quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019

Maria Cristina Fernandes: A quem responderá o general brasileiro no Texas

- Valor Econômico

Alinhamento será posto em xeque em caso de ação militar

Quando o general brasileiro Alcides Faria Jr., hoje num comando de brigada em Ponta Grossa (PR), desembarcar no Forte San Houston, em San Antonio, no Texas, no fim de abril, para assumir suas funções de subcomandante das Forças Armadas americanas, já terão se esgotado todos os prazos dados pelos Estados Unidos para que a Venezuela aceite a remessa de alimentos e remédios enviada ao país.

Comida num país que passa fome, é comandado por um ditador e tem um governo paralelo é um ativo evidente nas mãos de quem esteja disposto derrubar o poder constituído. Como as autoridades americanas já determinaram que a questão não é se a Venezuela vai ou não aceitar mas quando, uma ação militar revestida de ajuda humanitária é um desfecho real.

O cenário abre uma lista de dúvidas frente às quais o Congresso Nacional não teve a possibilidade de se confrontar porque não foi consultado e, ao contrário do americano, nem mesmo informado. Se o Pentágono enviar a ordem para o Forte San Houston, o que deverá fazer o general brasileiro? Interromperá a cadeia de comando que passou a integrar ou cumprirá as diretrizes da ação militar do Pentágono? Uma pista é saber quem pagará seu salário, mas não há nem mesmo um acordo público, ou designação já publicada no Diário Oficial, para saber se a tarefa caberá ao governo brasileiro ou americano.

Pelo prazo em que foi anunciado o engajamento do general, no 37º dia do governo Jair Bolsonaro, é provável que o convite e seu aceite tenham se dado na gestão Michel Temer. Não há registro que a cooperação tenha nascido no Ministério da Defesa onde se teme que um engajamento militar do Brasil na Venezuela aumente a pressão de refugiados em Roraima e exponha a inferioridade bélica nacional. Em 29 de setembro de 2015, um tanque blindado de mais de 50 toneladas que saíra de Campo Grande e atravessara a Amazônia, fez disparos na Serra do Tucano, próximo a Boa Vista. Exibido para o vizinho ao Norte, armado de submarinos, baterias de defesa antiaérea e caças Sukhoi, foi um ensaio de teatro amador.

Para convencer os senadores americanos de sua proposta orçamentária, o almirante americano discorreu sobre as ameaças de o Exército Islâmico vir a estabelecer vinculações com narcotraficantes latino-americanos. No governo passado, quem mais deu asas a esta tese foi o ex-ministro do gabinete de Segurança Institucional, o general Sérgio Etchegoyen.

Uma visita ao Livro Branco da Defesa Nacional, aprovado há apenas sete anos pelo Congresso Nacional, não poderia ser mais claro sobre as razões pelas quais o Brasil se mantém há 140 anos em paz com seus vizinhos. O país deve se empenhar pela multipolaridade de uma comunidade global participativa e inclusiva e atuar, no entorno sul-americano, contra posturas conflituosas e excludentes.

O texto não poderia ter sido mais confrontado pelo depoimento do almirante em que foi anunciada a inédita adesão do general brasileiro ao comando do Texas. Craig Faller quer inimigos que temam os Estados Unidos. Os três maiores que citou, Rússia, China e Irã, são os mesmos que lideram as transações de petróleo por moedas alternativas ao dólar.

Como o depoimento se destinava a justificar a demanda orçamentária do Pentágono para 2020, tratava-se ali de mostrar por que está em jogo, na região, um capítulo do cerco eurasiano que ponha em xeque a moeda do país no seu quintal. Se China e Rússia operam para aumentar esse cerco aos EUA via Venezuela, como mostra o jornalista brasileiro mais enfronhado no tema, Pepe Escobar, no Asia Times, não se deveria esperar outra coisa da Defesa americana senão uma reação.

A pergunta que se faz é por que o Brasil deveria ser sócio desta aventura. A barreira que se ergue na Ásia, na África e no Oriente Médio a uma ação militar na Venezuela congrega alguns dos maiores parceiros comerciais e diplomáticos brasileiros. O engajamento na ofensiva confronta os interesses comerciais brasileiros e contraria alguns dos mais estabelecidos princípios da doutrina diplomática e militar do país. Dá asas à ameaça de as grandes potências mundiais balcanizarem a América Latina disputando aliados e jogando uns contra os outros.

Até aqui, as pretensões de alinhamento do governo Jair Bolsonaro com os Estados Unidos foram lideradas pelo chanceler Ernesto Araújo, que recebeu o almirante Faller no Palácio do Itamaraty três dias depois de sua exposição aos senadores americanos do feito de engajar o Brasil à sua tropa de comando. As Forças Armadas, a despeito dos sinais de arrefecido nacionalismo, patente na abertura à venda da Embraer, por exemplo, ainda se mantinham como um anteparo às trampolinagens do chanceler.

Todos os militares da ativa e da reserva que hoje ocupam postos de comando no governo Bolsonaro foram alunos aplicados das doutrinas da defesa nacional mas a era Jair Bolsonaro no poder liberou os instintos mais primitivos. Tem comandante que faz curso nos Estados Unidos e volta com um minibroche da bandeira americana na farda. E outro que toma posse exaltando a parceria com os Estados Unidos em "três guerras", a 1ª Guerra Mundial, a 2ª, e a guerra fria.

A formalização da ida do general para o Texas demonstra que se o alinhamento não nasceu na Defesa já não encontra entre os militares a mesma resistência. Parece uma eternidade, mas há menos de cinco anos, generais brasileiros ainda recusavam convites de escolas militares. Preferiam repassá-los a civis a ver seus oficiais disputando lugar nas filas de latino-americanos fardados a esperar o ticket-alimentação das escolas.

A Guerra da Coreia, nos anos 50, costuma ser citada como o momento mais próximo de um engajamento brasileiro numa empreitada bélica americana, excluindo-se, por óbvio, os grandes conflitos mundiais. A ofensiva, feita entre os governos Eurico Gaspar Dutra e Getúlio Vargas, resultou numa mobilização espraiada por passeatas, comícios, enterros simbólicos. Entre a resistência brasileira e a pressão americana, Getúlio ficou com o povo. Para que o exemplo histórico influencie Jair Bolsonaro vale até manter em segredo que a liderança da resistência foi do Partido Comunista.

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