sábado, 2 de julho de 2016

Assim Chicago não aguenta - Guilherme Fiuza

- O Globo

O enredo do impeachment da companheira afastada está cada vez mais, por assim dizer, ridículo. Quanto mais aparece a floresta de crimes perpetrados pelo imaculado governo petista, mais surgem almas bondosas denunciando um golpe de Estado. A resistência democrática em favor da quadrilha é uma coisa comovente. Nunca antes.

A defesa daquele governo probo e injustiçado encomendou uma perícia para analisar o processo de impeachment. Desde o caso PC Farias o país não tinha uma perícia tão comentada. Na época, a pirueta espetacular foi a tese de que o assassinato do operador de Collor fora crime passional. O Brasil acreditou por um bom tempo nesse delírio, porque o Brasil acredita. Agora, a pirueta é a alegação de que Dilma não pedalou.


Vai ver foram pedaladas passionais — coisa de coração valente. É chato contrariar as almas penadas que amam a historinha do golpe — porque ela lhes permite tirar para dançar o fantasma da ditadura de 64, a assombração mais lucrativa do Brasil. Mas é preciso informar que a tal perícia é mais uma malandragem rebuscada, como aquelas que o companheiro Barroso produz no STF. É claro que não aparece uma assinatura da companheira afastada mandando pedalar, porque a pedalada é justamente não assinar nada — não pagar uma dívida.

Foi assim que Dilma Rousseff tomou o seu dinheiro na marra, prezado leitor, deixando de repassar algumas dezenas de bilhões de reais, segundo o Tribunal de Contas, do Tesouro para o Banco do Brasil, o BNDES e a Caixa. Ou seja: o governo imaculado e golpeado da companheira presidenta forçou instituições controladas por ele a lhe conceder crédito (em quantias monumentais) — e isso é crime fiscal.

Vai ver a perícia realizada no processo de impeachment no Senado esperava encontrar um ato da Sra. Rousseff do tipo “Autorizo meus capangas no Tesouro Nacional a pedalar as dívidas com os bancos públicos”. Ou, quem sabe, a premissa fosse de que, num governo à deriva, ninguém é responsável por nada. Os peritos tiveram um trabalhão para embelezar esse cadáver.

Ainda assim, os legistas coreográficos confirmaram o crime de Dilma na edição dos decretos de crédito suplementar, não autorizados pelo Congresso Nacional. “Ah, então foi só isso?!”, pergunta a claque do golpe. Notem a malandragem intelectual (os malandros do intelecto são um sucesso): um governo delinquente de cabo a rabo, que inventou a contabilidade criativa para ludibriar o contribuinte e detonar a economia popular, vira o autor de uma infração reles — um trombadinha simpático.

Para os impressionantes arautos do golpe, o governo criminoso de Dilma Rousseff é vítima.

A estratégia de reduzir a roubalheira a um soluço contábil serve também para dizer que, se for assim, todos os presidentes sofreriam impeachment. Compreensível. Lula também disse, no mensalão, que caixa dois todo mundo faz. É o mesmo jeitinho de relativizar a trampolinagem. Mas é mentira. Depois de instituída a Lei de Responsabilidade Fiscal, só o governo do PT cometeu esse crime. Até porque, antes dele, o Tesouro Nacional ainda não havia sido promovido a casa da mãe Joana.

E o mais chocante nem é isso. Observe a quantidade de anestésico que um arauto do golpe precisa aplicar em sua própria consciência. O sujeito faz uma acrobacia retórica descomunal para defender a legitimidade de um governo em que todos — todos — os principais integrantes estão na mira da polícia. Por uma manobra de Eduardo Cunha, os crimes da Lava-Jato não entraram no processo de afastamento da pobre companheira golpeada — mas estão todos lá, muito bem expostos no pedido de impeachment.

Ou seja: Eduardo Cunha é o maior aliado da lenda do golpe. Agradeçam de joelhos a esse grande brasileiro, nobres camelôs da mística revolucionária.

Até na abertura da Flip o pós-Dilma foi tratado como uma conjuntura monstruosa. Como dito acima, os malandros do intelecto são um sucesso. Vamos então prestar solidariedade a esses bravos plantonistas da bondade, lembrando a eles que seu querido PT não está sozinho na história. O companheiro Al Capone passou pelo mesmíssimo problema.

Eliot Ness, o golpista da época, pegou o mafioso, gângster, assassino e facínora de Chicago por uma fraude contra o Imposto de Renda. No Brasil de hoje, enquanto os heróis da resistência tentam fazer a fraude das pedaladas sair na urina, seus protegidos vão acrescentando sordidez a um escândalo que parecia já insuperável.

Num surpreendente ramal da Lava-Jato, surge a operação Custo Brasil — e eis que desponta Paulo Bernardo, ministro de Lula e de Dilma, preso pela Polícia Federal. Esse expoente do pobre petismo golpeado pelas elites é acusado de roubar R$ 100 milhões de servidores públicos necessitados. Mas tudo bem: o companheiro Dias Toffoli, que também é um gladiador da justiça social, já providenciou a soltura de mais este guerreiro golpeado pela direita.

Se citarmos toda a coleção de crimes do governo imaculado da Sra. Rousseff, Chicago não aguenta. Mas os arautos do golpe não se abalam. Essa lenda vale ouro.

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Guilherme Fiuza é jornalista

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