Perseguir cultura e arte é agredir a nação – Editorial | O Globo
Ataque do governo Bolsonaro à produção artística e cultural tem de ser contido em nome da democracia
Não se esperava de Jair Bolsonaro um início de governo tranquilo. O estilo agressivo demonstrado em 28 anos de trajetória como deputado do baixo clero na Câmara prenunciava tempos difíceis no relacionamento do presidente com atores políticos, organizações de representação social, pessoas e instituições que divergem dele. A intolerância com a diversidade já era notória.
Na campanha eleitoral os territórios de enfrentamentos foram sendo delimitados. ONGs, defensores do meio ambiente como um todo, índios, minorias em sentido amplo e tudo o que ele identificasse como esquerda estariam na mira. Neste sentido não houve surpresas. Mas o ataque à cultura e às artes chama especial atenção.
Não basta ocupar os espaços que eram dos “inimigos”. O aparelhamento de segmentos do Estado pelo bolsonarismo nada fica a dever ao PT e aliados. Mas não basta preencher vazios deixados pela saída de servidores do último governo e de “petistas” remanescentes.
É preciso destruir, desmontar as cadeias de produção artística e cultural, apagar qualquer marca, qualquer registro do passado. O mesmo desejo autoritário de reescrever a História observado em diversas épocas no mundo em vários países.
Neste sentido, é sugestivo que o presidente interino da Agência Nacional do Cinema (Ancine), Alex Braga, tenha mandado retirar das paredes da sede da instituição cartazes de filmes brasileiros antigos. Entre eles, “Deus e o diabo na terra do sol”, de Glauber Rocha, e “O bandido da luz vermelha”, de Rogério Sganzerla, pontos de referência do moderno cinema brasileiro na década de 60. O objetivo é apagar um passado de produções artísticas. Mas o presente e o futuro também, pois foi retirado do site da Ancine o espaço da relação de novas produções. Atos como este evocam crimes cometidos por regimes antidemocráticos de direita e esquerda contra artistas e suas obras.
É algo que vai além da censura. Esta já havia sido esboçada com o anúncio de que projetos de filmes “inadequados” no aspecto moral, religioso e político não teriam apoio da própria Ancine. Em julho, Bolsonaro se referiu à necessidade de “filtros”. Um sinônimo de censura. O governo Bolsonaro deu dois passos à frente da própria ditadura militar, que censurou a arte e a imprensa, mas não fechou todos os guichês de apoio à produção de cineastas, por exemplo. Criada em 1969, um ano após a edição do AI-5, a estatal Embrafilme financiou e distribuiu filmes de artistas opositores do regime. Isso não o fez menos ditatorial, mas indicou que houve, em alguns momentos, rasgos de bom senso.
Bolsonaro tem o mesmo DNA da ditadura, mas seu ataque institucional à cultura e a artistas, na democracia, ultrapassa limites até mesmo respeitados naqueles tempos. A sanha contra a produção artística apareceu na limitação à Lei Rouanet. Depois, houve uma atenuação para não alijar de vez os musicais do teatro brasileiro. Mas a semana acabou ainda com incertezas sobre a revisão das regras. O certo é que reduzir aporte incentivado de empresas a projetos de produção artística se traduz em menos emprego e menos renda em uma ampla linha de produção.