segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Guerra civil :: Paulo Brossard

DEU NO ZERO HORA (RS)

Faz uma semana, pouco mais, com relevo foi divulgada notícia envolvendo a posição do Brasil em tema delicado, a notória ofensa a direitos humanos consagrados pela comunidade das nações civilizadas. Tratava-se da situação vigente no Irã, que timbra em manter algumas normas que repugnam padrões universais, como “apedrejamento, chibatadas, amputações, execução de adolescentes, estrangulamento, enforcamento, discriminação contra mulheres e minorias”.

Quarenta e duas nações, sob a liderança do Canadá, apresentaram projeto de resolução no plano da ONU em que externavam “preocupação profunda” em face da notória violação desses direitos no reinado de Ahmadinejad, escolhido pelo Brasil para seu comparsa nas travessuras diplomáticas engendradas pelo presidente da República. Resultado dessa estranha preferência foi a abstenção do Brasil; para ser agradável ao seu parceiro, a abstenção foi caracterizada pelo voto, quer dizer, o não voto; aliás, é de notar-se que o presidente Luiz Inácio chegou a oferecer asilo a uma condenada à lapidação e a oferta foi recusada por seu parceiro e depois disso a presidente eleita chegou a dizer que a sanção era “muito bárbara”.

Contudo, prevaleceu a abstenção, na desconfortável companhia de Venezuela, Cuba, Líbia, Bolívia, Angola, Benin, Butão, Equador, Sudão... et caterva. A repercussão foi penosa, o que levou o ministro das Relações Exteriores a elaborar uma explicação justificada. A emenda saiu pior que o soneto. Um dos nossos grandes jornais, tradicionalmente atento aos problemas internacionais, em editorial, referiu-se à lamentável defesa da Casa de Rio Branco como “intelectualmente pobre e moralmente esquálida”. Tudo isso para afagar o amigo e compadre internacional, embora a Constituição proclame que o Brasil tenha como fundamento “a dignidade da pessoa humana” e que a República “rege-se nas suas relações internacionais” pela “prevalência dos direitos humanos”.

Mudo de assunto, embora muito tivesse a dizer sobre a abstenção em causa. É que aconteceu o que, dia mais, dia menos, teria a acontecer. Afinal, sem aviso nem declaração formal, alguém, sem nome nem documento, iniciou a guerra civil na Cidade Maravilhosa. O Rio de Janeiro, a segunda metrópole brasileira, a antiga capital, passou a ser palco de violências e danos materiais, como sói acontecer, o fato não aconteceria sem causa, por mero acaso nem de repente. As causas são antigas e, salvo engano, foram publicamente adotadas quando um governante anunciou “polícia não sobe o morro”, o que importava dizer que a população que mora em morros, privada da polícia, passava a depender de quem veio em sua substituição. O vazio tem de ser preenchido.


Se o Código Penal deixa de ser aplicado no morro, outra lei surge, e passa a ser aplicada; pela Justiça? Obviamente, não, mas por quem tenha poder de mando; suas decisões são tomadas com a observância do devido processo e uso de recursos inerentes a qualquer decisão? Claro que não. No entanto, um simulacro de ordem e justiça se instalou e a famigerada entidade passou ao funcionamento. Isto posto, a guerra, guerra civil, está em curso, provocando seus fatídicos efeitos. Até onde? Não sei.

Sejam eles quais forem, a meu ver, eles seriam inevitáveis, até porque, no longo interregno, a entidade inicial cresceu e hoje não hesita em guerrear o próprio poder público. É possível que tenham se surpreendido com a reação estatal. Mas isto não passa de especulação e em nada modifica a situação existente. O que impressiona é a audácia da ação. Em verdade, a anomalia não podia terminar bem, especialmente depois de ter se estabelecido um pacto entre o fato social inegável e a droga com suas exigências e peculiaridades, que, segundo se diz, são ilimitadas e inexoráveis. A respeito ninguém pode iludir-se.


*Jurista, ministro aposentado do STF

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