examina dilemas daquela época que nos acompanham até hoje, como um grande desequilíbrio de poderes, em favor do “presidencialismo imperial” e em detrimento do Congresso, a casa por excelência da democracia; o tratamento insuficiente dos problemas do Judiciário; os impasses relativos à anistia; e a condução da reforma agrária. Em muitos desses casos, formulações constitucionais excessivamente analíticas, ainda que de caráter progressista,: contribuíram para retardar a aplicação prática das medidas de reforma, contrariando a boa intenção de constituintes, inclusive os de esquerda.
De todo modo, está claro que o documento de 1988 marca a retomada vigorosa da construção de uma «era de direitos” no pais, embora, ao longo dos anos noventa, reformas liberais tenham incidido sobre o texto no âmbito da rediscussão do papel do Estado e do mercado, tão própria daquela década. Que balanço fazer dos anos de reforma liberal que, a rigor, começou com Collor e, grosso modo, não parou mais desde então, na falta de inflexões mais visíveis rumo a um desenvolvimentismo de novo tipo? Como entender as sucessivas emendas sofridas pela Carta cidadã? Tratou-se de um aggiornamento necessário, tendo em vista a intensa transformação pela qual passavam a economia e a sociedade em nível planetário, ou, ao contrário, significaram perda generalizada de direitos e inserção subalterna nas engrenagens do capitalismo globalizado?
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Eram uma decorrência de excessos discursivos, que engessavam a ação ordinária dos governos, ou, como afirma Marcelo Cerqueira, chegaram perigosamente a ameaçar “bens públicos, constitucionalmente indisponíveis”, como ás florestas e os rios?
São discussões que ainda hoje animam o debate público, e pessoalmente considero difícil deixar de pensar que todo este tempo, desde 1988, combinou substanciais ganhos democráticos que, aos poucos, vão se enraizando capilarmente na nossa sociedade, com a persistente “crise do desenvolvimento nacional”, que taxas relativamente altas nestes anos mais recentes encobriram, mas não resolveram com firmeza. Discutem-se assim na sociedade os resultados do jogo que, muitas vezes, não são bons, mas, querendo ou não., raramente se põe em questão o essencial, que é. a manutenção da regra democrática, a adesão mais ou n generalizada aos princípios do Estado democrático de Direito. Eventuais quebras das regras do jogo, como a manobra da reeleição em meados dos anos 1990 em beneficio, do governante no poder, ou, mais recentemente, indecentes sugestões de terceiro mandato, têm encontrado. quase’ unânime condenação, ainda que, no primeiro caso, isto só seja possível.retrospectivamente. Não é pouco, num país de vida constitucional conturbada como a nossa.
Um outro eixo importante de discussão aqui presente é a questão da esquerda e dos desafios da sua renovação. Em tempos de crise aguda dos mercados globais cujo paralelo mais evidente é 1929 e a década trágica que, se seguiu, até desembocar no flagelo da Segunda Guerra, é bom ter presente a necessidade de uma esquerda de novo tipo, radicalmente democrática, que.não se deixe: desencaminhar pelo “grave equívoco (de) pensar que o que está ocorrendo hoje é o fim da idéia do capitalismo” (Fréire).
Neste mesmo sentido, Alberto Aggio lança a discussão de um novo reformismo, recuperando semanticamente uma ‘palavra que costumava: cair como chumbo sobre os militantes do velho Partidão, supostamente desqualificando sua opção pela luta legal contra o regime militar. O que se propõe, a respeito, é a ruptura com o padrão bolchevíque / soviético e o cubano / guerrilheiro, ambos conformadores da esquerda brasileira e ambos, flagrantemente insuficientes para compreender nossa realidade e nela agir, introduzindo reformas incisivas, concretas - se não consensuais, pelo menos amplamente majoritárias, apontando para níveis-mais altos de progresso e civilização.
Temos de admitir que o ato de nascimento deste reformismo forte, adepto incondicional da democracia política como o terreno mais favorável para.a luta dos setores “de baixo”, ainda não se deu, nem mesmo como visão geral ‘ou estilo de fazer política aceito pelas forças da esquerda brasileira, na variedade das suas manifestações. E, diga-se de passagem, as dificuldades do PT em relação á Carta de 1988, contra a qual votou ë que assinou, apenas protocolarmente, tais dificuldades são muito ilustrativas de um suposto radicalismo que mal encobre subalternidade e incapacidade de uma verdadeira direção do destino do país e das suas grandes escolhas.
O reformismo forte de que falamos supõe, evidentemente, a incorporação de outras matrizes e orientações além do marxismo, a assimilação de problemáticas novas, como, a da ecologia ou a da questão urbana, que adquirem uma feição antes inteiramente desconhecida e que também são tratadas em outros textos deste número.
A associação pode ser arbitrária, mas não resisto a lembrar que, certa vez, o poeta Caetano Veloso fustigou a selvageria do trânsito, dizendo que nós, motoristas brasileiros, insistimos pateticamente em perder os sinais verdes e avançar os vermelhos. É uma boa imagem para compreender a situação das esquerdas, enquanto não nascer e ganhar vigor este novo reformismo: continuaremos a ansiar por rupturas e revoluções, por ataques frontais ao palácio de poder, enquanto desperdiçamos o sinal escancaradamente aberto às mudanças que a vida em democracia proporciona.