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Melhor o conflito purificador do que a calmaria da lama eterna
Acostumado à acomodação, ao conforto das aparências falsamente apaziguadoras, o Brasil é a tal ponto avesso a enfrentamentos, tem tanto horror a lidar com consequências que se habituou a ver crises institucionais onde há apenas turbulências normais no ambiente de uma democracia necessitada de profundas correções de rumo como a nossa.
Há décadas não vivemos problemas institucionais sérios, cuja característica é o rompimento das regras do jogo. Tivemos vários episódios desses no século passado, o mais recente deles em 1964, que custou vidas e nos manteve amordaçados, subtraídos de liberdade. Portanto, convém não banalizar o conceito e não confundir as tensões do embate democrático com ruptura institucional.
Diferente é a situação de desajustes que nos acostumamos a chamar de crise, a despeito do desgaste do termo. Passamos por dois episódios de impedimento presidencial, vimos um senador ser preso no exercício do mandato, um presidente da Câmara retirado do posto e dois senadores (um deles presidente da Casa) punidos, um com o afastamento do cargo e o outro suspenso das funções legislativas por determinação do Supremo Tribunal Federal. Além disso, assistimos constantemente a embates verbais entre magistrados, promotores e parlamentares.
Nada disso, porém, se enquadra na definição de crise institucional, nem de longe caracteriza ruptura das normas em vigor mediante atos de força. Em 1964, João Goulart foi deposto pelos militares sem que houvesse previsão legal para isso. Em 1992 e 2016, Fernando Collor e Dilma Rousseff foram afastados da Presidência por crimes de responsabilidade devidamente previstos em lei. Tanto ambos os atos não se caracterizaram como crises institucionais que a vida seguiu normal no país sem o menor risco à democracia.
Estamos imunes à ocorrência de quebra da normalidade institucional? Claro que não, mas conviria que não se banalizasse o assunto, até para facilitar o reconhecimento da aproximação de uma verdadeira crise institucional e dela nos defendermos. Não é a fala de um general nem as opiniões contundentes e divergentes entre si de ministros do STF o que pode abalar um regime. Da mesma forma, não há esse perigo em atritos circunstanciais entre os poderes. A harmonia entre eles prescrita na Constituição não pressupõe, nem poderia pressupor, a inexistência de posicionamentos de um e de outro. Ainda mais num momento em que assistimos a uma série de episódios inéditos no país.
Esquisito seria se esse revolver de entranhas não provocasse reações e turbulências. Muita lama vem sendo remexida, vários escombros sendo removidos, e isso desperta coragem em alguns, provoca pavor em outros, causa um desconforto generalizado que dá margem à sensação de que o Brasil está pior do que jamais esteve.
Na verdade, está muito melhor, pois enfrenta a realidade, que pode até ser feia de ver, mas ficaria cada vez mais horrorosa se ignorada em nome de uma suposta e ilusória paz. De onde a crise é bem-vinda naquilo que a palavra significa em termos de oportunidade. Antes o conflito purificador do que a calmaria da lama eterna.
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Publicado em VEJA de 11 de outubro de 2017, edição nº 2551
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