“Com a expressão “viagem redonda”, metáfora-síntese do seu clássico Os donos do poder, Raymundo Faoro queria aludir às grossas linhas de continuidade que, segundo a sua interpretação, dominavam o processo de formação histórica brasileira da colônia ao nosso tempo. Na sua explicação, tal continuidade se deveria a um fator estruturante desse processo — o patrimonialismo na ordem estatal centralizada —, nunca removido, e que, a tudo superior, se imporia como um desígnio da Providência na reprodução da vida social.
A ação da Providência nos negócios humanos é objeto de um pequeno ensaio de Hannah Arendt, “De Hegel a Marx”, contido em A promessa da política (Difel), em que confronta as posições desses autores sobre o assunto. Neste pequeno e brilhante texto, ela sustenta que só existiria uma diferença essencial entre Hegel e Marx: enquanto Hegel teria projetado sua visão histórica mundial exclusivamente para o passado, deixando sua consumação esbater-se no presente, Marx, contrariamente, a conceberia no sentido do futuro, compreendendo o presente como “simples provedor”.
Não haveria mais por que interpretar o mundo, pois os filósofos, diz Marx na 11ª. tese sobre Feuerbach, já fizeram isso — exemplar a obra de Hegel —, cabendo, agora, transformá-lo. A ação consciente dos homens já não deveria ser prisioneira da Providência nem vítima dos ardis com que a história parece se voltar contra as intenções dos humanos, tomando rumos que escapariam inteiramente do seu cálculo.
Estes dois registros — o da Providência e o da “vontade política” — parecem oportunos quando se considera a trajetória do Partido dos Trabalhadores (PT), às vésperas de comemorar seus 30 anos, no governo há quase oito, e que ora se credencia para disputar mais uma sucessão presidencial. Com efeito, o PT nasce, no início dos anos 1980, com destino declarado de ser um agente de ruptura com a herança perversa, sempre renovada em nossa história — “os quinhentos anos” perdidos —, a fim de instituir uma nova fundação para o país. O ator, ao recusar os caminhos da Providência, ele próprio se apresentava como providencial. A interpretação do país estaria feita, o que faltava era a vontade política de transformá-lo.
Oito anos incompletos de governo do PT, no entanto, a “viagem redonda” de seis séculos, de João 1º a Vargas, da metáfora de Faoro, parece retomar seu curso, como se o partido assumisse, inconscientemente, a tradição que pretendeu renegar. Sintomático disso tanto a acomodação do seu sindicalismo às estruturas da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), como sua atual valorização do nacional-desenvolvimentismo, ideologia da modernização brasileira, cuja forma mais bem acabada se encontra nas formulações do Iseb (Instituto Superior de Estudos Brasileiros), agência de intelectuais criada, ao tempo do governo JK, como lugar de reflexão sobre os rumos a serem seguidos para os fins de desenvolver o país.”
Luiz Werneck Vianna, professor-pesquisador da PUC-Rio. A viagem (quase) redonda do PT, julho de 2009
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