- O Globo
Fernanda Montenegro chega aos 90 anos quando a potência da sua voz é mais necessária e seu relato nos ajuda a refletir sobre a história do Brasil
O que as decisões tomadas em duas aldeias da Sardenha — Bonarcado e Teulada — no final do século XIX têm a ver com o Brasil de hoje? Isso sabe quem seguiu a trilha dos imigrantes que foram parar num centro de triagem em Juiz de Fora. Deles descende Fernanda Montenegro, cujo aniversário foi comemorado como uma data nacional. Têm sido dias de refletir sobre sua inquestionável excelência profissional. Mas há mais além do ofício. Ela chega aos 90 anos quando a potência da sua voz é mais necessária, e seu relato nos ajuda a pensar na história do Brasil.
Oitocentos italianos contratados para trabalhar em fazendas de café em Minas embarcaram para o Brasil, pensando que ficariam pouco tempo e voltariam para a Itália. No mesmo navio estavam, ainda adolescentes, a avó e o avô maternos de Fernanda. O reencontro dos dois e o casamento vieram anos depois.
A saga vivida por esses imigrantes no Brasil, as incríveis histórias de alguns dos personagens deixam a ficção invejosa. A realidade a superou. E, assim, desde o começo do seu livro de memórias, a história do Brasil e a dela vão se confundindo. Os italianos dos quais descende por parte de mãe desembarcaram num país que tinha encerrado a escravidão havia apenas 10 anos. “Foram acomodados em senzalas parcamente adaptadas”, descreveu. Os portugueses do lado do pai também enfrentaram durezas. Mas, Fernanda narra tudo com a leveza de quem está ao seu lado na sala. Criar esse aconchego é um dos méritos da obra que ela escreveu com a colaboração da escritora Marta Góes.
A diferença entre o Brasil antes e depois das leis trabalhistas de Getúlio ela sabe de ver o pai exercer seu ofício sem qualquer “atendimento social”. Isso não a faz contemporizar com a ditadura Vargas. Mas ela registra a transição de um regime quase escravagista para a era dos direitos do trabalhador. A história do seu amor e casamento se mistura com a da dramaturgia. “Respirávamos teatro eu e Fernando Torres”. Seis meses depois da morte dele, ela volta aos palcos, indo às periferias, com o magnífico “Viver sem tempos mortos”.
Seu livro nos ajuda neste momento. A história do Brasil tem períodos duros, mas é possível reconciliar-se com ela. Os sardos antepassados de Fernanda não encontraram o ouro fácil que ouviram dizer que havia no país. Nem lavrando a terra, nem escavando a mina de Morro Velho. Mas Pedro Nieddu, operário na construção do teatro Municipal, décadas depois de morrer, foi homenageado pela neta que, no palco, lhe ofereceu seu Molière. A avó Maria Francisca “saiu desse mundo, mas não da minha alma”, escreveu a neta. É parte, portanto, da atriz que o país ama.
É possível se acalmar com o Brasil atual vendo a força com que ela resiste ao ataque às artes e às liberdades. E o faz porque tem uma convicção: “É a Cultura das Artes que faz uma nação”. Em março, na entrega do prêmio Faz Diferença, troquei rápidas palavras com ela. “Não temos ninguém em Brasília, não temos um Ulysses”, me disse. E eu pensei que era muita sorte, a nossa, ter Fernanda Montenegro. Dias atrás, ela apareceu numa peça e, da plateia, convocou os jovens à resistência. Comparou os teatros às catacumbas onde os cristãos defenderam sua fé. Mais do que a censura que ela conheceu na ditadura, o temor agora é a perigosa mistura de autoritarismo e fanatismo religioso.
Tudo veio por acaso e chegou na hora certa. O livro é uma longa conversa sobre o Brasil, os imigrantes que acreditaram, os operários que o construíram, os artistas que o ilustraram. Ela fala pouco de si mesma e nos ajuda a refletir sobre o país neste tempo tão áspero. Fernanda relutou diante da ideia de posar de bruxa para a revista literária “Quatro cinco um”. Depois aceitou. As fotos foram feitas, editadas e, quando foram divulgadas, era a hora exata. O país via o ato de censura invadir a Bienal do Rio, abrindo uma sucessão de dias ainda mais turvos. Fernanda amarrada e os livros preparados como se fossem para uma fogueira foram alerta eloquente do risco da caça às bruxas.
Sua filha Fernanda Torres a define como uma mulher de todos os tempos. Perfeito. Fernanda é de agora. Exatamente o tempo em que precisamos tanto da sua lucidez. Seus 90 anos completam-se na hora certa. A de concluir que não fizemos toda essa longa trajetória como país, para tomarmos, sem reação, o caminho de volta para o atraso. Ela avisa, contudo, que “a esperança tem que ser uma ação viva”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário