domingo, 6 de outubro de 2019

Míriam Leitão – Muito além da economia

- O Globo

A economia não vai progredir sozinha. A ideia de que se pode modernizar a economia em um governo de propostas arcaicas é irreal

Há muito mais na economia do que apenas os indicadores ou decisões da área estritamente econômica. Ela depende, para ter um bom desempenho, de inúmeros sinais e situações que estão em outros setores. Uma parte das expectativas de retomada do crescimento está condicionada ao andamento da agenda legislativa, mas o presidente tomou a decisão de não formar uma base parlamentar estável, e por isso o governo tem improvisado no relacionamento com o Congresso. Além disso, Bolsonaro tem uma lista de prioridades idiossincrática, muitas delas vão no sentido oposto ao que deveria para alavancar o crescimento.

Na terça-feira passada, Bolsonaro se reuniu com garimpeiros, demonstrou saudosismo em relação ao tempo em que eles atuaram de forma predatória e sem limites legais, e ainda falou a frase depreciativa sobre “a árvore”. Esse tipo de cena tem o efeito de derreter intenções de investimento. A grande mineração exige hoje regras de conduta muito severas porque presta contas aos stakeholders, ou seja, a todas as partes interessadas. Os erros colossais da Vale elevaram o nível de exigência da atuação dessas empresas no Brasil. É hora de mostrar mais aderência aos valores que desembarcaram no mundo dos negócios. O garimpo é o oposto de uma produção sustentável dos recursos minerais.

Em bases quase diárias, o governo dá sinais de não ter uma agenda de superação dos obstáculos ao crescimento. O ministro do Meio Ambiente repete ideias e toma decisões antiambientais. O ministro da Educação trava uma batalha na mídia social em mau português contra fantasmas ideológicos. O ministro da Cidadania se dedica a restabelecer a censura na área cultural. O ministro das Relações Exteriores se enclausura em ideias estreitas e revoga as virtudes conhecidas da diplomacia brasileira. Nada disso é economia e tudo é economia. Os sinais que sustentam a confiança dependem de que o país esteja atualizado com as tendências do mundo nas áreas ambiental, educacional, cultural e diplomática. O obscurantismo em qualquer desses setores é um pacto antiprogresso. O que grandes investidores se perguntam é para onde está indo o país, se a educação preparará os estudantes para os desafios do século XXI, se as preocupações ambientais e climáticas estão sendo incluídas na agenda pública, se a diplomacia está ampliando as relações internacionais, se a política cultural expressa a diversidade do país.

O governo está emitindo sinais difusos em áreas diferentes que convergem para a mesma mensagem: a de que o país está em retrocesso social e político. E querem que a economia progrida sozinha tirando o país do atoleiro em que se encontra. Ela é parte de um todo. A ideia de que se pode modernizar a economia em um governo de valores arcaicos é um contrassenso.

A reforma da Previdência passou por várias etapas, sendo desidratada no meio do caminho, e enfrentando muitos sustos. Se caminhou foi à despeito do presidente da República, que se mobilizou apenas para a defesa corporativista que fez ao longo da vida. A causa de adaptar o sistema de pensões e aposentadorias à realidade demográfica e fiscal brasileira foi abraçada por líderes de partidos que não são governistas e foi votada até por alguns parlamentares da oposição, com um custo político alto. A área econômica teve alguns valorosos combatentes no esforço de entendimento com o Congresso, mas a articulação política não aplainou o terreno para os técnicos da economia. Pelo contrário, as muitas falhas na articulação tornaram o caminho mais pedregoso.

O Ministério da Economia fala em muitas reformas. Elas são ambiciosas: mudariam a estrutura do gasto público e implantariam um novo federalismo. O presidente se mobiliza pela liberação de armas, na defesa de torturadores e da ditadura, em favor do garimpo e exploração mineral em terras indígenas, contra a proteção do meio ambiente e na garantia de vantagens para os filhos. A agenda da economia é uma retórica superlativa ainda sem projetos elaborados. A do presidente tem iniciativas, decretos e MPs que dispersam a atenção do Congresso. O progresso é muito mais do que um indicador e a economia jamais será uma ilha.

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