Descontentamento com Bolsonaro na pandemia pode levar país a conflagração, diz Eduardo Giannetti
Economista e filósofo vê risco de privação material gravíssima com o coronavírus e início de nova onda de descontentamento social
Érica Fraga | Folha de S. Paulo (23/3/2020)
SÃO PAULO - O economista e filósofo Eduardo Giannetti da Fonseca vê sinais de descontentamento social contra o governo Jair Bolsonaro que podem crescer na esteira da crise do coronavírus, levando o país a uma conflagração.
“Podemos ter uma situação de privação material gravíssima. A próxima onda de descontentamento já está começando a se erguer”, diz.
Um dos intelectuais mais respeitados do país, Giannetti tem estudado os movimentos sociais que se tornaram cíclicos desde junho de 2013, quando o reajuste de tarifas de transporte deflagrou protestos em várias cidades.
“Houve uma perda, possivelmente irreparável, de capital político pelo equívoco cometido diante da crise atual”, diz o economista, que foi assessor de Marina Silva nas três candidaturas presidenciais dela.
Segundo ele, ao agir como um “sub-Trump” —referência ao presidente dos EUA, Donald Trump—, Bolsonaro acreditou que poderia empurrar o custo das medidas necessárias à contenção da propagação do coronavírus para o futuro.
“É uma postura negacionista igualzinha à que eles têm em relação à mudança climática, o mesmo menosprezo pela ciência. Mas com uma diferença: a temporalidade da pandemia não é a mesma da mudança climática.”
Giannetti acrescenta que, como a fatia da população vulnerável no Brasil é muito maior que a de países ricos, a tendência é que os efeitos econômicos adversos da crise sejam mais acentuados aqui. Mas ele vê a chance de um efeito colateral positivo da calamidade:
“Se esta crise tiver como efeito colateral a corrosão, a destruição e a redução a pó dessa direita populista, ela não terá sido totalmente perdida. Lideranças desse tipo colocam em risco à humanidade”.
Para reduzir o impacto da queda da atividade, o economista acredita que o governo brasileiro poderá não ter outra saída além da injeção de dinheiro direto na economia. O colapso de demanda que se avizinha evitaria que isso causasse inflação. Mas ele ressalta que uma política desse tipo precisaria ser feita com cautela.
“É uma tecnologia para ser usada com muita parcimônia, em circunstâncias muito especiais. Não pode virar, como já ocorreu no Brasil, um novo modo de vida.”
• Por que o coronavírus levou a uma pandemia?
Crises de saúde pública e propagação de doenças contagiosas são uma constante na história. Nada seria menos improvável do que um mundo em que eventos de baixíssima probabilidade nunca acontecem. Eles acontecem. A diferença é que, no passado, eram locais; agora, são globais. Além disso, nos últimos 12 meses, o mundo ficou mais imprevisível.
• Por quê?
Há três razões. Aumentou muito a interdependência na produção, nas finanças, no transporte, no comércio. O fato de as pessoas viajarem muito hoje deu uma outra dinâmica à propagação dessa doença.
O segundo fato é a tecnologia. Ela nos faz ficar com o radar ligado permanentemente e propaga com uma rapidez de vírus situações de aguda incerteza em relação ao futuro.
O terceiro ponto é que estamos em um território novo em termos de política, que é a polarização raivosa. Ela aumenta a imprevisibilidade.
• Como isso ocorre?
A guerra comercial entre EUA e China foi, claramente, motivada pelo projeto de perpetuação no poder de Trump. A iniciativa de bombardear o Iraque foi uma medida intempestiva, sem aval do Congresso, que só um presidente desgovernado faz, ameaçando levar a humanidade a uma guerra.
• Essa forma de governar tem levado a falhas de política pública?
Sim . E o Bolsonaro é um sub-Trump. Ele copia mal o que o Trump faz nos EUA. A reação inicial de Trump e Bolsonaro à epidemia foi minimizar. Dizer que era uma histeria, um falso alarme da mídia, que não afetaria a economia.
É uma postura negacionista igualzinha à que eles têm em relação à mudança climática, o mesmo menosprezo pela ciência, pelas evidências e também pelo futuro. Mas com uma diferença: a temporalidade da pandemia não é a mesma da mudança climática. Eles foram atropelados e, felizmente, vão sofrer uma enorme erosão de seu capital político.
• Há ignorância por trás dessa postura ou é uma estratégia?
Isso é puramente estratégia de perpetuação no poder. As pessoas se incomodam com cenários ameaçadores. O raciocínio deles é de cálculo eleitoral. Se a economia continuar indo bem, eu me reelejo. Então, não vou tomar as medidas necessárias para conter a expansão da epidemia que vão prejudicar a economia, porque isso mina a minha condição de reeleição. Mas a realidade se encarregou de atropelá-los, porque ela tolera desaforo até um certo ponto, depois, não mais.
Se essa crise de saúde pública tiver como efeito colateral a corrosão, a destruição e a redução a pó dessa direita populista, ela não terá sido totalmente perdida. Lideranças desse tipo colocam em risco a humanidade.
Eles perderam totalmente o pé da situação. Os dois [Bolsonaro e Trump], agora, parecem cachorros com o rabo entre as pernas e estão em apuro político.
Bolsonaro chegou a desautorizar, com ações, as recomendações de seu ministro da Saúde. Ele encarna o pequeno corporativismo brasileiro, age olhando para seu eleitorado potencial e tentando favorecê-lo.
O tempo todo. Na reforma da Previdência aos militares, na sublevação das polícias civis e militares, favorecendo os canais de televisão que o apoiam. Ele é a encarnação do que há de mais mesquinho no corporativismo brasileiro.