domingo, 20 de outubro de 2019

Ascânio Seleme - Notre Dame do Brasil

- O Globo

Em torno da recuperação da catedral, há três círculos de poder cujos integrantes batem cabeça e se atrapalham na condução dos trabalhos

As obras de restauração da Catedral de Notre-Dame estão atrasadas. Em torno da sua recuperação, após o incêndio de abril, há três círculos de poder cujos integrantes batem cabeça e se atrapalham na condução dos trabalhos. Por vezes, parece que a catedral é brasileira e foi erguida no Centro do Rio de Janeiro. Há um desentendimento permanente e constrangedor entre a Igreja, o governo francês e a prefeitura de Paris, que têm tipos diferentes de autoridade sobre o templo. E, mais grave, acima destes três elementos foi instaurado um poder maior na figura, vejam só, de um general. Desde Charles de Gaulle, nenhum general assumiu qualquer posto na França de tamanha visibilidade.

Há uma tensão forte entre a Diocese de Paris, o Ministério da Cultura da França e a Subprefeitura da região da Île de la Cité, onde a catedral está efetivamente localizada. A diocese reclama precedência porque, afinal, o prédio é uma igreja católica, um local de culto. O Estado entende ser problema seu uma vez que se trata de um bem cultural da humanidade e, pela lei de 1905 que separou religião e Estado, todos os prédios religiosos pertencem ao poder público, que concede seu uso. Já a prefeitura julga ter sua parcela de responsabilidade porque é sobre seu território e sob suas regras de ocupação que a catedral está assentada. Diante disso, vem ocorrendo uma guerra de egos, que segundo o jornal “Le Monde” muitas vezes atrapalha o bom andamento das obras.

Além disso, a França é a terra onde nasceu a burocracia, que é a junção da palavra francesa bureau , que significa escritório, com a grega cracia , que significa governo. E esse governo de escritório acaba atrapalhando tanto a recuperação da catedral quanto o trabalho de se romper os três níveis de poder que cercam a Notre-Dame. Claro que medidas de segurança têm que ser adotadas para garantir a saúde do pessoal que está trabalhando no que já se chama em Paris de “o canteiro de obra do século”. Mas há em curso uma profusão de medidas de precaução que precisam ser vencidas, inclusive uma que prevê cuidados excepcionais em locais onde haja presença de chumbo.

O fato é que a restauração da Notre-Dame vai demorar mais do que o previsto e o muito mais do que o prometido. O general Jean-Louis Georgelin, nomeado pelo presidente Emmanuel Macron, que via nele um pulso forte na gestão das obras, não consegue ser tão eficiente quanto se supunha. Já foram comprometidos 104 milhões de euros, dos 350 milhões doados, mas até o momento nem mesmo os andaimes que foram usados para assegurar as bases da catedral foram desmontados, o que só deve ocorrer em novembro. De todo modo, o precavido general já contratou 40 pessoas para a administração da obra.

No Rio, a recuperação do Museu Nacional, que também foi consumido pelo fogo, anda da mesma forma a passos lentos e curtos. Diferentemente da Notre-Dame, sobre o museu não choveu um mar de euros de brasileiros endinheirados e preocupados com a preservação de patrimônio histórico e cultural do Brasil. Mas nem precisava, aqui as coisas nunca andam na velocidade ideal mesmo. De qualquer forma, não se pode acusar nossos ricos de serem egoístas ou insensíveis. Como se sabe, no Brasil todo cuidado é pouco. É sempre arriscado, para não dizer perigoso, colocar dinheiro nas mãos de terceiros. Ele pode evaporar sem produzir sequer um tijolo.

Vejam o caso dos irmãos Moreira Salles, amantes incondicionais do Botafogo. Patrocinaram um estudo para a recuperação financeira do clube, mas na hora de dar dinheiro para a diretoria do time a conversa é outra.

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