sábado, 7 de outubro de 2017

O jabuti do esperto | Míriam Leitão

- O Globo

O Brasil foi de susto em susto nas discussões e votações da reforma política. Os parlamentares, tão descuidados nas questões que interessam ao país, se mobilizaram com empenho pelas regras para as próximas eleições. Em alguns pontos, o pior foi evitado, como o exótico distritão, mas se repetiu a prática do jabuti de última hora, colocado na surdina sobre a lei que estiver passando.

Democracia é debate de propostas e, depois, voto, mas no Congresso tem se tornado rotina aparecer algo que não foi discutido e que é pendurado sorrateiramente em um projeto e só se descobre o que aconteceu depois que foi aprovado. Foi o que houve nesta tentativa de dar aos políticos o poder de retirar conteúdo da internet sem passar pela Justiça e com o subjetivo motivo de ser “informação falsa”. Com a forte reação da sociedade, o próprio deputado autor da ideia avisou que recuaria e o presidente Temer emitiu nota ontem afirmando que irá vetar a ideia. Mas Temer é parte do problema, porque os deputados e senadores se aproveitam de sua fraqueza política para tentar aprovar projetos que apenas os favorecem.

Se ao menos tivesse havido alguma discussão anterior. O truque é evitar que se discuta e, na última hora, colar um jabuti na árvore e assim aprovar na traquinagem, na surdina, uma proposta que não sobreviveria a uma discussão democrática. Desta vez, pelo visto, será evitado, mas esse tipo de prática deixa o país em sobressalto, temendo o que pode ser aprovado em cada projeto que tramita: perdão de dívidas tributárias de corruptos, permissão para que políticos tragam dinheiro ilegal do exterior pelo canal da repatriação, um fundo eleitoral bilionário com dinheiro do contribuinte, alterações no Carf para favorecer empresas.

Algumas coisas se conseguiu barrar por um triz porque o país, alertado, reagiu. O brasileiro tem mais o que fazer do que ficar em constante guarda contra o Congresso. Inverte-se assim o papel dos representantes do país. Em vez de representarem os interesses da sociedade, eles defendem a si mesmos com propostas que recaem sobre a sociedade.

É preciso vigiar dia e noite o Congresso brasileiro. O fundo eleitoral foi melhorado depois de a sociedade brigar contra o fundão de quase R$ 4 bilhões. Formou-se outro menor, com os partidos abrindo mão dos enfadonhos programas partidários fora de época. O programa de reestruturação tributária, que quase virou o refis da corrupção, foi aprovado sem esse item, mas com concessões inaceitáveis a sonegadores e devedores da Receita. O direito de os políticos exigirem retirada de conteúdo que os desagrade de provedores da internet, sem sequer um olhar da Justiça, foi aprovado nos instantes finais da tramitação da reforma política. Foi aprovado também o direito de um candidato financiar a si mesmo em 100% dos gastos, o que aumentam as chances dos ricos nas eleições.

Propostas assim podem ser vetadas e até questionadas na Justiça, mas o ponto é até quando os eleitores brasileiros têm que ser surpreendidos por jabutis em árvores colocados pelos espertos?

O cidadão está cansado dessa esperteza que burla, frauda, abre brechas nas propostas que tramitam no Congresso. Esse tipo de conspiração silenciosa contra o entendimento do que está sendo decidido em nosso nome acontece com frequência. É costumeiro. Está na hora de os parlamentares respeitarem a democracia e o seu pressuposto básico de promover o debate para a compreensão de cada proposta e só depois votar.

Não é possível que a democracia vá ser diariamente surrupiada por deputados, em geral de atuação de pouco destaque, colocando um contrabando dentro das propostas. Mesmo que se confirme o veto, o problema é a forma como tudo ocorreu. Se a maioria dos deputados e senadores quer debater formas de evitar que calúnias e difamações se propaguem pela mídia social, vamos ao debate. Há sim inúmeros casos de crimes na internet. Suas vítimas têm recorrido à Justiça. Existem empresas contratadas por campanhas de candidatos para criar perfis falsos que disseminam mentiras ou ataques de ódio contra os concorrentes.

Como lidar com isso? Esse pode ser um debate necessário. O que não é tolerável é que o direito de censura seja contrabandeado sub-repticiamente para um projeto que por meses foi debatido no Congresso. Ao fim da votação, alguns parlamentares nem sabiam o que haviam aprovado. Essa figura do esperto do jabuti precisa ser abolida do Congresso brasileiro.

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