domingo, 26 de maio de 2019

Opinião do dia: Marco Aurélio Nogueira*

A hostilidade como procedimento tem mantido o governo em campanha, mas não o faz governar. Cria fumaça e ruído, produz problemas sucessivos e nenhuma solução, destrói sem construir, como se seu programa fosse mais negativo do que positivo. Vai assim demolindo pontes, envenenando áreas, erodindo a sociabilidade, criando desertos por onde passa. Oferece em troca tão somente a promessa redentora do “mito”, a cavalo de um Deus confuso e vingativo.

O resultado é que o componente propriamente bolsonarista do governo continua do mesmo tamanho, se não menor. Permanece heterogêneo e sem coesão, sem estrutura organizacional, dependente de bots e ativistas digitais, falando consigo próprio. Mantém-se, na verdade, como uma seita, que tem seus ritos e símbolos, seus devotos, sua máquina de descobrir traidores e inimigos a cada dia.

No caso brasileiro, o horror e o espanto crescem na opinião pública. O governo desfila sua indigência e nada entrega, a crise econômica se aprofunda, a ético-política se prolonga. O presidente não percebe que sua atuação corrói a República ao esvaziar o principal mecanismo que a dignifica, a atividade política. Ou estaria ele querendo precisamente isso?

*Professor titular de Teoria Política e coordenador do núcleo de estudos e análises internacionais da Unesp. “Fumaça, ruído e desertos”, O Estado de S. Paulo, 25/5/2019.

'Estamos em transição, mas sem saber para quê', afirma FHC

Ex-presidente diz que sistema político criado em 1988 desapareceu na última eleição

Vinicius Torres Freire* / Folha de S. Paulo

Fernando Henrique Cardoso diz que sistema político criado em 1988 desapareceu na última eleição, pautada mais pela negação do que pela proposição; sociólogo e ex-presidente acredita que sucessor de Bolsonaro deverá ser um nome carismático.

No princípio da reforma política brasileira está o verbo de um líder quase carismático, afirma o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, 87, em entrevista à Folha, um dia depois das manifestações de 15 de maio.

FHC diz que esse é um caminho arriscado, mas saída provável para a superação da crise do sistema político do pós-1988, que para ele se desmilinguiu, e de um cenário de instituições abaladas pela fragmentação e pelo imediatismo das redes sociais.

Quanto ao impasse criado pelos atritos entre Jair Bolsonaro e o Congresso, FHC diz que a democracia depende de paciência histórica e comedimento no uso da força política.

Pode haver impeachment? FHC diz que continua reticente quanto a essa medida —em sua visão sempre traumática, mas por vezes inevitável. “O que produz impeachment é a confluência da infração legal com a paralisia do governo, quando o Congresso para de decidir”. Não seria o caso agora, avalia.

Quanto à liderança carismática, trata-se de alguém com grande capacidade de comunicação (sim, um Luciano Huck), que pode criar um projeto nacional pactuado que aglutine movimentos políticos novos.

Ao falar de carisma, FHC trata de Max Weber. Para o sociólogo alemão (1864-1920), o líder carismático deve sua força ao reconhecimento de suas características extraordinárias. Isto é, daquelas que lhes são atribuídas por um grupo social que reconhece a autoridade legítima desse líder, de quem espera a transformação da rotina cotidiana, da vida normal e, no limite, da ordem estabelecida.

O ex-presidente observa que PT e PSDB, que organizaram a disputa política por um quarto de século, não perceberam a “tempestade que vinha”. Além das mudanças na interação via redes, o surgimento rápido de grupos sociais e a perda de representatividade de organizações tradicionais da sociedade civil contribuíram para a ruptura e o aumento do conflito nas elites do poder. Há uma transição para não se sabe onde.

“A eleição de Bolsonaro foi consequência do ‘não’, não do ‘sim’. ‘Não quero PT, corrupção, partidos, políticos, desordem, crime’”, diz FHC.

“Nossa elite política é também consequência da mudança muito rápida da sociedade. Tem menos habilidades políticas tradicionais, que a antiga classe dominante tinha. Nossa democracia é mais representativa [agora], mas não quer dizer que seja mais capaz de lidar com grandes problemas institucionais. Mas vai aprender”.

• O governo não forma uma coalizão. O Congresso fala em ter pauta própria. A insatisfação com a situação econômica e social cresce. Na política, onde vai dar isso? 

Algo está errado no nosso sistema institucional. Depois de 1988, todos os presidentes sofreram impeachment ou foram presos, com a minha exceção. Há um sistema de coalizão em que não há partidos, que se deterioraram mais, se desmilinguiram.

A formação de maiorias é cada dia mais difícil. Por outro lado, o nosso sistema é presidencialista, mas o Congresso tem um peso grande, tem força. A Constituição foi preparada para um regime parlamentarista.

Quando o Executivo tem a capacidade de propor uma agenda à nação, quando motiva a nação, o Congresso de alguma maneira se ajusta a essa agenda. Quando o Executivo não tem essa capacidade, o Congresso tenta fazer a agenda e começa a patinar. Estamos nessa fase.

• Crise política ou constitucional? 

O sistema [político] anterior, que nós montamos em 1988, sumiu nessas eleições, depois de muitos problemas. Mas não vejo no Executivo a capacidade de propor uma agenda aceita nacionalmente, porque negocia pouco e não controla o Congresso. Então, abriu-se uma zona de dúvida, de incerteza.

• E então...? 

Como já passei por vários momentos desse tipo ou mais graves do que esse, nunca fui muito inclinado a apoiar impeachments. Continuo não sendo.

Alguns autores recentes nos Estados Unidos chamam a atenção para o fato de que, no sistema americano, há certa dose de tolerância. Não se usam todos os poderes disponíveis. Não é aconselhável o Congresso usar todos os poderes, porque isso vai resultar em um trauma, sem que a população tome consciência dos verdadeiros problemas.

Merval Pereira: Bolsonaro e os militares

- O Globo

Para o cientista político Octavio Amorim Neto, da FGV, os militares teriam um papel central numa crise terminal do governo

A relação do presidente Jair Bolsonaro com os militares, corporação da qual saiu para a política e à qual dedicou prioritariamente seu trabalho parlamentar por 27 anos, tem sido conflituosa devido à intromissão dos que, no núcleo duro do bolsonarismo, vêem no grupo que está no governo o desejo de tutelar o presidente.

O filósofo online Olavo de Carvalho, orientador intelectual dos Bolsonaro, identificou no vice-presidente Hamilton Mourão um elemento desagregador no governo, e passou a atacá-lo, na suposição de que se oferece como alternativa a Bolsonaro.

Em seguida, o ministro Santos Cruz passou a ser o alvo, numa disputa pessoal com Olavo de Carvalho que teve até a clonagem de supostas mensagens de whattsapp em que o general criticava duramente o presidente. Estava em jogo o controle do sistema de comunicação do governo.

A veracidade dos diálogos foi negada por Santos Cruz, que provou ao presidente que é muito fácil montar diálogos fakes no celular. O general teve a ajuda de um filho que trabalha na área de tecnologia em uma empresa israelense de segurança.

São cerca de cem militares nos diversos ministérios e estatais, sendo que oito, além do presidente e do vice, estão no primeiro escalão do governo. Esse grupo, não por acaso, trabalha junto há anos, tendo a maioria feito parte de missões de paz da ONU.

Bolsonaro, que saiu do Exército como capitão, foi punido por questões disciplinares, já então assumindo a posição de porta-voz da corporação nas reivindicações salariais. Na campanha presidencial, quando já havia se tornado o candidato dos militares contra o PT, foi tido, simpaticamente diga-se, como “incontrolável” pelo General Villas Boas, comandante do Exército à época, e hoje assessor especial do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), comandado pelo General Augusto Heleno, tido como o mais influente assessor junto ao presidente.

Bernardo Mello Franco: Brigando com os números

- O Globo

Bolsonaro atacou o IBGE após a alta do índice de desemprego. Agora seus ministros criticam o Inpe, que aponta uma escalada no desmatamento da Amazônia

O desmonte dos órgãos de controle ambiental começou a produzir os efeitos esperados. O desmatamento da Amazônia disparou na primeira quinzena de maio. A cada hora, a floresta perdeu uma área verde equivalente a 20 campos de futebol. Isso apenas nas unidades de conservação, como parques e florestas nacionais.

Os dados são do Inpe, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais. Há três décadas, o órgão usa satélites para monitorar, em tempo real, a devastação da floresta. O trabalho é respeitado pela comunidade científica e orienta a Polícia Federal e o Ibama no combate a crimes ambientais. Agora está sob ataque do governo de Jair Bolsonaro.

O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, já disse que os números do desmatamento “não são precisos”. Em janeiro, ele anunciou o plano de gastar R$ 100 milhões na contratação de um sistema privado de monitoramento. O Inpe precisou lembrá-lo de que já faz isso desde 1988, por um custo bem menor: R$ 2,8 milhões anuais.

Na quarta-feira, o chefe do Gabinete de Segurança Institucional, Augusto Heleno, avançou algumas casas na rota do negacionismo. Em entrevista à GloboNews, ele endossou a tese de que a agenda do meio ambiente seria controlada por um complô internacional.

Ascânio Seleme: Bolsonaro, o infiltrado

- O Globo

Algumas poucas vezes ao longo dos seus primeiros cinco meses de governo o presidente Jair Bolsonaro surpreendeu positivamente. Sua declaração contra os que querem ir ao ato de hoje para atacar o Supremo Tribunal Federal e o Congresso Nacional foi uma dessas vezes. Bolsonaro fez a afirmação durante café da manhã com jornalistas, o quinto encontro desse tipo marcado pelo presidente, e que também podem ser incluídos na sua lista de bola dentro. Quem defender o fechamento do STF e do Congresso “estará na manifestação errada”, disse. “Isso é manifestação a favor de Maduro, não de Bolsonaro”, concluiu o presidente.

Não podia estar mais correto. Os Poderes constituídos são a base da democracia. Pode-se até criticar o Supremo e o Congresso por decisões que tomarem, mas jamais pregar o seu fechamento. Os que acusam o Judiciário e o Legislativo pelos problemas de Bolsonaro estão equivocados. Os que sugerem que a saída é interromper o funcionamento das duas casas maiores são pessoas de baixa qualificação cognitiva e falam da boca para fora sem medir consequências.

O próprio Bolsonaro já atacou o Supremo mais de uma vez. Ele também defendeu, pouco antes da eleição, aumentar de 11 para 20 o número de ministros do STF. “Para equilibrar as coisas”, nas palavras de seu filho Eduardo, o ideólogo da família, sugerindo um viés de esquerda dos membros da casa. Bobagem, claro, mas enfim, era assim que os Bolsonaro pensavam no ano passado. O mesmo filho disse, algum tempo antes, que bastariam um soldado e um cabo para fechar o Supremo.

Míriam Leitão: Entendendo o cenário Guedes

- O Globo

Há grandes riscos no cenário de não aprovação da reforma da Previdência, mas é melhor entendê-los sem os exageros do ministro Paulo Guedes

O ministro Paulo Guedes tingiu com cores fortes o futuro sem a reforma da Previdência. Disse na entrevista à “Veja” que o mercado fugiria, e o país seria “engolfado”. Num primeiro momento, viraria a Argentina, que tem hoje uma inflação de 40%, depois viraria a Venezuela, cuja economia está em colapso. Há riscos adiante de nós, de fato, mas é melhor entendê-los sem exageros nem soluções mágicas.

O que o ministro tentou explicar é que a reação natural do mercado financeiro é se antecipar aos riscos. Mas os bancos, corretoras e fundos não estão desligados da população em geral, que tem aplicações financeiras. Quando Paulo Guedes diz que “o mercado foge”, ele está falando que investidores vão procurar outros tipos de ativos, reduzindo o dinheiro disponível para os títulos da dívida pública. Os grandes investidores no Brasil são os fundos, de pensão ou formados pelos bancos para seus clientes. Essa fuga não será de meia dúzia de banqueiros. Ela só ocorrerá se os investidores brasileiros, pequenos, médios ou grandes, começarem a ter dúvidas sobre a capacidade de o Tesouro pagar a dívida.

A reforma da Previdência não é nem a solução milagrosa se for aprovada, nem o estopim da bomba atômica caso não seja aprovada. Mas o Brasil está diante de um cenário realmente perigoso. A dívida pública bruta subiu muito nesta década. Estava em 52%, em 2011, está agora em 78%, e terminará o ano que vem em 79%, se a reforma for aprovada. A dívida é cara, a dinâmica do seu crescimento é acelerada, os papéis têm prazos curtos, os déficits anuais alimentam a alta do endividamento público.

Reformas têm a ver com distribuição de renda e pobreza: Editorial / O Globo

Previdência cria privilégios, e gastos sociais como um todo não chegam às crianças pobres

A pauta em que a reforma da Previdência está colocada é na verdade mais ampla. Não que as mudanças nos sistemas de seguridade deixem de ter relevância. Têm, e muita. As despesas com aposentadorias e pensões equivalem à metade de todos os gastos primários (com a exceção dos juros da dívida) do Orçamento da União. Nos estados e municípios, ocorre o mesmo, e chega até a ser mais grave. Há o debate sobre as propostas para a reforma previdenciária, mas existe também, numa visão mais ampla, a necessidade de se entender como a Previdência e toda a assistência social promovem, ao contrário do que se possa achar, injustiças sociais. Chega a ser um contrassenso.

Há pouco, o jornal “Valor Econômico” publicou trabalho de Daniel Duque, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre), da Fundação Getulio Vargas, sobre a evolução do Coeficiente de Gini, no início deste ano.

O indicador, que mede o nível de concentração de renda — quanto mais próximo de zero, melhor; e pior quando sobe em direção de um —, mostra degradação na distribuição de renda neste início de ano. Mantém a tendência negativa observada desde pelo menos 2015. Não é coincidência que tenha sido este o ano do aprofundamento da recessão iniciada em 2014, pelo erros cometidos no governo Dilma, e que se estendeu até 2016. Os sinais posteriores de tênue recuperação, porém, até hoje não se transformaram numa retomada consistente do PIB.

O desemprego atingiu 14 milhões em 2017, e se mantém na faixa dos 13 milhões. A renda terminaria mesmo se concentrando, porque perdem emprego os menos qualificados, e quando contratações voltam a ser feitas, eles não são os primeiros beneficiados.

*Roberto Romano: O inimigo adulador

- O Estado de S.Paulo

Saibamos discernir, rápido, o joio do trigo, pois nossas lágrimas serão de tormento

O século 20 gerou a noção do inimigo político. O nazismo identificou-o com os judeus, os ciganos, os homossexuais. Mas também integrou na lista os liberais, o sistema financeiro e os socialistas. A União Soviética perseguiu os “inimigos do povo”.

Carl Schmitt, aceito por setores ideológicos vários, teve a glória duvidosa de teorizar a tese sobre o inimigo. O jurista recusa a doutrina liberal sobre o Estado e criminaliza adversários. Ele usa o Léxico de Forcellini para expor o conceito de inimigo como “hostis”. Mas nas mãos de Schmitt a polissemia, exposta por Forcellini, some em proveito do sentido ideológico almejado. Refutando a leitura universal do amor cristão, diz o reacionário germânico: “Na luta milenar entre o cristianismo e o Islã, nenhum cristão teria a ideia (ao ler Mateus, 5, 44 e Lucas 6, 27, RR) de que seria preciso, por amor aos Sarracenos ou Turcos, entregar a Europa ao Islã, em vez de a defender”. Tal ideia do inimigo levou o Estado alemão a declarar guerra mortal (e como foi mortal!) aos inimigos. Dos judeus aos “seres degenerados” – homossexuais, socialistas, liberais, católicos que não apoiaram o regime, protestantes –, todos foram tratados como inimigos.

Quem deseja conferir o campo usado e distorcido por Schmitt leia o Lexicon Totius Latinitatis, de Egidio Forcellini (1775, reprint 1940). É relevante o livro de Fernando Bianchini Democracia Representativa sob a crítica de Schmitt e Democracia Participativa na apologia de Tocqueville (2014).

Ninguém precisaria usar o conceito tóxico de Schmitt por falta de conhecimento sobre o tema. Na relação amigo/inimigo (assumida pelo atual ocupante do Planalto) consultemos o padre Antonio Vieira no Sermão da Primeira Sexta-Feira da Quaresma (1651). O inimigo, diz ele, não é o que cerca as cidades e faz a guerra contra o nosso Estado. “Os que nos fazem guerra (...) não se chamam propriamente inimicos, chamam-se hostes. Inimicos são os inimigos por inimizade e ódio, como costumam ser os de dentro: hostes são os inimigos por hostilidade e por guerra, que só podem ser os estranhos e os de fora”. Se o estrangeiro não pode ser inimigo, quem o seria? Sábios cristãos e do paganismo “ensinam concordemente que os inimigos dos reis, e os maiores inimigos, são os aduladores”. Os palacianos assumem tal posição. “E se isto não veem claramente todos os reis, é porque é tal o doce veneno da lisonja que, entrando pelos ouvidos, lhes cega também os olhos.” Agostinho “ensina que há dois gêneros de inimigo: uns que perseguem, outros que adulam; mas que mais se há de temer a língua do adulador que as mãos do perseguidor”.

*Rolf Kuntz: Passeata é inútil quando o problema é o despreparo

- O Estado de S.Paulo

Recuo no caso das armas foi só mais um, desde a bobagem sobre a embaixada em Israel

Vai mal um presidente quando precisa de grupos na rua em manifestações de apoio. Collor precisou. Pode ir mal um país quando seu presidente recomenda aos apoiadores evitar ataques ao Congresso e ao Judiciário. Que apoiadores são esses? Estarão enganados quanto às convicções democráticas de seu líder? Podem ter-se enganado, talvez, quando esse líder repassou em rede um texto sobre a impossibilidade de governar com as instituições. O tom do texto era golpista, mas ele declarou, depois, havê-lo simplesmente repassado.

Por que repassou, se discordava, e sem adicionar uma palavra de rejeição? Isso nunca foi explicado, mas explicar nunca foi o forte desse presidente. Ele comprovou essa qualidade, mais uma vez, ao anunciar um projeto capaz de render mais que o trilhão de reais pretendido pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, com a reforma da Previdência. O projeto, soube-se depois, é uma fórmula para o governo ganhar dinheiro com a atualização de valor de imóveis incluídos na Declaração de Renda. Na prática, seria uma antecipação do imposto pago depois da venda. E se esse bem nunca for vendido? A ideia básica já foi rejeitada em países do mundo rico. Para o presidente e alguns de seus auxiliares, deve ser uma grande novidade. A propósito: o ganho para o Tesouro, se houver, ficará muito longe do trilhão, segundo fonte do próprio governo.

Enquanto o presidente se ocupava da manifestação, estranhamente descrita por alguns como um “protesto a favor do governo”, congressistas ocupavam espaço político, aprovavam na Câmara a medida provisória de recomposição dos ministérios e punham em tramitação um projeto próprio de reforma tributária.

Vera Magalhães: Recall diário

- O Estado de S.Paulo

Redes sociais e polarização criam clima de escrutínio permanente sobre governo

Jair Bolsonaro vive um clima de recall diário desde que assumiu a Presidência. O escrutínio permanente, longe de ser uma articulação perversa de forças ocultas, é reflexo da própria maneira de governar do presidente, da atuação de seu núcleo mais próximo e da forma como ele se relaciona com a sociedade, a imprensa e o Congresso.

As manifestações do dia 15, contra os cortes na Educação, foram um produto desse clima de enquete constante quanto às realizações ou os fracassos de um governo que ainda não completou um semestre. Os atos marcados para hoje têm a mesma natureza, e passaram a ser organizados como uma tentativa de dar uma resposta aos anteriores, como se o governo necessitasse prematuramente buscar uma legitimidade que acabou de lhe ser dada pelas urnas.

É o segundo presidente a entrar num ciclo de contestação e reafirmação de mandato em tempo real.

Dilma Rousseff enfrentou o primeiro de uma série de panelaços em 22 de fevereiro de 2015. A partir dali, foram atos de rua cada vez mais volumosos, à medida que as revelações da Lava Jato e a incapacidade de compor politicamente e conduzir a economia para fora do poço a que ela a levou ditaram o caminho para sua queda, em abril de 2016. As pedaladas fiscais, que ocorreram, foram só a justificativa jurídica para um alinhamento de astros que incluiu povo, economia e política.

Bolsonaro foi eleito como produto desse caldo de crises que se iniciou em 2013 e fermentou até 2018. Vitorioso graças ao desgaste incontestável do revezamento entre PT e PSDB como forças hegemônicas, prometeu levar a cabo uma agenda liberal, mas, desde que assumiu, seu governo é um embate permanente entre essa pauta e um chorume revanchista e ideológico que divide alas da própria administração, trava a relação com o Congresso e anima as arquibancadas pró e contra com muito falatório e pouco debate.

*Affonso Celso Pastore: Estagnação ou depressão?

- O Estado de S. Paulo

Podemos discutir se estamos vivendo uma estagnação ou uma depressão, mas o fato objetivo e grave é que a população empobreceu.

No lugar de analisar a substância dos problemas, muitos preferem discutir os adjetivos. A recessão que se iniciou em 2014 terminou no segundo trimestre de 2017, com o crescimento medíocre de 1,1% naquele ano, repetido em 2018. Em 2019, essa taxa deve se repetir, ou ser ainda menor. O PIB per capita, que desconta o crescimento populacional, está 8% abaixo do pico prévio, e vem crescendo apenas a 0,3% ao ano. É uma taxa tão baixa que seriam necessários 233 anos para que a renda per capita dobrasse! Podemos discutir se estamos vivendo uma estagnação ou uma depressão, mas o fato objetivo e grave é que a população empobreceu. Para piorar, não há indicações de que o governo tenha uma estratégia correta para reverter o problema.

Saídas de recessões dependem da expansão da demanda. No caso atual, devido à desaceleração do crescimento mundial, não podemos contar com o crescimento das exportações. Diante da necessidade de consolidação fiscal, o governo não pode usar políticas fiscais contracíclicas. Com a renda per capita baixa e estagnada, não há como gerar um aumento suficiente do consumo. Restaria a recuperação dos investimentos em capital fixo que, entretanto, são desestimulados pela capacidade ociosa na indústria, e pela insegurança quanto à aprovação de uma reforma da Previdência.

Vox Populi: Editorial / O Estado de S. Paulo

Com apenas cinco meses de mandato, a aprovação ao governo de Jair Bolsonaro derrete a olhos vistos. Pesquisa da XP/Ipespe mostra que, numericamente, a avaliação negativa do presidente já supera a positiva. Segundo o levantamento, feito entre os dias 20 e 21 de maio, com margem de erro de 3,2 pontos porcentuais, subiu para 36% o número de entrevistados que consideram o governo ruim ou péssimo - há duas semanas, eram 31%. Já o porcentual de entrevistados que consideram a gestão ótima ou boa passou de 35% para 34% no mesmo período. Ou seja, em duas semanas, Bolsonaro perdeu seis pontos porcentuais de aprovação.

O derretimento tem sido constante desde fevereiro, quando a desaprovação a Bolsonaro estava na casa dos 17%. Já a aprovação ao presidente oscilou menos - saiu de 40% em fevereiro para 34% agora, indicando que pode haver uma espécie de “núcleo duro” de apoio ao governo. O grosso do eleitorado que passou a condenar a gestão do presidente provavelmente saiu da parcela que considerava Bolsonaro “regular” - que passou de 31% há duas semanas para 26% na última pesquisa. Isso sugere que a paciência dos que ainda esperam alguma coisa positiva do governo está acabando rapidamente.

Luiz Carlos Azedo: Aprendendo a conviver

- Nas entrelinhas / Correio Braziliense

“Bolsonaro governa como se estivesse numa montanha-russa, se arrasta na subida das reformas institucionais e desce vertiginosamente na agenda dos costumes”

Hoje é dia da grande marcha a Brasília dos partidários do presidente Jair Bolsonaro, que promete se manter ao largo da manifestação, assim como seus ministros e a maioria das lideranças políticas que o apoiam. Convocada para pressionar o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF), num momento de esgarçamento das relações entre os poderes, no decorrer da semana, a marcha foi sendo desarticulada e virou um duplo problema: caso seja realmente de grande envergadura, a pressão se voltará contra o recuo do presidente da República e cobrará sua participação no evento; se for um mico, sinalizará seu isolamento político e fragilidade perante o Congresso. Os dados foram lançados, mas é um jogo de perde-perde, porque uma escalada na radicalização política turva os horizontes da economia.

A oposição observa, sem capacidade de iniciativa política e temerosa de que a crise se aprofunde institucionalmente. O PT não quer nem ouvir falar em impeachment, muito menos na renúncia do presidente da República. A contradição principal dessa cena política é uma disputa entre os setores de extrema-direita umbilicalmente ligados ao clã Bolsonaro e as forças mais moderadas de centro-direita que o apoiaram no decorrer do processo eleitoral, sobretudo, no segundo turno. Esses setores têm duas âncoras: os militares, que controlam o Palácio do Planalto, e os políticos, cuja influência na Esplanada se restringe a alguns ministérios mas controlam o Congresso. Há uma certa sensação para o clã Bolsonaro e seus adeptos de que o “mito” ganhou, mas não levou. Será?

Bolsonaro governa como se estivesse numa montanha-russa, se arrasta na subida das reformas institucionais e desce vertiginosamente na agenda dos costumes. A aprovação da reforma da Previdência e outras mudanças com impacto na economia segue a reboque desses altos e baixos, que imobilizam os investidores e causam turbulências no mercado financeiro. Há todo tipo de análises sobre o comportamento do presidente da República, que emite sinais contraditórios em relação aos demais poderes, principalmente o Congresso. Faz um governo de avanços em recuos, em razão dos compromissos de campanha e das reações da sociedade civil e do mercado. Se há algum método no seu estilo de governar, é o do ensaio e erro. Às vezes parece apostar na teoria do caos, como bem disse o ex-presidente José Sarney, mas os militares que o cercam não estão nessa, foram educados nos princípios da bandeira: ordem e progresso, ou seja, seguem o velho positivismo castrense.

*Angela Alonso: As almas das ruas

- Folha de S. Paulo

Se ato for expressivo, Bolsonaro se cacifa para peitar Congresso

“Para compreender a psicologia da rua não basta gozar-lhe as delícias como se goza o calor do sol e o lirismo do luar. É preciso ter espírito vagabundo, cheio de curiosidades malsãs”, escreveu João do Rio (“A Alma Encantadora das Ruas”).

Rua cheia magnetiza. Gera políticos apreensivos e intelectuais esperançosos. Ambos tendem a vê-la como uma homogeneidade: “o povo”, “a multidão”.

Mas termos assim genéricos pouco explicam, porque manifestações de porte jamais são homogêneas. Volume surge quando há múltiplos organizadores. Protesto grande resulta de trabalho duro. Requisita planejamento, convocação, organização, financiamento.

Quem faz o serviço são grupos às vezes mais —partidos, sindicatos— às vezes menos —associações, movimentos, coletivos— estruturados. Claro, há aderentes avulsos, mas só se adere ao que já se organizou.

Variedade de organizadores, variedade de agenda. Protesto é democrático porque dispensa crachá para entrar. Quem convoca não controla quem vai nem os demais convocadores —muitas vezes, nem as bandeiras levantadas.

Grandes manifestações são colcha de retalhos de várias pequenas simultâneas. Foi assim em 2013, quando havia muitos movimentos, mas apartados em campos diferentes: o autonomista, focalizando novas identidades, o socialista, em torno de direitos sociais, e o patriota, com a anticorrupção. Distintos, mas lado a lado.

A história foi outra em março de 2015. O campo patriota tomou a rua sozinho e vertentes começaram a assomar. A diferenciação ficou suspensa durante a campanha “Fora Dilma”, respondida pela contrária, “Não vai ter golpe”. Esse ciclo de protestos polarizou a rua entre defesa e ataque ao impeachment, ambos os lados massudos, mas separados. Em 2013, os contrários se suportavam; em 2015, não.

A intolerância cresceu em 2018, em atos sucessivos de sentido oposto (“Ele não”, “Ele sim”) nas vésperas da eleição. Um lado levou na urna, o outro sobreviveu na rua e se reaglutinou no “Lula livre”. Mas o foco no ex-presidente limitava a adesão.

*Janio de Freitas: Sinais do risco

- Folha de S. Paulo

A democracia começa a ficar fora de controle

As palavras, a forma, variam um pouco. O motivo é invariável. "A democracia está em risco?" / "resistirá por quatro anos?" / "vão esperar que aconteça o quê?"

As perguntas são também respostas preliminares, como expressões de um sentimento que se espraia e se aprofunda. Indagações inquietas são percebidas até em parlamentares vividos que se apresentaram, no início da legislatura, dispostos a apoiar Bolsonaro.

Enganam-se os que difundem as sucessivas derrotas de Bolsonaro e Sergio Moro no Congresso como represália, por falta de toma lá dá cá, ou falha de coordenação no governismo. Bolsonaro tentou. Mas as promessas de mais ministérios para mais nomeações e, ainda melhor, de R$ 1 bilhão para destinação pelos parlamentares não evitaram as derrotas dele e de Moro.

Bolsonaro é adepto confesso de ditadura. Os contatos que seus emissários têm buscado, no exterior, são com os governantes opressores, na Hungria, na Polônia, na Itália, em Israel. Não é à toa, claro. Tanto pode ser para uma rede de apoios mútuos do direitismo extremado, como —o mais provável— para coleta de vitoriosos modelos de avanço sobre o Legislativo e o Judiciário.

Não falta quem esteja atento, na Câmara e no Senado brasileiros, para os atos de desgaste que Bolsonaro lhes dirige. Agora adotados também por Paulo Guedes, com sua ameaça, recebida como chantagem política, de deixar o governo se a "reforma" da Previdência não sair do Congresso ao seu agrado. O provável é que Paulo Guedes se surpreenda com a resposta prática à ameaça.

Hélio Schwartsman: Um presidente reativo

- Folha de S. Paulo

Há a impressão de que Bolsonaro não tem um plano para atingir seus objetivos

Jair Bolsonaro se meteu numa encrenca. Não, não falo de ele ter assumido a Presidência, mas da convocação de seus apoiadores para participar de manifestações pró-governo neste domingo. Do nada, o presidente criou para si o que os americanos chamam de “lose-lose situation”, isto é, colocou-se numa posição em que, não importa o que ocorra, ele sairá perdendo.

Se as manifestações não reunirem um público grande, ou seja, se der para carimbar que foram um fracasso, o governo terá dado uma inédita demonstração de fraqueza —e com apenas cinco meses de mandato.

Se, por outro lado, os protestos ficarem apinhados de gente, a pressão sobre o Congresso e o STF tornará mais tenso o relacionamento entre os três Poderes, dificultando o futuro de sua administração, que depende do Legislativo e do Judiciário para concretizar praticamente todos os seus projetos.

Mesmo no mais verossímil cenário de copo meio cheio, meio vazio, no qual as manifestações não possam ser classificadas nem como fiasco nem um retumbante sucesso, Bolsonaro não sai incólume. Ele já perdeu pontos ao expor divisões entre seus apoiadores. Grupos fortemente vinculados ao presidente, como o MBL e o Vem pra Rua, anunciaram publicamente que não estariam nos atos. O próprio Bolsonaro pulou fora, e proibiu ministros de participar.

A estratégia de atiçar as massas contra o Legislativo e Judiciário só faria sentido se o presidente tivesse planos reais de investir contra os dois Poderes. E, mesmo assim, a abordagem racional teria exigido que atacasse com carga total, não que, no instante seguinte, se pusesse a contemporizar e esvaziar os protestos.

Bruno Boghossian: Castelo de areia

- Folha de S. Paulo

Auxiliares de Bolsonaro já veem risco em choques com Congresso

A ficha começou a cair em alguns gabinetes do Planalto. Parte dos auxiliares de Jair Bolsonaro considera um risco o comportamento do partido do presidente e acredita que a estratégia de apostar na pressão das ruas contra o Congresso pode levar o governo ao precipício.

O primeiro teste da bancada lacradora, que usa a gritaria das redes para constranger os demais deputados, mostrou aos assessores presidenciais que esse modelo é insustentável. Enquanto blogueirinhos do PSL festejavam os 210 votos obtidos na derrota que tirou o Coaf de Sergio Moro, outros aliados de Bolsonaro assistiam a um desmoronamento.

A sigla se tornou um problema para os articuladores que estão verdadeiramente interessados em aprovar os projetos de interesse do governo. Em um par de dias, os parlamentares conseguiram descumprir acordos firmados dentro do palácio e ofenderam até colegas que estão dispostos a votar a favor de Bolsonaro.

Vinicius Torres Freire: A conversa fiada do parlamentarismo

- Folha de S. Paulo

Sem rumo, governo, dinheiro e dividido, Brasil volta a falar de mudar de regime

Quando a elite política está perdida, ressurge a conversa de parlamentarismo, seja “branco”, pingado, semidesnatado ou até integral, com mudança de fato de regime de governo.

Isso deu em nada ou jamais prestou, em 1961, 1988, 1993 ou 2016. No entanto, a pressão do presidente e do bolsonarismo contra o Congresso incita medo e revolta parlamentar, clima propício para o impasse, beco sem saída onde justamente vivem fantasmas ou fantasias como a do parlamentarismo.

Vários senadores, não apenas tucanos, planejam lançar a mudança constitucional para o governo que começa em 2022. Vários deputados, no limbo entre a falta de liderança do governo e a pressão de ruas e redes, se interessam pelo assunto.

Além desse devaneio, há o programa conhecido, mas ainda tateante, de limitar os desvarios de Jair Bolsonaro e de substituir a inoperância do governo. Como se tem sabido, a Câmara em particular pretende, imagina ou fantasia:

1) ter “pauta própria”, a começar pelas reformas da Previdência e tributária;

2) limitar o poder do presidente de baixar medidas provisórias;

3) evitar que Bolsonaro faça nomeações estrambóticas para agências de governo, Ministério Público e Judiciário;

4) derrubar decretos ilegais, ineptos ou repugnantes do presidente, que tem apreço especial pelo instrumento.

Apesar dessas vontadezinhas de poder, a voz esganiçada das redes e a ameaça das ruas assustaram deputados, como se notou nas votações da semana passada. O ronco das redes também fez aumentar na Câmara aquela raiva derivada do medo. Um dos principais motes das manifestações convocadas pela extrema direita neste domingo (26) é “Contra o centrão”.

Além disso haverá faixas e discursos pela reforma da Previdência, pela Lava Jato e gritos golpistas. Desse modo, o centrão e, em geral, o miolão do Congresso, mais de 300 deputados, ficam no triângulo das bermudas assim demarcado: a) pelos chinelos de Bolsonaro, que os detesta; b) pelas ruas adversárias da reforma; c) pelas ruas que os odeiam e os pressionam a votar com o presidente, até pela reforma.

Clóvis Rossi: A Europa entre o sonho e o pesadelo

- Folha de S. Paulo

Em risco, o modelo menos ruim até agora inventado

Se é fato que o modelo europeu corre riscos a partir da eleição para o Parlamento Europeu, que termina neste domingo (26), então está em risco o que, para o meu gosto, é a menos ruim de todas as fórmulas que o ser humano inventou até agora.

Por modelo, entendo não apenas o processo de integração, que agora abraça 28 países (ou 27, se o Reino Unido sair mesmo), mas também o sistema de bem-estar social. Não é comum a todos, mas cada país consegue preservar uma razoável coesão social.

Os caminhoneiros —que estão de novo na moda no Brasil— também deveriam gostar do que faz o Parlamento Europeu: aprovou regras para definir o tempo que cada motorista de caminhão pode dirigir e quanto deve descansar em países diferentes do seu próprio.

Não é mais saudável do que discutir a tabela de fretes?

Mais legislação que o Brasil deveria no mínimo copiar: em 2018, o Parlamento enfrentou o lobby da poderosa indústria automobilística alemã para obrigar fabricantes de veículos a cortar as emissões de poluentes mais do que havia determinado a própria Comissão Europeia (o braço executivo do conglomerado).

Para os muitos brasileiros preocupados com o vazamento de seus dados pessoais, outro exemplo: também em 2018, o PE negociou uma regulamentação de proteção de dados que limita os meios de cada empresa para coletar dados e o que fazer com eles.

Algazarra autoritária: Editorial / Folha de S. Paulo

Instituições impediram Bolsonaro de engrossar o coro de manifestações anômalas

Os atos marcados para este domingo (26) no país estão envolvidos numa névoa de incerteza. Não se sabe bem a que vieram, nem tampouco quem exatamente os estimula.

Fala-se em reafirmar respaldo ao presidente Jair Bolsonaro (PSL). Cogita-se criticar o chamado centrão e a “velha política”. Ensaia-se um grito em defesa da Lava Jato.

Parte dos agitadores hostiliza o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal. Um líder caminhoneiro prometeu que haverá tumulto de norte a sul e um cerco de veículos à sede do Legislativo federal, qualificado por ele de “câncer”.

Em mais de três décadas de regime, pela primeira vez as instituições democráticas no Brasil têm de lidar com rebentações políticas abertamente autoritárias. A situação se complica porque o presidente elegeu-se com o apoio desses grupos, os quais adulou.

Não se pode perder de vista, no entanto, a dimensão ainda diminuta desses nichos de truculência e, sobretudo, a repulsa crescente que suas invectivas têm despertado em organizações civis e estatais.

Após testar as águas, Bolsonaro parece ter percebido o risco de isolamento em que incorreria se contribuísse para inflamar as manifestações deste domingo. Afirmou que não iria aos atos e desestimulou a participação de seus ministros. Também criticou os vitupérios contra o Supremo e o Congresso.

Instinto político, mais que convicção, motivou o presidente, pois o quadro não favorece aventuras.

Enquanto o governo exibe desnorteio, o Congresso tolhe prerrogativas e desejos do Planalto e vislumbra uma agenda própria de votações. O vice-presidente toma distância cautelar das confusões promovidas ou toleradas pelo titular.

Ricardo Noblat: Bolsonaro nada aprendeu, mas nada esqueceu

- Blog do Noblat / Veja

Amanhã será outro dia
Dê no que der as manifestações bolsonaristas marcadas para hoje, o Congresso não se deixará abater por elas. Muito menos o Supremo Tribunal Federal, alvos preferenciais dos que desejam governar com braço forte e a salvo das restrições próprias da democracia.

O presidente Jair Bolsonaro pode contar com muito apoio nas redes sociais que o ajudaram a se eleger, mas não foram elas que mais pesaram para o milagre registrado em outubro último. Pesou o efeito facada. E pesou, e muito, a rejeição ao PT e ao seu chefe preso.

As pesquisas de avaliação do governo feitas de janeiro passado para cá mostram que uma parte dos eleitores de Bolsonaro começa a debandar de suas fileiras. Cresce o número daqueles que o culpam pela desalentadora situação econômica do país que só faz se agravar.

Os donos do dinheiro querem as reformas, mas já concluíram que elas dependem pouco de um governo amador, estabanado, sem projeto para o país, e que aposta invariavelmente em conflitos. Elas dependem do Congresso onde o governo carece de maioria.

A parte mais poderosa e influente da mídia é hostil a um governo que lhe devota desprezo e que só deseja manietá-la. Não há sinais no horizonte de que Bolsonaro planeje se reinventar, convertendo-se em um presidente normal e capaz de compartilhar o poder.

*Gaudêncio Torquato: Os enviados de Deus

- Blog do Noblat / Veja

Governantes que precisam apelar
Muitos governantes invocam o nome de Deus como escudo, registra a história. Em seu reinado, o ditador Franco, “caudillo da Espanha pela Graça de Deus” referia-se sempre à Providência Divina: “Deus colocou em nossas mãos a vida de nossa Pátria para que a governemos”. A fascista Falange Espanhola o declarou “responsável perante Deus e a história”.

Monarcas justificam tudo pelo direito divino, independentemente da vontade dos súditos. Hassan II, no Marrocos, se declarava descendente do profeta Maomé: “Não é a Hassan II que se venera, mas ao herdeiro de uma linhagem dos descendentes do profeta Maomé”.

Hirohito, imperador do Japão de 1926 a 1989, era visto como divindade. Criou uma aura, distante da população que viveu guerras e mortes. Vestia-se como um “imperador divino e perfeito”, descendente da deusa do sol, Amaterasu.

O ditador Idi Amin Dada, de Uganda, garantia ao povo que conversava com Deus em sonhos, espécie de aval aos seus atos. Um dia perguntaram: “o senhor conversa com frequência com Deus”? Ele: “Sempre que necessário”. Já em Gana, os eleitores cantavam assim a figura de Nkrumah: “o infalível, o nosso chefe, o nosso Messias, o imortal”.

Aqui se eleva aos céus a figura de Jair Bolsonaro. A quem um pastor evangélico do Congo, Steve Kunda, assim se refere: “Na história da bíblia, houve políticos que foram estabelecidos por Deus. Um exemplo, o imperador da Pérsia, Ciro. Antes do seu nascimento, Deus fala através de Isaías: ‘Eu escolho meu sérvio Ciro’. E o senhor Bolsonaro é o Ciro do Brasil”.

O nosso Messias jogou o vídeo nas redes sociais. E entoou: “Brasil acima de tudo; Deus acima de todos”.

Para reforçar, o bispo Edir Macedo pede que Deus ‘remova’ quem se opõe a Bolsonaro, acusando políticos de tentarem “impedir o presidente de fazer um excelente governo”.

Novas para o século 21

O sociólogo italiano veio ao Brasil para lançar o livro 'Uma Simples Revolução' e concedeu entrevista ao 'Estado'

Carlos Eduardo Entini / O Estado de S.Paulo / Aliás

O sociólogo italiano Domenico de Masi já nos propôs o ócio criativo e agora, em seu último livro, propõe uma revolução, sem pólvora, sem sangue. Mas com novos entendimentos. O principal deles é que vivemos em um sociedade pós-industrial na qual o trabalho é menos necessário para se produzir riqueza e é mais intelectual do que braçal. Consequentemente há o aumento do tempo livre. Portanto, o desemprego, que veio para ficar, é uma questão estrutural e deve ser encarado de outra forma: o trabalho “deve ser redistribuído, como deve ser a riqueza”, explicou De Masi na conversa que teve com o Estado quando visitou São Paulo este mês. Se assim fosse, prossegue o sociólogo, nascido na comuna de Rotello há 81 anos, todos os desempregados estariam ocupados imediatamente.

Parece tudo tão simples, certo? Pois para De Masi é assim que tem que ser, porque “o papel do intelectual é transformar as coisas complexas em coisas simples”. É esse o esforço do livro Uma Simples Revolução, recém-lançado no Brasil. Em 81 capítulos, De Masi trata de uma miríade de assuntos, mas sempre com o mesmo objetivo: dar ao leitor um panorama de onde estamos e como aqui chegamos. Segundo o autor, o momento em que vivemos não é o melhor mundo possível, mas certamente o melhor até hoje.

Além da redistribuição do trabalho reduzindo a carga horária, a simples revolução viria com o trabalho à distância, a maior presença de mulheres no mercado e de investimentos em todas “as tecnologias possíveis para libertar o homem do trabalho, sempre produzindo mais riquezas”. E, por outro lado, entender que o ócio é produção. Exercê-lo, explica De Masi, é fazer três coisas ao mesmo tempo: trabalho, produzindo riquezas; estudo, produzindo conhecimento e divertimento, produzindo bem estar.

Leia trechos da conversa:

Conselhos de Gilberto Freyre ao Brasil

Sociólogo analisa o cotidiano brasileiro no livro 'Crônicas Para Jovens'

Ieda Lebensztayn* / O Estado de S. Paulo / Aliás

E aí, beleza? Expressão dos jovens, essa gíria condensa no substantivo “beleza” um cumprimento ou pedido de confirmação do interlocutor. Eis que, paradoxalmente, a palavra “beleza” se multiplica nas falas, porém seu sentido resta escondido ou banido do dia a dia. Já explico: este papo de jovens, cotidiano e beleza vem a propósito de uma bela edição recente da Global: Gilberto Freyre: Crônicas para Jovens.

De modo preciso e convidativo, Gustavo Henrique Tuna cuidou da seleção e organização dos textos e preparou aparatos – a apresentação sobre o gênero crônica, o prefácio, a nota biográfica e referências bibliográficas a respeito de Gilberto Freyre, além de informações sobre as crônicas escolhidas. Esse rico material desperta nos leitores jovens, como em todos que desejamos ter o espírito jovem, o interesse de conhecer melhor o sociólogo e escritor.

Em Percursos da Crônica, Gustavo Tuna delineia um histórico desse gênero textual no Brasil, emprestando do próprio assunto a combinação de objetividade e sutileza que marca seus melhores representantes.

Memorável a citação de Machado de Assis sobre a origem da crônica, que teria nascido da conversa entre duas vizinhas: a “debicar os sucessos do dia”, elas falam do calor, logo da roupa mais ensopada que as ervas do jantar, passam para as plantações do vizinho, daí para os amores dele. E essa expressão machadiana de 1877, o “debicar” os fatos cotidianos, traduz a forma prazerosa, leve e aguda, como a crônica é capaz de nutrir os fregueses.

Organizador de um volume de crônicas de Rubem Braga, Gustavo Tuna conhece bem o gênero e seu potencial poético, de fazer enxergar mais significados nos fatos miúdos. Escreveu notas a De menino a homem, de Freyre, bem como o livro Gilberto Freyre: entre tradição e ruptura.

Nascido no Recife, Pernambuco, em 1900, Gilberto Freyre se bacharelou nos Estados Unidos nos anos 1920, onde também defendeu o mestrado Social Life in Brazil in the Middle of the 19th Century, embrião de Casa-grande & Senzala: Formação da Família Brasileira Sob o Regime da Economia Patriarcal (1933). Destacam-se, entre muitas obras, Região e Tradição (1941), título cujos substantivos sintetizam uma das ênfases da perspectiva do sociólogo; Perfil de Euclides e Outros Perfis; e Cartas Provincianas, trocadas com Manuel Bandeira, organizadas por Silvana Moreli Dias.

João Cabral de Melo Neto: A Carlos Drummond de Andrade

Não há guarda-chuva
contra o poema
subindo de regiões onde tudo é surpresa
como uma flor mesmo num canteiro.

Não há guarda-chuva
contra o amor
que mastiga e cospe como qualquer boca,
que tritura como um desastre.

Não há guarda-chuva
contra o tédio:
o tédio das quatro paredes, das quatro
estações, dos quatro pontos cardeais.

Não há guarda-chuva
contra o mundo
cada dia devorado nos jornais
sob as espécies de papel e tinta.

Não há guarda-chuva
contra o tempo
rio fluindo sob a casa, correnteza
carregando os dias, os cabelos.

Alceu Valença: Cirandas