sábado, 2 de janeiro de 2010

Miriam Leitão :: Flores no verde

DEU EM O GLOBO

Você não tem vontade de falar de flores? A pergunta veio pelo twitter e eu respondi, econômica, que sim, sempre que posso. Hoje, dia dois de janeiro, o ano já começou, mas ainda descansa à espera do primeiro dia útil, quem sabe posso falar de flores? Vou andar hoje por campos preparados para receber cinco mil mudas de espécies nativas da Mata Atlântica, algumas darão flores como os ipês.

Refazer é difícil e insuficiente.

Nos campos em que andarei hoje, num pedacinho de terra em Minas Gerais, a luta contra o braquiária é desigual. O capim, uma vez plantado, vira praga.

Mesmo arrancado, renasce; capinado, cresce mais perigoso. É preciso fazer a coroa e abrir o espaço que vai receber as mudas das espécies próprias para essa região da Mantiqueira.

Como todos os biomas brasileiros, a Mata Atlântica não é uma só, ela assume várias caras, dependendo da parte do Brasil onde está.

Na Mantiqueira, área mais fria, a mata tem até araucária. Não sei se vocês já contemplaram a araucária quando a lua nasce. Os braços abertos parecem chamar a lua para mais perto, mais perto.

Ao longo do ano, será preciso vigiar as mudas para evitar que o inimigo, o capim braquiária, cresça e sufoque a recém-nascida.

As formigas precisam ser contidas porque também podem ameaçá-las.

Há a chuva excessiva, o sol demais, a pouca chuva, tudo que estiver fora do ponto certo ameaça a espécie que acabou de ser devolvida ao solo ao qual sempre pertenceu.

A Mata Atlântica foi a primeira a enfrentar o colonizador, o crescimento da população brasileira, todos os ciclos econômicos. Foi morrendo um pouco a cada encontro. Foi posta abaixo a ferro e fogo. Alimentou os fornos dos usineiros e os altos-fornos das siderúrgicas.

Caiu para a formação dos pastos e plantações. Virou móveis, casas, lenha.

Continua sendo derrubada.

Quem tiver que replantar um metro que seja dessa mata, há de desistir da destruição, por três motivos.

Primeiro, o trabalhão que dá plantar e garantir que as mudas cresçam. Depois, a alegria que dá vê-las crescendo.

Por fim, a calma que transmitem quando já se transformam em pequenos bosques. É inevitável pensar nos que virão e verão o verde diverso se espalhando, sombreando e florindo.

No meio de cada pedacinho de mata há flores. Já viram as quaresmeiras do mato? Vários tipos e cores do roxo à púrpura. Melhor nem falar das paineiras que se cobrem inteiras uma vez por ano.

As patas de vacas brancas são minhas favoritas.

Tenho uma na minha casa no Rio. Um dia chegou uma paisagista e sugeriu cortá-la porque sua sombra impedia o crescimento da grama. A dona da ideia foi dispensada, a pata de vaca ficou e agradeceu florindo em seguida, como nunca antes.

O Brasil tem muitos biomas e eles são, além de tudo, um passaporte para o século XXI que valorizará cada vez mais a biodiversidade perdida. Em Copenhague, o primeiro-ministro Wen Jiabao disse que a China tem a maior floresta plantada do mundo. Como se sabe, as plantadas, por mais que se esforcem, não chegam aos pés das naturais em biodiversidade. O Cerrado garante as águas de boa parte do Brasil e tem espécies resistentes aos tempos extremos que se aproximam. E por falar nisso, nada mais extremo do que a área da Caatinga, que nasce de teimosa. A Amazônia é ela só: soberana, inigualável, preciosa. Onde se ouve falar de clima do planeta, das ameaças ao meio ambiente, dos "tipping points" da mudança climática lá estará a Amazônia no centro da conversa.

Famosa. O pantanal é belo, frágil, exuberante; parece berço de vida. Os Campos gaúchos de horizonte longo são ainda pouco entendidos como bioma. Mas de tudo o que floresce por aqui, a Mata Atlântica tem esse quê de aconchego, da mata lá da infância, de verde conhecido, das ervas dos bochechos, gargarejos e infusões, do erro que cometemos e queremos reparar.

A Mata é a mata. Merece tantos cuidados porque está quase no fim, porque está onde moram mais brasileiros e porque tem sido refeita arduamente por milhares de proprietários de pequenas e médias propriedades, nas RPPNs, as Reservas Particulares do Patrimônio Natural.

Já contei as histórias de alguns heróis da Mata Atlântica: Lélia e Sebastião Salgado que em Aymorés, em Minas, no caminho para o Espírito Santo, replantaram um milhão e meio de árvores para refazer a cobertura da fazenda onde o fotógrafo brasileiro, mundialmente famoso, passou a infância. De lá o projeto se estende produzindo um milhão de mudas para refazer a mata ciliar do Rio Doce.

Eles querem aumentar a produção ainda mais a cada ano. Um dia, se tiverem sucesso, poderemos voltar a dizer: como é verde o nosso vale. O outro herói, também contei aqui neste espaço, é Feliciano Miguel Abdala, que protegeu persistentemente e sozinho mil hectares de mata na cidade em que nasci, Caratinga. E, assim, preservou a maior população de muriquis. Ao estudar esses macacos, a primatóloga Karen Strier provou, na sua tese de doutorado de Harvard, que era mito a ideia de que todos os primatas têm o mesmo comportamento. Os muriquis são diferentes: pacíficos, cooperativos, sem macho dominante. Vivem de comer frutos e flores da Mata Atlântica.

E assim termino esse artigo que me pediram, nos poucos toques que cabem no twitter. Os outros temas de sempre — os excessivos gastos públicos, as atas do Copom, a valorização do yuan, o desemprego, a oscilação do dólar — que esperem.

Porque hoje é sábado e o ano mal começou, falo das flores que, quando se espalham no verde da mata, são ainda mais belas.

Com Bruno Villas Bôas

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