segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Programa de Marina será cumprido quando conta fiscal permitir

• "Não tenho dúvida de que há um custo de fazer o ajuste hoje, mas ele certamente é menor do que o de não fazê-lo"

• "A indústria deve se preparar para uma operação desmame. Ela está acostumada a chorar e ser atendida"

Denise Neumann e Catherine Vieira – Valor Econõmico

SÃO PAULO - Direto e sincero, o economista Eduardo Giannetti, um dos principais conselheiros de Marina Silva, candidata do PSB à Presidência da República, não doura a pílula ao falar como vão ser enfrentados os desafios que ele vê hoje no país, em eventual vitória da sua candidata. A opção para fazer o ajuste econômico será pela via mais dura (porque permite uma volta mais rápida ao crescimento), os compromisso sociais assumidos no programa vão depender do equilíbrio fiscal e a indústria pode se preparar para uma operação "desmame". Embora evite detalhar como seria feito o ajuste econômico, e se ele incluiria aumento de juros, ou corte de despesas, para elevar o superávit primário, Giannetti admite que ele não será simples.

Antes de iniciar a entrevista, Giannetti avisa que não é "o" porta-voz econômico da campanha, mas um conselheiro e um dos formuladores do programa. Dito isso, admite que não será simples "arrumar" o Brasil. "Não tenho a menor dúvida de que há um custo de fazer o ajuste, mas ele certamente é menor do que o custo de não fazê-lo", disse. Questionado se os compromissos assumidos no programa não são conflitantes com a perna fiscal do tripé macroeconômico, foi muito claro. "Os compromissos serão cumpridos à medida que as condições viabilizarem, sem prejuízo do equilíbrio fiscal."

Ao falar sobre a formação de um eventual governo Marina, ele deixou claro que a campanha espera adesões já no segundo turno, e repetiu que não se vê como ministro da Fazenda. Perguntado se técnicos do PSDB podem ter cargos no governo, disse que sim, e fez referência espontânea, sem citar nomes, aos quadros técnicos do PT do primeiro mandato de Lula, "que são de extraordinária qualidade". Faziam parte daquele grupo Joaquim Levy, Marcos Lisboa e Bernard Appy, entre outros. Leia, a seguir, trechos da entrevista.

Valor: Quais os principais problemas da economia brasileira?

Eduardo Giannetti: O problema básico do Brasil hoje é uma combinação pouco usual de três fatos que não costumam caminhar juntos. Temos baixo crescimento crônico, inflação teimosamente na vizinhança do teto definido pelo sistema de metas com o agravante de que ela está artificialmente controlada tanto por preços administrados represados quanto por câmbio artificialmente mantido num patamar sobrevalorizado, e déficit em conta corrente de 3,5% do Produto Interno Bruto (PIB) que nos coloca em uma situação de eventual vulnerabilidade externa. É muito estranho que essas três coisas se combinem simultaneamente. Com crescimento tão baixo, a inflação deveria estar bem comportada, e se você tem um déficit em conta corrente de 3,5% do PIB, você estaria investindo a uma taxa expressiva. Cada um desses fatos isolados já seria um ponto de apreensão, os três juntos é sinal de coisas realmente fora do lugar.

Valor: E quando se pensa na correção, que ajuste é esse?

Giannetti: Vejo dois movimentos importantes. Um de ações corretivas, de desfazer equívocos, distorções e desequilíbrios que vieram se acumulando nos últimos anos e, ao mesmo tempo, uma nova agenda de reformas microeconômicas, institucionais e de melhoria do ambiente de negócios que libere o potencial de crescimento do Brasil e dê mais confiança e previsibilidade para que se volte a investir.

Valor: Que ações corretivas?

Giannetti: Vamos ter que voltar e reconstruir o tripé macroeconômico. É um retrocesso ter que voltar a falar isso, pois era algo amadurecido no Brasil, como uma base a partir da qual se pensava para frente, mas o governo Dilma foi tão desastrado e irresponsável que fragilizou as três pernas do tripé. A fiscal, a monetária e a cambial.

Valor: Para fazer essa correção será preciso aumentar juros?

Giannetti: Não vejo isso como necessariamente o caso. Vai depender de o governo voltar a agir de maneira integrada, coisa que não vem acontecendo. Temos política fiscal expansionista acompanhada de politica monetária contracionista, parte do governo expande o crédito e dá estímulos e outra parte aperta a política monetária e tenta conter a oferta de credito e segurar a demanda. O simples fato de integrar as peças da politica macroeconômica já diminui a necessidade eventual de mais juros. Mas reduzir o juro tem que ser o objetivo de longo prazo.

Valor: Precisa aumentar o superávit fiscal?

Giannetti: A primeiríssima coisa é aumentar a transparência, tomar pé da verdadeira situação fiscal, que hoje está difícil de saber qual é. O governo inventou tantas artimanhas, truques e malabarismos para manipular números que está difícil tomar pé da situação. Precisa colocar a situação fiscal em ordem e produzir superávits fiscais necessários para se restabelecer a confiança e a sustentabilidade das contas públicas.

Valor: O sr. desenha um cenário atual de deterioração muito forte da economia. Não precisa de um remédio igualmente forte?

Giannetti: Na vida, você se depara com duas opções, muitas vezes. Diante de uma situação de anomalia, você pode aceitar uma dor mais aguda e curta ou uma situação em que a dor é prolongada, você não enfrenta situação de intensidade imediata, mas o problema se prolonga por muito mais tempo.

Valor: Qual a opção de vocês?

Giannetti: A julgar por experiências recentes de ajustamento macroeconômico no Brasil, eu tendo a crer que vale a pena fazer o que precisa ser feito rapidamente. Em relação a preços administrados, por exemplo, se não convencer de que o que tinha que ser feito foi feito, a expectativa do que falta fazer vai alimentar a expectativa de inflação futura, o que dificulta fazer as expectativas convergirem de novo para o centro da meta. As experiências recentes de ajustamento macroeconômico foram bem-sucedidas. Isso aconteceu em 1999, na virada do primeiro para o segundo mandato de Fernando Henrique, e depois em 2003, no primeiro mandato de Lula.

Valor: Mas naquele momento o grande peso na inflação era o câmbio, e não havia esse quadro de emprego e renda que temos hoje..

Giannetti: A situação em certos aspectos era diferente da atual, de fato. Não tenho a menor dúvida de que há um custo de fazer o ajuste hoje, mas ele certamente é menor do que o custo de não fazê-lo. A diferença fundamental é você estar enfrentando uma dificuldade que é legitima porque restabelece um horizonte de volta ao crescimento versus estar enfrentando uma situação de dificuldade sem nenhuma perspectiva de reconquistar a confiança e um horizonte de normalização. São as duas coisas que estão em jogo hoje no Brasil. Não pode contar só com o choque de confiança, ele é parte importante e ele vai ser ainda mais importante se vier acompanhado de um movimento crível de que as coisas voltaram a se direcionar no caminho certo. A confiança é fundamental, mas precisa ter lastro.

Valor: Esse ajuste passa por desemprego e queda de renda?

Giannetti: O desemprego já é uma realidade e a ideia é que termine o quanto antes. Não está nos planos de ninguém fazer ajuste recessivo. Não é disso que se trata. Se trata de restabelecer a confiança e mostrar que a economia voltou a um bom caminho. A experiência mostra que a capacidade de resposta da sociedade brasileira é muito forte. Tendo a crer que ainda em 2015 será possível ver a volta da economia ao crescimento, se for muito bem feito.

Valor: No programa vocês defendem a volta do tripé macroeconômico. Mas a perna de austeridade fiscal não conflita com a democracia de alta intensidade e com a pauta das ruas no ano passado?

Giannetti: Os compromissos assumidos no programa serão cumpridos à medida que as condições viabilizarem, sem prejuízo do equilíbrio fiscal. Quais são as condições que viabilizarão isso? A revisão das prioridades nos orçamentos fiscal e parafiscal, a evolução da arrecadação, a retomada do crescimento e a melhoria da gestão do Estado. Os compromissos assumidos serão cumpridos, mas condicionados à evolução fiscal.

Valor: Talvez eles não sejam cumpridos nos primeiros anos?

Giannetti: Sem a menor dúvida. Esses compromissos se distribuem no tempo. É um erro grave imaginar que o que está colocado no programa vai se materializar no primeiro orçamento. Não será o caso. É preciso construir condições adequadas para que isso possa acontecer ao longo do mandato.

Valor: É possível aumentar gastos sem elevar a carga tributária?

Giannetti: É um compromisso não aumentar a carga tributária.

Valor: E como isso será possível?

Giannetti: Pela revisão das prioridades no orçamento, o que inclui desonerações, subsídios explícitos e ocultos que hoje estão prejudicando muito esses compromissos de caráter mais social. Vai depender da evolução da arrecadação, à medida que a economia for retomando, vai depender do PIB, vai depender da gestão, de reduzir o desperdício.

Valor: Vocês identificam despesas que poderiam ser cortadas?

Giannetti: É muito difícil para quem está fora do governo e não tem acesso, rubrica por rubrica, dar essa resposta. Mas vejo uma extravagância muito grande na expansão do crédito subsidiado no Brasil, vejo uma isenção da Cide sobre combustível que prejudica a arrecadação e prejudicou um setor importante da economia, que é o etanol, e que em algum momento vai ter que ser revista, porque não adianta subsidiar e estimular o combustível particular.

Valor: Isso significa que a Cide pode voltar?

Giannetti: Isso vai ser debatido.

Valor: Mas não seria um aumento de carga tributária?

Giannetti: A Cide vai voltar, mas outras coisas podem sair. Quando se fala em carga tributária é a bruta, de 36% do PIB. Ela cresceu em todos os governos desde a Constituição de 88.

Valor: Falando em prioridades, é possível desmontar de imediato essa operação de repasses para BNDES e demais bancos públicos?

Giannetti: Não, não vai ser um choque, porque teria um efeito traumático e ninguém quer isso, mas vai ter que rever essa política extravagante que levou a uma expansão de 9% do PIB na oferta de crédito subsidiado financiado com dívida pública. O BNDES é um típico caso de remédio-veneno. Não tem nenhum problema em, durante uma crise como 2009, financiar um aumento da oferta de crédito via BNDES por meio do endividamento bruto do Tesouro. É perfeitamente legítimo. O problema é que o governo Dilma levou ao limite o uso desse tipo de "funding" para que o BNDES escolha campeões nacionais e transfira recursos do contribuinte em subsídios para seus parceiros, que são grandes empresas que poderiam se financiar no mercado de crédito ou com lucros retidos ou no mercado internacional. Segundo cálculo do Mansueto Almeida, o subsídio implícito no descasamento de juros entre o que o Tesouro paga, que é no mínimo a Selic, e o que o BNDES recebe é superior ao volume total do Bolsa Família.

Valor: O remédio-veneno é pelo fiscal e pelo mercado de crédito?

Giannetti: Sim, ele tolheu o mercado de capitais, distorceu o mercado de crédito, prejudicou a política do Banco Central de aperto monetário, fora a falta de transparência, que é gravíssima no estado de direito. Não é nenhum problema manter subsídio no estado de direito, mas é uma regra de ouro que ele seja explícito e passe pelo orçamento. Do modo como ele está sendo feito no BNDES ele é oculto, ele não foi negociado e ele está transferindo para grupos privilegiados recursos da sociedade brasileira. Isso é política parafiscal.

Valor: A indústria precisa se preparar para receber menos de um eventual governo Marina?

Giannetti: Acho que a indústria deve se preparar para uma operação desmame. Ela está acostumada a chorar e ser atendida. Ela vai ter que se acostumar a uma situação em que ela será vitoriosa se for bem na competição. E ela irá bem na competição de mercado se for eficiente e inovadora. Temos que sair da situação em que vale mais a pena para uma empresa ter uma boa rodada de negociação em Brasília para uma situação em que vale a pena para ela concentrar sua atenção e seus esforços em fazer melhor o que ela faz ou em fazer algo que ninguém está fazendo.

Valor: A indústria diz que para dentro da fábrica ela é competitiva. Que o problema é para fora, o juro alto, o câmbio, carga tributária...

Giannetti: O que vai precisar é integrar mais a economia brasileira, fazer uma nova rodada de abertura comercial, de mais integração competitiva, e dar para o empresário a confiança de que as regras são permanentes e não vão ser negociadas de maneira arbitrária na base da pressão setorial. Elas valem para todos, serão horizontais e visam ao aprimoramento do ambiente de negócios. No governo Dilma houve um retrocesso para um modelo de microgerenciamento, que gerou uma espiral intervencionista no Brasil.

Valor: O sr. disse que seria possível num eventual governo Marina ter Fernando Henrique e Lula, como isso se daria?

Giannetti: Não se trata de participar no sentido de ter um cargo ou integrar o governo. Significa que são líderes de forças políticas relevantes com as quais nós certamente desejamos trabalhar.


Valor: Quanto a perda do Eduardo Campos pode prejudicar o projeto da 'nova política' de reunir líderes importantes de diversos partidos, excluindo a parte pior?
Giannetti: A perda do Eduardo Campos é irreparável e vai se fazer sentir por muitas gerações no Brasil. Uma liderança como a dele não se improvisa, é obra de uma dedicação e de um empenho infatigáveis, uma espécie de dom da natureza. Há pessoas que são nascidas e talhadas para a liderança. Vai fazer muita falta especialmente em duas dimensões: competência de gestão e de articulação política. Deixa um déficit, uma lacuna e na dimensão em que ele era capaz, acho que é impossível preencher.

Valor: E como vocês pretendem suprir isso, dado que há projetos de reformas política e tributária logo para o começo do governo?

Giannetti: Isso é o que se está muito empenhado em definir e trabalhar e não há uma resposta que eu possa dar satisfatória a essa altura, mas acho possível encontrar essa resposta. Tenho impressão que, quando estiver definido o segundo turno, vai haver um reordenamento das forças políticas no Brasil.

Valor: E não é a velha política que virá para vocês..?

Giannetti: Depende de como é feito, vão vir bons e ruins. Virá também um contingente de oportunistas querendo tirar beneficio de uma nova situação de poder. Nós vamos ser muito criteriosos em saber se aliar àqueles que têm a agregar e que têm realmente afinidade de projeto com as nossas propostas.

Valor: O sr. vê nomes que estão com o PSDB na equipe de Marina?

Giannetti: Evidente que sim. E quadros que não tiveram experiência de governo também. O Brasil felizmente tem técnicos e pessoas dispostas a se engajar em politicas publicas nos mais diferentes setores, não só em economia. E por que não quadros técnicos do PT no primeiro mandato do Lula, que são de extraordinária qualidade? Não restringiria isso ao PSBD de forma nenhuma

Valor: Que nomes vocês gostariam de ter na equipe de governo?

Giannetti: Não vou entrar em nomes, mas a equipe do ministro [Antonio] Palocci no primeiro mandato do Lula é uma equipe de primeiríssima qualidade.

Valor: O sr. se vê ministro da Fazenda?

Giannetti: Não, eu não me preparei para isso na vida, não tenho tino para isso e não tenho ambição. Eu gosto de estudar, de escrever, de pensar. Posso ajudar na formulação, em estratégia, e, se for chamado a fazê-lo, posso ajudar na escolha de nomes.

Valor: E o ministro da Fazenda pode, então, ser o Arminio Fraga?

Giannetti: Acho prematuro discutir nomes, agora. Tenho extraordinária admiração por ele.

Valor: O setor financeiro parece entusiasmado com a Marina, mas há resistência entre empresários..

Giannetti: Entre os setores, a maior resistência parecia vir do agronegócio. É onde havia um ruído desnecessário, e nas últimas semanas claramente houve um avanço de abrir um canal de comunicação e entendimento de que, ao contrário do que erroneamente possa ter parecido, temos enorme apreço e pretendemos dar ao setor do agronegócio brasileiro plenas condições de um crescimento saudável e sustentável.

Valor: O que diferencia o projeto da Marina dos demais?

Giannetti: Uma das diferenças do projeto liderado pela Marina é que não vemos a economia como um fim em si mesmo, ela é pré-condição para uma vida melhor para todos, de uma realização mais plena. O sonho que nos move é que a economia deixe de ocupar o lugar de proeminência que ela ocupa hoje no debate brasileiro para que a gente possa focar em questões ligadas à cidadania, à realização humana, à felicidade.

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