terça-feira, 24 de março de 2020

Merval Pereira - Comédia de erros

- O Globo

Pensar em flexibilizar ofimdo confinamento é precipitado, diante da crise que ainda enfrentaremos

O presidente Bolsonaro tem culpa de não ter lido o texto da Medida Provisória que permitia às empresas suspender por até quatro meses os contratos trabalhistas, sem necessidade de pagar o salário desse período.

Quando se deu conta do estrago que a decisão faria, com trabalhadores em casa sem o salário para sustentar a família, suspendeu a medida provisória que havia promulgado na noite de domingo e até a manhã de ontem defendia.

Mas na defesa, Bolsonaro mostrou que a ideia era outra: “Ao contrário do que espalham, (a MP) resguarda ajuda possível para os empregados. Ao invés de serem demitidos, o governo entra com ajuda nos próximos 4 meses, até a volta normal das atividades do estabelecimento, sem que exista a demissão do empregado”.

Só que não havia esse compromisso do governo no texto da medida provisória, muito menos a garantia dos empregos suspensos. A explicação oficial foi “um erro de digitação”, como justificou o ministro da Economia Paulo Guedes. Erro que também ele não notou antes do protesto de sindicatos e políticos.

Nos bastidores, há quem culpe assessores do ministro Paulo Guedes pelo “esquecimento” de incluir no texto esses compromissos do governo federal, que fazem toda diferença. Uma comédia de erros derivada de uma visão economicista da situação, misturada a um populismo rasteiro por parte do presidente Bolsonaro.

Ricardo Noblat - Mandetta, ministro da Saúde, uma estrela que cai

- Blog do Noblat | Veja

Seu afastamento ainda demora

Sentiu falta da sessão fim de tarde onde o ministro Luiz Henrique Mandetta, da Saúde, disserta por horas sobre o combate ao coronavírus, alerta para a tragédia que se avizinha, e mesmo assim conforta o país e mostra que está no comando?

É possível que a sessão volte a se repetir hoje e nos próximos dias, mas com um Mandetta muito mais tutelado pelo presidente Jair Bolsonaro que, embora tenha dito, ontem, que a vida das pessoas está em primeiro lugar, preocupa-se de fato com a Economia.

A frase dele foi esta, uma pérola de ambiguidade:

A vida das pessoas em primeiro lugar. Mas a dose do remédio não pode ser excessiva de modo que o efeito colateral seja mais danoso que o próprio vírus.

Beleza, não? Pena que faltou a Bolsonaro originalidade, uma vez que o presidente Donald Trump havia escrito no Twitter algumas horas antes: “Não podemos deixar que a cura seja pior do que o problema”. Mais ambíguo impossível. Porém, mais conciso.

Trump conta com melhores redatores de frases e de discursos. Os de Bolsonaro são ruins. Falta-lhes imaginação. De resto, Trump domina bem o inglês e é um razoável orador. São conhecidas as dificuldades de Bolsonaro com o idioma e as ideias.

Ainda sob o efeito da recente pesquisa do Instituto Datafolha, que conferiu que a aprovação a Mandetta é maior que a dele, Bolsonaro reuniu-se eletronicamente com governadores do Nordeste e anunciou a liberação de 88 bilhões de reais para os Estados.

Depois promoveu o general Braga Neto, chefe da Casa Civil da presidência da República, à condição de coordenador de todas as ações do governo na guerra contra o coronavírus. O general falou em seguida. Quando chegou sua vez, Mandetta, digamos, miou.

Braga Neto era o chefe do Comitê de Crise criado por Bolsonaro há semanas. Mas para o público externo, era Mandetta que tinha o controle de tudo. Há poucos dias, quando Bolsonaro estreou o uso de máscara, Braga Neto entrou mudo e saiu calado da reunião.

Bernardo Mello Franco - Perdidos na pandemia

- O Globo

O vaivém da MP mostra um governo perdido. Bolsonaro desperdiçou semanas preciosas. Agora deixa claro que não sabe o que fazer para amenizar o choque do coronavírus

Depois do “Esqueçam o que escrevi”, Jair Bolsonaro lançou o “Esqueçam o que assinei”. No domingo à noite, o presidente editou uma medida provisória que permitiria suspender contratos de trabalho e salários por quatro meses. Em menos de 24 horas, ele informou que revogaria o próprio autógrafo.

A medida já começava a ser chamada de MP da Fome. A pretexto de socorrer as empresas, o Planalto empurraria a conta da crise para os trabalhadores. Durante 120 dias, eles ficariam em casa sem remuneração e sem garantia de voltar ao emprego.

A ideia ia na contramão do que têm feito outros países diante do choque do coronavírus. No Reino Unido, o governo conservador assumiu o pagamento de 80% dos salários de quem recebe até £ 2.500, o equivalente a R$ 14.900. Nos EUA, a Casa Branca promete enviar cheques às famílias mais vulneráveis.

No Brasil de Bolsonaro, o patrão “poderia” conceder uma “ajuda compensatória mensal” ao empregado. Em português claro, isso significaria trocar salário por esmola. A reação foi forte, inclusive em setores que aplaudiam a agenda de Paulo Guedes.

O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, chamou a MP de “capenga”. Pelo WhatsApp, senadores de diversos partidos iniciaram um movimento para devolvê-la ao Planalto. Seria uma humilhação e um sinal de derretimento do governo.

Carlos Andreazza - Bolsonaro corre atrás

- O Globo

Presidente negligenciou emergência que será tragédia para a saúde pública

A pergunta é objetiva: alguém (ainda) acredita que Jair Bolsonaro esteja à altura de liderar o Brasil na empreitada de combate à Covid-19? Não será necessário responder. O próprio presidente o faz; todo o seu esforço atrasado — no qual empenha (e mascara) o governo — consistindo agora em mostrar, como numa peça de propaganda, que dá importância à pandemia. Isto depois de haver se juntado, exprimindo o leviano que é, a seus apoiadores — a doença já entre nós — em manifestação de rua.

Está correndo atrás; lançando-se numa cruzada de reversão da imagem negativa. Não será simples, contudo. Pela primeira vez em quase 15 meses, vai mal posicionado narrativamente, percebido como alguém que desdenhou do coronavírus e cujos atos —esses por meio dos quais tateia em busca do protagonismo perdido — atrapalham.

O do sujeito que não é apenas roda-presa, mas cujo parco giro propõe retrocessos. Péssimo personagem para um governante encarnar numa adversidade desta monta, tanto mais quando sua atuação é comparada à de alguns governadores. Avalie, leitor: João Doria logo posará em hospitais de campanha.

Enquanto isso, um Ministério da Economia concebido para tocar uma agenda de austeridade fiscal engatinha para ser o que talvez não possa, abrir o teto solar, botar o bolso para fora e gastar os fundos para sustentar artificialmente empregos e empregadores. O modo como se divulgou a MP 927, a que propunha a possibilidade de se suspender contratos de trabalho por quatro meses, sem apresentar — com clareza — a devida contrapartida ao trabalhador, é eloquente. O governo o fez para logo recuar — quem sabe se para reformular o texto. Não importa. O recado estava dado. Bateção de cabeça. Fragilidade.

José Casado - O alto custo da inércia política

- O Globo

O novo vírus zerou o mundo, expondo o espetacular fracasso

Líderes políticos deveriam olhar para a novidade na paisagem urbana: pessoas confinadas em casa têm ido às janelas agradecer aos trabalhadores de saúde e de serviços básicos — médicos, enfermeiros, lixeiros, os “caras” da água, luz, internet e TV, feirantes e entregadores, entre outros.

As manifestações espontâneas se repetem, como em outros países. Trazem a mensagem do desejo comum de reinvenção do futuro sem repetir o passado enterrado no último carnaval, três semanas atrás.

O novo vírus zerou o mundo, expondo o espetacular fracasso na saúde, no saneamento e na distribuição da renda. Os prejuízos acumulados, certamente, já superam a soma de meio século de cortes nos orçamentos da higienização da vida em sociedade, desinvestimentos em ciência, tecnologia e inovação e transferências induzidas de renda dos pobres.

Prevalece o pavor pesaroso com o flagelo da doença, morte e desemprego, num cenário de paralisia de líderes como Jair Bolsonaro, Donald Trump e o mexicano Manuel López Obrador. Ególatras, falam demais, e, até agora, foram incapazes de mapear uma rota para o amanhã. Ocultam fiascos, como o de prover testes rápidos e abrangentes para limitar a pandemia. Vagueiam na irrelevância (Bolsonaro, abraçado a uma oposição sem alternativa até de liderança).

Sábado, a XP (R$ 409 bilhões em ativos) reuniu Rubens Menin (MRV), André Street (Stone), Benjamin Steinbruch (CSN), Wilson Ferreira Júnior (Eletrobras) e Pedro Guimarães (Caixa). Estavam perplexos com os riscos de colapso em saúde, internet, água e luz, e com a depressão — James Bullard (Fed St. Louis) fala em até 30% de desemprego nos EUA. Street, da Stone, contou que seus clientes, pequenas e médias empresas, só têm capital para 27 dias. Mas a burocracia segue, mostra a Receita no prazo do Imposto de Renda.

Míriam Leitão - Improvisos e falta de comando

- O Globo

Falta um plano e uma direção ao governo, que tem improvisado. A confusão da MP do contrato de trabalho foi mais uma prova disso

O Ministério da Economia acha que a ajuda real à economia pode chegar até a R$ 130 bilhões. Como houve uma queda forte de juros, o Tesouro está gastando menos este ano no pagamento aos detentores de títulos públicos. Portanto, o governo poderia na prática aumentar as despesas nesse valor. Mas falta um plano e uma direção. O governo tem improvisado e a confusão da MP do contrato de trabalho foi apenas uma prova disso. A ideia de jogar sobre o trabalhador a conta do ajuste foi totalmente sem sentido. O presidente Bolsonaro tentou defender a MP e teve que recuar.

Sobre o espaço para gastar nessa crise, uma fonte da área econômica avalia que o relevante é o déficit nominal, aquela conta que inclui o custo dos juros, e não o resultado primário para o qual todos olham. Em vez dos R$ 124 bilhões de reais de déficit, o importante seria o déficit nominal, que tem caído. Era 7% do PIB em 2018 e caiu no ano passado para 5,9%. Em 2020 o Tesouro pagará R$ 120 bi a R$ 130 bi a menos com a queda da Selic.

Mas se há espaço fiscal, faltou sensibilidade social na medida do emprego. De manhã, o próprio presidente Bolsonaro elogiou no twitter a MP. O secretário Bruno Bianco, de Previdência e Trabalho, disse que estava sendo preparada uma segunda Medida Provisória que regulamentaria o acesso ao seguro-desemprego por parte desses trabalhadores, além de um percentual do salário a ser pago pelo governo. Quem acompanhou as discussões no fim de semana acha que houve atropelo e confusão. Era para ser uma medida que aliviasse as empresas mas mantivesse os empregos, ainda que com salários menores, e acabou sendo uma MP que dava tudo ao empregador e fragilizava ainda mais o trabalhador. “Do jeito que está não vai ficar”, esse foi o recado que o Congresso mandou para o presidente. E ele revogou o artigo 16.

Luiz Carlos Azedo - Meia volta, volver

- Nas entrelinhas | Correio Braziliense

”A estratégia de “mitigaçao”, que servia de modelo, fracassou na Inglaterra. Bolsonaro começa a se dar conta de que aqui também não seria possível”

Não durou 24 horas a medida provisória do governo federal que autorizava os empresários a suspender o pagamento de salários de seus funcionários por quatro meses, sem quaisquer contrapartidas, o que provocou uma avalanche de críticas ao presidente Jair Bolsonaro. A saída foi reconsiderar a questão, cancelar a medida provisória e abrir negociações com os governadores, contra os quais Bolsonaro havia entrado em guerra por causa da adoção da política de distanciamento social. “Determinei a revogação do art.18 da MP 927, que permitia a suspensão do contrato de trabalho por até 4 meses sem salário”, escreveu Bolsonaro em uma rede social. Ficou evidente a falta de sintonia entre a equipe comandada pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, e a política de combate ao coronavírus adotada pelo ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta.

Além da suspensão do contrato de trabalho e do salário, a MP estabelecia outras medidas: teletrabalho (trabalho a distância, como home office); regime especial de compensação de horas no futuro em caso de eventual interrupção da jornada de trabalho durante calamidade pública; suspensão de férias para trabalhadores da área de saúde e de serviços considerados essenciais; antecipação de férias individuais, com aviso ao trabalhador pelo menos 48 horas antes da concessão de férias coletivas; aproveitamento e antecipação de feriados; suspensão de exigências administrativas em segurança e saúde no trabalho; adiamento do recolhimento do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS). Todas em razão das medidas adotadas para conter a progressão da epidemia e evitar o colapso do sistema de saúde.

A epidemia avança: o total de casos confirmados do coronavírus (Sars-Cov-2), ontem, subiu para 1.891, segundo balanço do Ministério da Saúde, com 34 mortes. O coordenador da campanha em São Paulo, o infectologista David Uip, uma das maiores autoridades médicas do país, no final da tarde confirmou o diagnóstico de que está com a doença. São Paulo concentra 60% dos casos de coronavírus em todo o país. Depois do recuo quanto à suspensão dos salários, Bolsonaro resolveu reduzir o estresse com os governadores, realizando uma teleconferência com todos os mandatários do Nordeste e, depois, do Norte do país. Essas reuniões ajudaram o presidente da República a se reposicionar, conforme ficou patente no final da tarde, ao anunciar as medidas numa entrevista coletiva do comitê de combate ao coronavírus, da qual se retirou antes das perguntas.

Hélio Schwartsman - Covid-19 não acaba tão cedo

- Folha de S. Paulo

Retardar a disseminação é só o primeiro round da luta

Declarações de autoridades e muitos dos artigos publicados na imprensa dão a impressão de que, se formos capazes de atravessar três ou quatro meses de extremas dificuldades, teremos triunfado sobre a Covid-19. Odeio ser o portador de más notícias, mas, se tudo sair melhor que o planejado, isto é, se conseguirmos retardar a disseminação da epidemia e assim evitar o colapso dos serviços de saúde, teremos vencido só o primeiro round de uma luta que poderá ser bem mais longa.

Como já escrevi aqui, epidemias normalmente acabam com uma vacina ou com o chamado esgotamento dos suscetíveis, que ocorre quando a maior parte da população já entrou em contato com o patógeno e desenvolveu defesas contra ele, dificultando sua propagação —a tal da imunidade de rebanho.

Em termos globais, isso só começaria a ocorrer depois que 4 bilhões de pessoas tivessem sido contaminadas. A menos que a proporção de casos não detectados da Covid-19 seja várias ordens de magnitude maior que as estimativas correntes, estamos longe disso. Daí decorre que, mesmo que zeremos as novas infecções, as cadeias de transmissão tenderão a restabelecer-se assim que as restrições à circulação forem relaxadas. Vimos isso na China no último domingo.

Pablo Ortellado* - Menor do que Trump

- Folha de S. Paulo

Plano de Bolsonaro para ajudar trabalhadores é cruel até em comparação com o de Donald Trump

Não há mais dúvidas de que a crise do coronavírus vai gerar uma recessão. No Brasil, as medidas sanitárias levaram ao fechamento do comércio, ao isolamento da força de trabalho e a uma redução do consumo das famílias. Teremos encolhimento da atividade econômica, diminuição da arrecadação e forte incremento dos gastos de saúde. Se não agirmos logo, além dos doentes e dos mortos teremos também milhões de desempregados e desassistidos passando fome.

O Brasil tem hoje 18,6 milhões de trabalhadores sem carteira assinada, 4,5 milhões deles ocupados como trabalhadores domésticos; temos também 19,3 milhões de trabalhadores por conta própria sem CNPJ. Nosso comércio varejista, que está quase todo fechado, emprega outros 5,6 milhões de trabalhadores, já excluído o setor de supermercados e alimentos.

A tudo isso se somam 11,9 milhões de trabalhadores que já estavam desempregados. São dezenas de milhões de brasileiros que precisarão de apoio para alimentar suas famílias.

Joel Pinheiro da Fonseca* - O vírus e o tirano

- Folha de S. Paulo

Assistimos a um governo em esfacelamento, acuado e incapaz de agir de forma decisiva

Não precisava do presidente do Grupo Eurasia eleger Bolsonaro como o líder mais ineficaz de todo o mundo em meio à crise do coronavírus. Para nós, brasileiros, isso já está evidente.

Assistimos a um governo em esfacelamento, acuado e incapaz de agir de forma decisiva. A ajuda de R$ 200 mensais a trabalhadores informais, irrisória (mas melhor do que nada), anunciada semana passada, ainda não foi detalhada.

A MP 927, publicada no domingo (22), teve de ser revogada pelo próprio governo, pois permitia que empresas mandassem os funcionários para casa por quatro meses sem salário. O ministro da Saúde tem que vir diariamente a público desmentir o presidente: a gripe é séria; não compareçam às igrejas; não tomem hidroxicloroquina.

Nada disso é por acaso. Uma característica do populismo é a negação tácita de que exista uma realidade objetiva. Não há fatos duros, há apenas diferentes narrativas e argumentos que podem ser usados para avançar ou atrapalhar um projeto de poder.

Vencendo a guerra de narrativas, isto é, conquistando os corações dos eleitores, tudo fica bem. Mesmo um vírus novo não é um problema que exija solução técnica; ele é fruto de alguma conspiração que precisa ser apontada e combatida no plano retórico. Deu no que deu.

Bruno Boghossian - Insistência em agenda liberal drena capital político de Guedes

- Folha de S. Paulo

As primeiras reações da equipe econômica diante da catástrofe que se aproximava provocaram irritação no mundo político

Quando o coronavírus já assustava meio mundo, Paulo Guedes sugeriu ao Congresso Nacional que avançasse com a privatização da Eletrobras e da Casa da Moeda. Por semanas, o ministro da Economia insistiu em que sua agenda liberal era a única maneira de conseguir dinheiro para enfrentar a crise.

Consideradas insuficientes, as primeiras reações da equipe econômica diante da catástrofe que se aproximava provocaram desconfiança de investidores e irritação no mundo político. Guedes conseguiu piorar ainda mais esse ambiente nos últimos dias.

A desastrosa medida provisória que permitia a suspensão de contratos de trabalho sem medidas de compensação contaminou de vez o receituário que o ministro pretendia deixar como marca e drenou o capital político que ele já vinha perdendo desde que assumiu o cargo.

Sua equipe alegou que o governo amenizaria a perda de renda dos trabalhadores em uma medida que seria publicada posteriormente, mas o estrago estava feito. O vaivém que levou Bolsonaro a defender a ação pela manhã e revogá-la menos de quatro horas depois ampliou a deterioração.

Investidores e integrantes da equipe apontam, há dias, que o ministro emite sinais contraditórios e deixa de apontar rumos claros no esforço para enfrentar a crise.

Na sexta (20), Guedes teve conversas individuais com grandes empresários, mas deixou de participar da videoconferência pública em que eles pediram apoio a Bolsonaro. No fim de semana, os apelos continuaram, mas o ministro não foi visto. Finalmente, na segunda (23), quando a medida da suspensão de contratos se tornou pública, o chefe da economia não apareceu para dar explicações.

Em seus 15 meses no posto até aqui, Guedes se notabilizou por desconsiderar danos políticos que seus planos poderiam produzir. Não foram poucas as ocasiões em que o ministro, concentrado nas cifras das contas públicas, ignorou o impacto social amargo de suas medidas de aperto.

Guedes chegou a incluir na proposta de reforma da Previdência uma proposta que reduzia o valor pago a idosos muito pobres e a deficientes, o BPC (Benefício de Prestação Continuada). Apresentou também, na medida provisória que flexibiliza a contratação de jovens, uma controversa taxação sobre o seguro-desemprego.

As duas ideias foram bombardeadas e derrubadas pelo Congresso. O desgaste, no entanto, se acumulou. A cada plano com essas características, a agenda do ministro perdeu tração entre parlamentares e passou a incomodar até o presidente.

Andrea Jubé - Brasil depende da China para “respirar”

- Valor Econômico

Estados Unidos não suportam demanda brasileira para insumos necessários ao combate à covid-19

À medida que aumentam os casos confirmados de coronavírus no Brasil, o país se torna mais dependente da China, num momento sensível das relações entre os dois países. Uma semana depois do incidente diplomático provocado pelo deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), os presidentes Jair Bolsonaro e Xi Jinping não se falaram, e a Embaixada da China ainda aguarda um pedido formal de desculpas do parlamentar.

Com a epidemia do novo vírus controlada, há cerca de duas semanas a China voltou a se projetar como o maior fornecedor de máscaras de proteção e aparelhos para Unidades de Terapia Intensiva (UTI), de que necessita com urgência o sistema de saúde brasileiro, que pode entrar em colapso em um mês, no auge das contaminações no país.

“Nós precisamos da China, não há e não haverá capacidade de suprimento [dos aparelhos] a partir dos Estados Unidos”, alerta um dos maiores especialistas brasileiros em equipamentos médicos, PhD em engenharia biomédica, e atualmente radicado nos Estados Unidos.

Com passagens pelo setor público e privado nacional, este especialista tem sido procurado para intermediar a compra de máscaras e ventiladores respiratórios para vários países. Há cerca de cinco semanas, quando a China ainda atravessava uma fase crítica da pandemia e a produção local estava paralisada, ele foi acionado por um grupo chinês para encontrar fornecedores americanos de máscaras respiratórias do tipo 3PLY, que é a mais simples, até do que a N-95, que filtra 95% das partículas biológicas ou não biológicas.

Eliane Cantanhêde - A Escolha de Sofia

- O Estado de S.Paulo

O Brasil hoje: se correr, o bicho covid-19 pega; se ficar, o bicho da recessão come

O mundo todo e o Brasil, particularmente, vivem um dilema típico de “A Escolha de Sofia”. Aprofundar o isolamento e a paralisação de estados, cidades, empresas, empregos e pessoas, em nome da saúde e da vida? Ou mitigar o combate radical ao coronavírus para tentar preservar empresas e empregos, em nome da economia?

Na prática, uma guerra da área sanitária com parte de governantes, empresários e economistas. De um lado, governadores que trabalham diretamente com o Ministério da Saúde e os especialistas no setor; de outro, o presidente Jair Bolsonaro, o Ministério da Economia e aliados.

Em tese, todos têm razão. A prioridade absoluta neste momento é trabalhadores, funcionários, autônomos e diaristas em casa para interromper a transmissão do vírus maldito. A prioridade de hoje, porém, não pode desconsiderar a de amanhã: a pandemia acaba e as vítimas não serão só os mortos e contaminados, mas todos que produzem, vendem, trabalham. O horizonte é de terra arrasada, com recessão, quebradeira de empresas e lojas, 40 milhões de desempregados, na previsão de um grupo de empresários.

Como sempre, em todas as crises, dificuldades e momentos, as maiores vítimas todos nós sabemos quem são e serão: velhos, homens, mulheres e crianças da tal da “base da pirâmide”. Passado o momento em que os infectados e mortos eram recém-chegados da Ásia e da Europa, ou por eles foram contaminados, a expectativa, que dá um tremor no corpo e um frio na coluna, é que o vírus chegue às favelas, cortiços, às imensas áreas sem água, sabão, muito menos álcool gel.

Pedro Fernando Nery* - Devolvam o FGTS!

- O Estado de S. Paulo

Dinheiro foi acumulado por anos sem que reservas de lucro fossem distribuídas

Os trabalhadores chegam à crise com uma poupança. Nas próximas semanas, a economia entrará em quarentena e dois desafios se colocam: evitar que as empresas sem demanda mandem embora seus funcionários, e evitar que quebrem, destruindo para sempre empregos formais. Os trabalhadores têm uma reserva suficiente para manter parcialmente seus salários nos próximos meses: o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS).

Os recursos acumulados no Fundo após décadas de resultados não distribuídos, que compõem seu Patrimônio Líquido, podem ser a solução para pagar os salários – mantendo empregos e empresas e permitindo uma recuperação mais rápida no pós-pandemia.

O FGTS tem cerca de R$ 100 bilhões líquidos em caixa, que lastreiam um patrimônio líquido de montante equivalente – informa Igor Vilas Boas, consultor do Senado que é ex-presidente do Conselho Curador do FGTS. São recursos que, individualmente, não pertencem a nenhum trabalhador.

E existem associados ao Fundo 37 milhões de contas ativas, dos atuais vínculos dos trabalhadores em atividade. Desconte-se os empregados de estatais, que não sofrem risco de demissão, bem como empregados de maior renda, que podem possuir alguma poupança própria. Restam cerca de 30 milhões de contas de trabalhadores que ganham até dois salários mínimos.

Rubens Barbosa* - O impacto geopolítico do coronavírus

- O Estado de S.Paulo

O mundo pós-pandemia deve emergir com novas prioridades, num novo cenário global

A epidemia do coronavírus – a pior dos últimos cem anos – terá profundas consequências sobre um mundo globalizado, sem lideranças alinhadas e pouco solidárias entre si. O impacto econômico e social vai ser profundo, com o custo recaindo nos mais pobres, fracos e idosos e em países menos preparados e desenvolvidos.

Os efeitos sobre os países e sobre a economia global estão sendo sentidos e deverão agravar-se antes de melhorar.

Como a geopolítica global poderá ficar afetada pela epidemia? O que poderá mudar no cenário global?

Duas observações iniciais. A crise atual mostrou que as fronteiras nacionais desapareceram com as facilidades do transporte aéreo e o imediatismo das comunicações. E que as políticas econômicas domésticas estão intimamente influenciadas pelo que acontece no resto do mundo. Nenhum país ou continente é uma ilha. Por outro lado, a extensão e a repercussão da crise, em larga medida, deriva do peso da China na economia global. No inicio da década, quando se disseminou a Sars, o país representava 4% da economia global, hoje representa 17%. A China é a segunda economia mundial, o maior importador e exportador do mundo e, para culminar, transformou-se num centro de suprimento de produtos industriais para as cadeias globais de valor.

Quais as consequências na relação entre os EUA e a China, as duas superpotências atuais? Nos últimos anos cresceu a competição entre os dois países pela hegemonia global no século 21. Os EUA, ao se isolarem e ampliarem ações confrontacionistas, protecionistas, nacionalistas e xenófobas, dificultam a interdependência dos países, como ocorre com a globalização. Enquanto os EUA apontam a China como adversária estratégica e criticam o governo pela condução da epidemia (vírus chinês), Beijing, ao invés de fechar as fronteiras, como fez Washington, favorece a abertura e a ampliação do comércio externo e manda médicos e equipamentos para a Itália, a Espanha e o Brasil a fim de ajudar a combater o coronavírus. A guerra fria econômica, a nova fase da confrontação, evidencia-se pela iniciativa chinesa da Rota da Seda, pela competição nas redes 5G e por conflitos sobre propriedade intelectual e inovações tecnológicas.

Para o Cidadania, defesa do adiamento das eleições é equivocada e atentatória à democracia

Portal do Cidadania (23/3/2020)

O presidente nacional do Cidadania, Roberto Freire, e os líderes das bancadas do partido no Senado, Eliziane Gama (MA), e na Câmara dos Deputados, Arnaldo Jardim (SP), divulgaram nota pública (veja abaixo) considerando “completamente equivocada e atentatória à democracia a defesa do adiamento das eleições municipais deste ano“.

De acordo com a legenda, os esforços agora devem ser voltados ao enfrentamento da grave crise sanitária e econômica provocada pela pandemia do Coronavírus.

“Esse debate não é apenas extemporâneo e fora de lugar, mas também suspeito”, diz a nota.
O documento ressalta ainda que “a maior preocupação do Cidadania hoje é com os trabalhadores informais que perderão seu sustento, os mais vulneráveis nas comunidades Brasil afora que não podem cumprir as recomendações de prevenção e isolamento”.

“Se, porventura, a crise perdurar no tempo e apontar a necessidade de suspender as eleições municipais, que se discuta, então, prazo e forma razoáveis para que se realizem com a devida segurança, sob liderança do ministro Luís Roberto Barroso”, propõe o Cidadania.

Nota à Imprensa

Brasília-DF, 23/03/2020

É completamente equivocada e atentatória à democracia a defesa do adiamento das eleições municipais deste ano. Em meio à mais grave crise que o mundo já enfrentou do ponto de vista sanitário e econômico, os esforços, em qualquer lugar do planeta, estão concentrados no enfrentamento à pandemia do coronavírus.

O Cidadania estranha que alguns estejam fazendo cálculos eleitorais enquanto o mundo conta mortos – já são mais de 12 mil, 25 deles no Brasil – e soma esforços para encontrar tratamento eficaz contra o vírus e saídas econômicas inventivas para diminuir o sofrimento da população.

Esse debate não é apenas extemporâneo e fora de lugar, mas também suspeito. Isso porque os que falam em adiar o processo eleitoral também articulam nos subterrâneos da República a possibilidade de adoção de Estado de Sítio e abrem a porta para prorrogação de mandatos num momento de flagrante insatisfação popular.

Toda e qualquer movimentação política deve ser concentrada no enfrentamento do Coronavírus e nas consequências que essa doença trará. Pensar em calendário eleitoral, cinco meses antes do pleito, demonstra que alguns não têm o sentido de urgência que a situação exige e estimulam desconfianças quando o momento pede equilíbrio total entre os Poderes.

A maior preocupação do Cidadania hoje é com os trabalhadores informais que perderão seu sustento, os mais vulneráveis nas comunidades Brasil afora que não podem cumprir as recomendações de prevenção e isolamento, a falta de testes para evitar a propagação da doença, o número de leitos e equipamentos para tratar os doentes e a necessidade de recursos extraordinários para fazer frente a esses desafios.

Se, porventura, a crise perdurar no tempo e apontar a necessidade de suspender as eleições municipais, que se discuta, então, prazo e forma razoáveis para que se realizem com a devida segurança, sob liderança do ministro Luís Roberto Barroso, que assumirá a presidência do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e terá a sabedoria necessária para nos conduzir nesse momento delicado.

Nos somamos, assim, ao esforço do presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), que já se manifestou sobre o equívoco desta discussão, e pedimos que o governo se concentre na articulação e votação de uma série de propostas, muitas das quais apresentadas por nossos parlamentares, para ampliar as políticas sociais brasileiras e os investimentos em Saúde.

Que o momento desperte em nós, lideranças políticas e sociedade civil, os sentimentos de humanismo, solidariedade e unidade diante desta que é a mais grave ameaça à organização social brasileira da história recente.

Roberto Freire
Presidente Nacional do Cidadania

Eliziane Gama
Líder do Cidadania no Senado Federal

Arnaldo Jardim
Líder do Cidadania na Câmara dos Deputados

Entrevista | Eduardo Giannetti* - Nova onda no país de insatisfação começa a se erguer

Descontentamento com Bolsonaro na pandemia pode levar país a conflagração, diz Eduardo Giannetti

Economista e filósofo vê risco de privação material gravíssima com o coronavírus e início de nova onda de descontentamento social

Érica Fraga | Folha de S. Paulo (23/3/2020)

SÃO PAULO - O economista e filósofo Eduardo Giannetti da Fonseca vê sinais de descontentamento social contra o governo Jair Bolsonaro que podem crescer na esteira da crise do coronavírus, levando o país a uma conflagração.

“Podemos ter uma situação de privação material gravíssima. A próxima onda de descontentamento já está começando a se erguer”, diz.

Um dos intelectuais mais respeitados do país, Giannetti tem estudado os movimentos sociais que se tornaram cíclicos desde junho de 2013, quando o reajuste de tarifas de transporte deflagrou protestos em várias cidades.

“Houve uma perda, possivelmente irreparável, de capital político pelo equívoco cometido diante da crise atual”, diz o economista, que foi assessor de Marina Silva nas três candidaturas presidenciais dela.

Segundo ele, ao agir como um “sub-Trump” —referência ao presidente dos EUA, Donald Trump—, Bolsonaro acreditou que poderia empurrar o custo das medidas necessárias à contenção da propagação do coronavírus para o futuro.

“É uma postura negacionista igualzinha à que eles têm em relação à mudança climática, o mesmo menosprezo pela ciência. Mas com uma diferença: a temporalidade da pandemia não é a mesma da mudança climática.”

Giannetti acrescenta que, como a fatia da população vulnerável no Brasil é muito maior que a de países ricos, a tendência é que os efeitos econômicos adversos da crise sejam mais acentuados aqui. Mas ele vê a chance de um efeito colateral positivo da calamidade:

“Se esta crise tiver como efeito colateral a corrosão, a destruição e a redução a pó dessa direita populista, ela não terá sido totalmente perdida. Lideranças desse tipo colocam em risco à humanidade”.

Para reduzir o impacto da queda da atividade, o economista acredita que o governo brasileiro poderá não ter outra saída além da injeção de dinheiro direto na economia. O colapso de demanda que se avizinha evitaria que isso causasse inflação. Mas ele ressalta que uma política desse tipo precisaria ser feita com cautela.

“É uma tecnologia para ser usada com muita parcimônia, em circunstâncias muito especiais. Não pode virar, como já ocorreu no Brasil, um novo modo de vida.”

• Por que o coronavírus levou a uma pandemia? 

Crises de saúde pública e propagação de doenças contagiosas são uma constante na história. Nada seria menos improvável do que um mundo em que eventos de baixíssima probabilidade nunca acontecem. Eles acontecem. A diferença é que, no passado, eram locais; agora, são globais. Além disso, nos últimos 12 meses, o mundo ficou mais imprevisível.

• Por quê? 

Há três razões. Aumentou muito a interdependência na produção, nas finanças, no transporte, no comércio. O fato de as pessoas viajarem muito hoje deu uma outra dinâmica à propagação dessa doença.

O segundo fato é a tecnologia. Ela nos faz ficar com o radar ligado permanentemente e propaga com uma rapidez de vírus situações de aguda incerteza em relação ao futuro.

O terceiro ponto é que estamos em um território novo em termos de política, que é a polarização raivosa. Ela aumenta a imprevisibilidade.

• Como isso ocorre? 

A guerra comercial entre EUA e China foi, claramente, motivada pelo projeto de perpetuação no poder de Trump. A iniciativa de bombardear o Iraque foi uma medida intempestiva, sem aval do Congresso, que só um presidente desgovernado faz, ameaçando levar a humanidade a uma guerra.

• Essa forma de governar tem levado a falhas de política pública? 

Sim . E o Bolsonaro é um sub-Trump. Ele copia mal o que o Trump faz nos EUA. A reação inicial de Trump e Bolsonaro à epidemia foi minimizar. Dizer que era uma histeria, um falso alarme da mídia, que não afetaria a economia.

É uma postura negacionista igualzinha à que eles têm em relação à mudança climática, o mesmo menosprezo pela ciência, pelas evidências e também pelo futuro. Mas com uma diferença: a temporalidade da pandemia não é a mesma da mudança climática. Eles foram atropelados e, felizmente, vão sofrer uma enorme erosão de seu capital político.

• Há ignorância por trás dessa postura ou é uma estratégia? 

Isso é puramente estratégia de perpetuação no poder. As pessoas se incomodam com cenários ameaçadores. O raciocínio deles é de cálculo eleitoral. Se a economia continuar indo bem, eu me reelejo. Então, não vou tomar as medidas necessárias para conter a expansão da epidemia que vão prejudicar a economia, porque isso mina a minha condição de reeleição. Mas a realidade se encarregou de atropelá-los, porque ela tolera desaforo até um certo ponto, depois, não mais.

Se essa crise de saúde pública tiver como efeito colateral a corrosão, a destruição e a redução a pó dessa direita populista, ela não terá sido totalmente perdida. Lideranças desse tipo colocam em risco a humanidade.

Eles perderam totalmente o pé da situação. Os dois [Bolsonaro e Trump], agora, parecem cachorros com o rabo entre as pernas e estão em apuro político.

Bolsonaro chegou a desautorizar, com ações, as recomendações de seu ministro da Saúde. Ele encarna o pequeno corporativismo brasileiro, age olhando para seu eleitorado potencial e tentando favorecê-lo.

O tempo todo. Na reforma da Previdência aos militares, na sublevação das polícias civis e militares, favorecendo os canais de televisão que o apoiam. Ele é a encarnação do que há de mais mesquinho no corporativismo brasileiro.

O que a mídia pensa – Editoriais

Descompasso – Editorial | Folha de S. Paulo

Gestão Bolsonaro segue com medidas erráticas, como se esta fosse uma crise comum

Demonstrações de insensibilidade social e cretinismo político por parte do governo Jair Bolsonaro não surpreendem mais, infelizmente. Entretanto a edição sorrateira de medida provisória que autorizava a suspensão de contratos de trabalho evidencia ainda descompasso alarmante com as prioridades do país na calamidade do coronavírus.

Em que pesem as circunstâncias excepcionais, a iniciativa foi atabalhoada e, em questão de horas de péssima repercussão, resultou em mais um recuo do presidente. Menos ruim, decerto, mas a conjuntura de emergência sanitária e econômica não permite que se perca tempo precioso com idas e vindas.

Baixada sem aviso nem explicação na noite de domingo (22), a MP faz parecer que o Palácio do Planalto e o Ministério da Economia ainda imaginam lidar com uma epidemia qualquer e a perspectiva de uma recessão comum.

O texto da medida busca, ou buscava, a preservação de empregos formais —quando também é urgente erguer uma rede de proteção tão ampla quanto possível a pobres, desempregados e informais cuja renda está prestes a esvair-se com o confinamento de pessoas e a paralisação de atividades.

Música | Fantasía Flamenca (Claro de Luna. Beethoven)

Poesia | João Cabral de Melo Neto - O sertanejo falando

A fala a nível do sertanejo engana:
as palavras dele vêm, como rebuçadas
(palavras confeito, pílula), na glace
de uma entonação lisa, de adocicada.
Enquanto que sob ela, dura e endurece
o caroço de pedra, a amêndoa pétrea,
dessa árvore pedrenta (o sertanejo)
incapaz de não se expressar em pedra.

Daí porque o sertanejo fala pouco:
as palavras de pedra ulceram a boca
e no idioma pedra se fala doloroso;
o natural desse idioma fala à força.
Daí também porque ele fala devagar:
tem de pegar as palavras com cuidado,
confeitá-la na língua, rebuçá-las;
pois toma tempo todo esse trabalho.

– João Cabral de Melo Neto, in “Melhores Poemas de João Cabral de Melo Neto”. [Seleção Antônio Carlos Secchin], São Paulo: Global Editora, 8ª ed., 2001, pag. 184.