quarta-feira, 3 de agosto de 2011

O legado do pecebismo contemporâneo - Raimundo Santos


 [Texto extraído do livro A importância da tradição pecebista, editora FAP, Brasília. O volume foi lançado na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro como uma das atividades comemorativas do centenário da instituição. Na ocasião, Luiz Sergio Henriques, editor do site WWW.gramsci.org pronunciou a palestra "Gramsci e a esquerda contemporânea".]
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Anda que não tenham elaborado um corpus intelectual, como, por exemplo, o PCI, na sua trajetória contemporânea rumo à valorização da democracia política, os comunistas brasileiros proporcionaram às demais esquerdas um estilo de pensar e agir que poderíamos chamar de pecebismo. Trata-se de um modo de ser politicista lembrando aqui em registro positivo um termo que já foi usado para desqualificar o PCB –, estilo construído num campo de esquerda em permanente busca do domínio das circunstâncias com as quais se deparava. Este empenho foi estimulado pela boa intuição que marcou o Partidão, principalmente áreas do seu núcleo dirigente, dividido entre a orientação doutrinária e a realidade na qual os comunistas eram chamados a operar com previsão e perspectiva. O pecebismo expressa a propensão dos comunistas a compreender o sentido das conjunturas e a equacionar os requerimentos postos às esquerdas brasileiras. Circunstâncias que delas exigiam intervenção eficaz em um país cujo melhoramento dependia – como hoje depende – da sua progressiva democratização política.

Recolhido em documentos oficiais por meio de passagens às vezes ambivalentes – após embates entre ortodoxia e inovação, conciliações e fraturas –, esse custoso empenho para compreender o Brasil visava dotar os militantes de uma “linha política” geral que os habilitasse não só a intervir no mundo efetivo como ainda a avaliar as consequências dos seus atos segundo textos resolutivos e diretrizes divulgados na imprensa partidária. Trata-se de um estilo vivido custosamente à margem da sua filiação internacional marxista-leninista, delimitado do seu forte vínculo com o socialismo real e a URSS.

Podemos localizar os antecedentes desse pecebismo bem no começo dos anos 1950, quando os comunistas dão os primeiros passos rumo a uma atuação aberta na superfície da vida sindical, após os exasperados anos da Guerra Fria. Essa abertura se dava tanto em relação ao sindicalismo urbano então existente no país como ao mundo rural, no qual o PCB começou a fundar os sindicatos de assalariados e semi-assalariados visando uma mobilização ampla que alcançasse os camponeses. No entanto, com tais sindicatos e a ULTAB, terminariam por fundar a Contag, em 1963, e estender uma rede associativa ao largo do território nacional.

O pecebismo contemporâneo aparece de modo mais visível no momento em que os comunistas reencontraram a política propriamente dita na sequência do 24 de agosto de 1954. Foi quando o PCB se aliou a outras correntes gravitantes no mundo partidário real em defesa da Constituição de 1946, em luta contra a interrupção do processo de descompressão política que se afirmava naquela época. Depois, essa militância na frente única antigolpista formada em resposta aos eventos daqueles anos 1950 tornar-se-ia vocação, cada vez mais esta tática unitária sendo apresentada em elaborações pecebistas como um valor fundamental.

Em tanto prática, esse pecebismo, sobremaneira no pós-64, foi de muita responsabilidade e lucidez, como certa vez disse Hélio Jaguaribe, observando que a teoria que o referenciava não lhe era homóloga (cf. MARÇAL BRANDÃO, 1992). No entanto, como construção político-intelectual, o PCB teve épocas em que produziu ricas elaborações, como no primeiro grande momento renovador ocorrido entre os anos 1956-58, do qual surgiu, com o apoio de Prestes, a Declaração de Março de 1958, texto anunciador da “nova política” com a qual o Comitê Central encerrou a controvérsia sobre o estalinismo e procurou consolidar a propensão dos comunistas a interferir na vida nacional. A defesa permanente e a apreciação das liberdades, bem visíveis durante o regime de 1964 na postura de frente democrática e na contínua busca de atuação nas instituições, no associativismo legal e em particular nas eleições, por mais limitados que estivessem, evidenciam a importância que os comunistas atribuíam à democracia representativa.

Esse pecebismo contemporâneo – como o emedebismo acrisolado nos anos da resistência ao autoritarismo – forjou um tipo de atuação influenciado por valores democráticos e particularmente por condutas unitárias construtivas bem características do PCB desses tempos duros.

Em relação ao nexo reformismo e democracia política – o outro grande tema em que há contribuição dos comunistas –, observemos que há uma tradição em equacionar as questões da economia no terreno da política.[2] Esta marca se torna cada vez mais clara à medida que os publicistas do PCB buscam explicitar as imagens de Brasil que lastreiam a orientação partidária, como por ocasião da Declaração de Março de 1958 e entre meados da década de 1970 e os inícios da redemocratização. Este último era o tempo em que parte do Comitê Central pecebista vivera no exílio, no momento do eurocomunismo. Foi quando jovens comunistas ensaiaram uma reinterpretação da nossa formação social a partir do nexo prussianismo-revolução passiva.[3] Esta tentativa intelectual convergia com a movimentação de veteranos dirigentes, como Armênio Guedes, que retomavam a linha de valorização da democracia política como ponto de referência para a renovação da esquerda histórica brasileira naquele começo da década de 1980.

Mesmo tendo dado passos decisivos em direção à política e à valorização da democracia, como nenhum outro agrupamento da esquerda brasileira, o PCB não conseguiu traduzir a “questão democrática” – lembrando aqui esta expressão dos anos do eurocomunismo – em termos de uma elaboração que valorizasse o Estado democrático de direito como único terreno no qual poderia ter curso sustentável a reforma da sociedade brasileira. No campo marxista, este passo exigia a prévia discussão do conceito-chave do socialismo – a hegemonia –, como se viu no debate empreendido pelo PCI na segunda metade da década de 1970, quando este partido foi interpelado, especialmente por Bobbio, a propósito da tese marxiana da extinção da política em decorrência da homogeneização da nova sociedade. Esta controvérsia duraria anos no PCI, inclusive perpassou as mutações do campo alargado PCI-PDS-DS. Ela só se “concluiria” bem depois, digamos assim, por estes nossos tempos, em áreas que ainda guardam raízes no antigo PCI (e no pensamento de Togliatti-Gramsci, como disse Guiseppe Vaca recentemente no Rio de Janeiro) e que hoje integram o Partito Democratico (PD) italiano, criado não faz muito tempo.

Referências bibliográficas
MARÇAL BRANDÃO, Gildo. Capitalismo, Democracia e Comunismo, USP, tese de doutoramento, 1992.
VIANNA, Luiz Werneck. Liberalismo e Sindicato no Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.
_____. A Revolução Passiva – Iberismo e Americanismo no Brasil. Rio de Janeiro: editora Revan, 1997.

[1] Ver nota no topo
[2] No Anexo da primeira seção do livro A importância da tradição pecebista, o leitor encontrará referências à fundamentação caiopradiana da orientação reformista do PCB, especificamente ao que o autor deste artigo chama de cânone “produtivista” com que Caio Prado definia o sentido da reestruturação progressiva da vida econômica brasileira. (N. E.).
[3] Werneck Vianna é o principal autor que associa o pensamento que Lênin desenvolveu nos textos sobre a revolução russa de 1905 (com o tema do prussianismo) e a obra de Gramsci, valorizando deste clássico, primeiro, a dissertação sobre o Risorgimento (VIANNA, 1976) e, depois, as notas sobre o americanismo (VIANNA, 1997). Vianna chama essa matriz de “campo da revolução passiva”.

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