terça-feira, 23 de agosto de 2016

O pêndulo das gerações - José de Souza Martins

• Polêmica em torno de proposta de uma Escola sem Partido revela desconhecimento sobre a força das novas gerações, diz sociólogo

O Estado de S. Paulo /Aliás, 21/8/2016.

A celeuma em torno da chamada escola sem partido revela fraturas na sociedade brasileira mais profundas do que a da mera discórdia em relação a concepções de escola. Tanto os argumentos dos que defendem a escola sem partido quanto os dos que defendem a escola sem mordaça expõem o inconciliável da segmentação da sociedade brasileira, iniciada nos idos de 1968, por coincidência o ano da rebelião juvenil, especialmente na USP, e o ano do Ato Institucional nº 5, o mais contundente cala a boca que o Estado brasileiro pôs em vigor desde o final da Segunda Guerra Mundial. De fato, os embates de agora, de um lado e de outro, filiam-se à polarização que dividiu o Brasil profundamente há meio século e que nos divide até hoje.


A consulta pública do Senado sobre o projeto de lei nº 193, que representa o ponto de vista dos que defendem a escola sem partido, até à noite de quarta-feira havia recebido 180.826 votos a favor e 191.955 votos contra. Uma diferença muito pequena para justificar a convicção enfaticamente manifestada em diferentes meios de expressão, tanto pelos que estão de um lado quanto pelos que estão de outro. Votações como essa indicam algo que vai além da disputa pela escola. O fim da ditadura deu aos vencedores a certeza equivocada de que havia vencido a opção revolucionária contra a opção reacionária e que o Brasil se tornara um país de esquerda. E que o destino do País era um só. Os últimos 13 anos mostraram que as coisas não foram bem assim. A esquerda não se distinguiu claramente da direita, com as exceções que podem ser identificadas, nas ações que não nos revelaram ter ela um projeto de nação libertador, emancipador e educador. O Brasil se diferenciou social e culturalmente, novos e diferentes personagens surgiram e o País, no entanto, não se educou para reconhecer e respeitar o direito à diferença.

O movimento da escola sem partido é expressão do quadro confuso. Nele se manifestam todos os que temem uma alteração radical nos atuais valores de referência na formação das novas gerações. É inútil imaginar que definir os partidários do movimento como conservadores e tradicionalistas os desqualifica e os aponta como perigosos inimigos do futuro do País. Certamente não são mais inimigos do que os que, ao combatê-los, recusam-se a compreender o que seu movimento representa como expressão de uma crise social e política danosa a todos.

Ser conservador não é crime, nem é defeito, do mesmo modo que ser liberal ou ser revolucionário não o é. O pensamento conservador tem sido essencial, desde a Revolução Francesa, para situar o alcance e os limites dos novos valores difundidos e defendidos pela Revolução e dos mais ousados valores da modernidade. Não raro tem introduzido inovações nas leis e nas instituições que se tornaram fundamentais para fazer da sociedade moderna uma sociedade digna e não apenas nem fundamentalmente a sociedade do dinheiro, da pessoa coisificada, ou a sociedade das rupturas radicais. Os direitos sociais nasceram da crítica conservadora às violências da sociedade capitalista. O próprio pensamento marxista tem suas raízes na tradição conservadora, na crítica da alienação e no reconhecimento do primado da pessoa como ser de referência da sociedade atual.

Os da escola sem partido não querem muito. Defendem seu legítimo direito de educar seus filhos segundo os valores da família, portanto segundo valores da tradição conservadora. Já os que se preocupam com o amordaçamento da escola e a privação do sagrado direito da liberdade de ensino defendem, com razão, a função educativa e inovadora da escola, querem falar em nome da sociedade e da contínua atualização dos valores sociais de referência.

Uma coisa que não se discute é a de que, independente da escola e do que o professor diga na sala de aula, no mundo moderno tem havido distanciamento entre as novas gerações e a de seus pais. O mundo muda independentemente de que os pais queiram ou não e do que os professores pensam e querem. Pais que não reconhecem a realidade das mudanças sociais tornam-se limitados na educação dos filhos. Professores que não reconhecem que o processo revolucionário de seus sonhos e de seu proselitismo é em grande parte forma disfarçada da repetição que hoje domina e comanda as transformações sociais, deixam de formar para deformar. São, na verdade, alienados protagonistas da mesmice que nos aprisiona. É inútil pretender manipular as crianças e os jovens que o acaso colocou em suas salas de aula. A esperança juvenil é mais suave do que o radicalismo verbal e ideológico, mais crítica, mais sensata do que todo autoritarismo partidário, religioso e ideológico. Os imaturos das salas de aula podem ver criticamente, em seus aspectos positivos e negativos, os movimentos que querem instrumentalizá-los e manipulá-los, seja o da escola sem partido seja a dos educadores sem clareza nem consciência a respeito dos limites e possibilidades, propriamente educativos, de sua nobre profissão.
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José de Souza Martins é sociólogo e membro da Academia Paulista de Letras, entre outros livros é autor de ‘Uma Arqueologia da memória social – Autobiografia de um moleque de fábrica (Ed. Ateliê)

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