terça-feira, 14 de agosto de 2018

Ana Carla Abrão: Ironia

- O Estado de S.Paulo

Aumento do STF desrespeita dispositivo constitucional chamado teto de gastos

Os ministros do Supremo Tribunal Federal – agora, naturalmente, acompanhados também pelo Ministério Público – se autodeclararam merecedores de um aumento de 16,38% nos seus salários. Em valores absolutos, são R$ 5,6 mil a mais para cada um dos 11 ministros, número que constará na proposta orçamentária de 2019, a ser apreciada pelo Congresso Nacional.

O problema não está necessariamente no valor, até porque não é fácil julgar se ganham bem ou mal nossos magistrados, tendo em vista a pouca transparência sobre seus vencimentos. Afinal, boa parte da sua remuneração está à margem da Lei de Responsabilidade Fiscal e até mesmo da Receita Federal, com adicionais de renda disfarçados de verbas indenizatórias. O problema maior está nos efeitos moral e fiscal desse aumento em momento tão crítico da economia nacional.

Do ponto de vista moral, a conta é fácil. São 13 milhões de brasileiros desempregados, consequência de uma crise que gerou uma contração de mais de 10% na renda per capital nacional. Além disso, somos o 3.º país mais desigual do mundo e, pasmem, a desigualdade de renda no setor público brasileiro é o dobro da desigualdade de renda do Brasil, segundo cálculos de Ricardo Paes de Barros, economista que entende desse problema como ninguém.

Mas talvez os argumentos morais sejam excessivamente abstratos, apesar de números tão concretos. Lancemos mão então de argumentos fiscais. Afinal, estamos falando de orçamento e, como bem citou o ministro Ricardo Lewandowski ao defender o aumento, é importante perseguir a boa prática orçamentária – em particular num país em que União, Estados e municípios enfrentam uma crise fiscal sem precedentes, com despesas crescendo de forma descontrolada.

Nossos ministros esqueceram-se que, ao elevar seus vencimentos, eles automaticamente geram, como que por um passe de mágica, a elevação das despesas de pessoal não só no âmbito da Justiça federal, mas também dos entes subnacionais, que hoje agonizam a cada fim de mês com gastos com a folha que superam 60% das suas receitas, limite definido em lei complementar que, se imagina, deveriam nossos magistrados garantir o cumprimento. Além disso, inauguraram a temporada de pressões por aumento salariais generalizados que, sabemos, pressionam os orçamentos e geram uma elevação dos gastos correntes em detrimento dos gastos com investimento.

Talvez valha a pena lembrar que boa prática orçamentária é, antes de tudo, gastar dentro dos limites da receita e alocar recursos de forma eficiente, buscando o equilíbrio fiscal de longo prazo e a sustentabilidade das contas. Boa prática orçamentária é controlar gastos correntes garantindo espaço para investimentos e o constante aprimoramento dos serviços prestados. Em particular, quando se trata de orçamento público, há algo ainda mais importante, que é garantir que o cidadão seja o principal beneficiário das ações e decisões tomadas pelos agentes públicos, considerando que, quem diria, os recursos alocados vêm do pagamento dos impostos e, portanto, do bolso desses mesmos cidadãos.

O STF talvez devesse dar o exemplo, não só garantindo o cumprimento das leis pelos outros mas, antes de tudo, por si próprio. Afinal, há muito mais do que um aumento salarial envolvido nesses 16,38%. Há o desrespeito a um dispositivo constitucional chamado teto de gastos – e que o Judiciário tem sido useiro em descumprir, conforme dados da economista Vilma Pinto, do FGV/Ibre, e há âncoras fiscais que estão sendo ameaçadas e que poderão nos levar à bancarrota, sacrificando ainda mais uma população que já sofre com a ausência de serviços públicos minimamente decentes. E há o reforço do corporativismo que a cada dia mais avança sobre o direito dos cidadãos.

Ironia é dizer o contrário do que se quer expressar. Mas prefiro usar aqui da ironia socrática, que Aristóteles definiu como a técnica de fingir ignorância e questionar o interlocutor até que ele caia em contradição. A contradição é tão óbvia que só se pode imaginar que, ao defender o aumento dos seus vencimentos em nome da boa prática orçamentária, o STF está sendo no mínimo irônico com 200 milhões de brasileiros.

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