quarta-feira, 27 de julho de 2011

Ética flexível:: Merval Pereira

Não poderia haver momento mais propício para a discussão da questão ética quanto este que vivemos, a exigir a ação da cidadania, quando o país se vê envolvido em denúncias de corrupção de vários matizes, com agentes públicos os mais diversos arrostando a indignação generalizada da sociedade com atitudes de menosprezo por esse sentimento latente.

O GLOBO recentemente criou uma seção para denúncias de transgressões do dia a dia com o título genérico de "Ilegal, e daí?", para refletir o descaso com que o assunto é tratado por autoridades e cidadãos.

Também Carlos Alberto Sardemberg, na Rádio CBN, criou uma vinheta chamada "Nada de mais", onde registra casos acontecidos em diversos setores das atividades em que os malfeitos são tratados com a naturalidade que os transforma em fatos normais da vida.

Se, no caso do GLOBO, as reportagens refletem mais abusos de poder e usurpação de direitos de terceiros no dia a dia da cidade, a vinheta da CBN se refere majoritariamente a casos políticos, como a Comissão de Ética do Senado, que considerou normal a ameaça de agressão do senador Roberto Requião a um jornalista, de quem expropriou um gravador para rasurar a fita com suas ameaças.

Não bastassem os escândalos diários envolvendo o Ministério dos Transportes, uma novela interminável em que a cada momento surgem novos enredos e vilões, lidamos nos últimos dias com outra questão ética muito própria da nossa cultura patrimonialista: empresas de deputados e senadores que têm negócios com o governo, apesar da proibição expressa da Constituição.

De acordo com o artigo 54 da Constituição, deputados e senadores não podem firmar ou manter contrato com pessoa jurídica de direito público, autarquia, empresa pública, sociedade de economia mista ou empresa concessionária de serviço público e ser proprietários, controladores ou diretores de empresa que goze de favor decorrente de contrato com pessoa jurídica de direito público, ou nela exercer função remunerada.

Anteriormente, o país já havia discutido, sem que se tenha chegado a uma conclusão, a questão da consultoria que Antonio Palocci, quando era deputado federal, prestou a diversas empresas, cujos nomes ele nunca revelou.

Havia a desconfiança de que ele prestara consultoria à Petrobras, o que foi negado, mas, como ele não divulgou a lista de seus clientes, nunca saberemos.

Agora, o procurador-geral da República, Roberto Gurgel, vai investigar as denúncias de fraude em licitações da Petrobras que teriam beneficiado uma empresa do, logo quem, presidente da Comissão de Constituição e Justiça do Senado, Eunício Oliveira (PMDB-CE), em um contrato de R$300 milhões para contratação de serviços ligados à produção de petróleo e gás no pré-sal da Bacia de Campos.

Mesmo que não houvesse fraude, o simples contrato já seria ilegal. Em outra ponta, descobriu-se que uma empresa do deputado Paulo Maluf recebe cerca de R$1,3 milhão por ano do governo federal pelo aluguel do prédio onde funciona a sede da Procuradoria da Fazenda Nacional, em São Paulo, desde o fim de 2006, quando o contrato foi celebrado com "dispensa de licitação".

Dentro desse clima, a Academia Brasileira de Letras começou ontem um ciclo de conferências, coordenado pela escritora Ana Maria Machado, sob o título de "Ética e cidadania em tempos de transição".

O historiador da USP Boris Fausto, depois de uma breve abordagem genérica sobre a questão ética na vida social e suas raízes históricas na nossa sociedade patrimonialista, analisou mais detidamente o aspecto político do fenômeno, tratando-o com uma ironia proposital a começar pelo título: "A flexibilização da ética, razões específicas do processo brasileiro como lideranças políticas vindas da ditadura militar e o presidencialismo de coalizão".

Boris Fausto recusou-se a considerar que os políticos atuais sejam piores que seus antecessores históricos. Preferiu atribuir a decadência que estamos vivenciando na questão ética a circunstâncias históricas do desenvolvimento do país, como o crescimento avassalador do capitalismo de Estado, fazendo surgir uma nova classe dirigente - identificada originalmente pelo sociólogo Francisco Oliveira - que mistura o poder sindicalista emergente, dominando os fundos de pensão das estatais, e as megaempresas multinacionais.

E a consequente possibilidade de ganhar muito dinheiro também com a prevalência, a exemplo do que ocorre no mundo globalizado, do sistema financeiro.

Boris Fausto chamou a atenção para a naturalização dos desvios éticos, que são explicados ou com desculpas do tipo "sempre foi assim" ou com versões muitas vezes fantasiosas, mas que acabam resolvendo a questão, por mais absurdas que possam parecer.

Nesse ponto, ele chamou a atenção para a gravidade do exemplo dado pelo ex-presidente Lula na crise do mensalão, que tentou desculpar os desvios detectados como se fossem atos corriqueiros dos políticos brasileiros, como o uso do caixa dois em campanhas políticas.

Por ironia, também no mundo a desfaçatez aumentou nestes tempos pós-modernos, quando não há mais lugar a arrependimentos públicos como os antigos haraquiris de autoridades japonesas apanhadas em desvios éticos.

O historiador Boris Fausto encerrou sua palestra elencando uma série de medidas que podem ser adotadas para melhorar o panorama político, como uma reforma política que altere o sistema eleitoral e iniba a infidelidade partidária.

E, sobretudo, uma reforma no sistema judiciário que torne nosso sistema menos sujeito a recursos protelatórios e mais eficiente na punição dos culpados, sem o quê, fica difícil coibir as transgressões.

FONTE: O GLOBO

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