- O Estado de S.Paulo
É preciso considerar os conservadores clássicos para manter viva a corrente da democracia
Até certo ponto inesperada, e por isso ainda vista por alguns como ponto fora da curva ou raio em céu sereno, a pandemia de covid-19 acabou por se impor como o elo que, uma vez bem apreendido, permite lançar luz nova sobre toda uma corrente de fatos e acontecimentos que moldam nosso tempo, particularmente conturbado. Signo ao mesmo tempo da globalização e de suas fragilidades, a faísca que se acendeu há menos de um ano no imprudente “mercado molhado” de Wuhan, espalhando-se por toda parte e praticamente emperrando a máquina do mundo, logo gerou percepções anacrônicas, alimentou negacionismos e confirmou a sensação de que a unificação do gênero humano não é um processo inscrito nas próprias coisas e, portanto, uma marcha triunfal previamente garantida.
A consciência humana, não raramente, costuma correr atrás das mudanças sociais e dos eventos da História, e não há de ser muito diferente desta vez, quando a interdependência de povos e nações, objetivamente estabelecida, convive com instituições políticas em sua maioria restritas ao plano nacional. Somos cidadãos de uma nação, nela votamos e pagamos impostos, sentimo-nos próximos dos governantes que, nos momentos felizes de vida plenamente democrática, podemos eleger ou destituir. Muito mais longe estão os organismos multilaterais, a começar pela ONU; relativamente débeis, com exceção da União Europeia, as tentativas de coordenação supranacional; e ainda fumosa a ideia de uma sociedade civil internacional, em cujo âmbito, mesmo assim e apesar de tudo, já transcorrem manifestações globais antirracistas ou em defesa do meio ambiente, indicativas de que uma cultura de direitos só tem sentido se tender à universalização, como nos ensinaram as grandes revoluções da modernidade.