-O Globo
O ano mal começou, mas já vivemos tragédias que bastam por muitas temporadas: todas elas evitáveis, todas elas criminosas, todas elas nascidas do descaso e da negligência
Comecei a escrever esta coluna uma quantidade de vezes: escrevia um ou dois parágrafos, lia, apagava tudo, levantava, olhava os peixinhos, ia até a janela, tomava um café, recomeçava. Tomei muito mais café do que queria, deveria ou precisava, e provavelmente não vou conseguir dormir, mas isso não é nada diante de não conseguir escrever — de olhar para a tela, que é apenas um reflexo do meu pensamento, e não ver nada ali digno de nota, porque, de certa maneira, nada é digno de nota num país em que nem a vida humana vale mais nada.
O que vale, então?
A vida é perto, é o que nos cerca quase ao alcance do braço, e aí ainda há conforto, há amigos e família, há animais e plantas, há riso e momentos felizes, mas é como se tudo isso fosse material de contrabando, algo que usamos, mas não está propriamente dentro da lei, porque na verdade deveríamos todos nós, brasileiros, estar escondidos debaixo da cama, aos prantos, cobrindo a cabeça de cinzas.
Há um carnaval vindo aí, já há blocos nas ruas, mas um país que tem o descaso que o Brasil tem consigo mesmo não tem o direito de festejar nada.
Até a arte parece irrelevante, porque o que é que ela pode contra essa pele de rinoceronte estendida sobre o futuro? Poesia numa hora dessas, Augusto dos Anjos? O ano mal começou, mas já vivemos tragédias que bastam por muitas temporadas: todas elas evitáveis, todas elas criminosas, todas elas nascidas do descaso e da negligência. Não sobra tempo entre uma e outra para elaborar a perda. É como se respirar tivesse se tornado uma tarefa penosa, quase impossível; como se o próprio ar do Brasil estivesse envenenado e pegajoso como a lama da Vale.
A Vale, essa, que sabe há anos dos riscos das suas barragens, e não faz nada porque é mais fácil comprar um punhado de fiscais e meia dúzia de parlamentares; a Vale, essa, que constrói escritórios e restaurantes ao pé do desastre, porque o prédio em que os senhores seus diretores trabalham fica longe e não tem vista para a desgraça.
É difícil encontrar algo digno de nota quando se sabe que todos esses senhores diretores escaparão impunes, que essa companhia que envergonha o país escapará impune, que passados alguns meses, enterrados ou não os mortos, arrasada toda a natureza em torno, ninguém falará mais nisso, como já não se falava mais em Mariana, e será apenas questão de tempo até que a próxima barragem se rompa e mate, mate, mate.
Dona Mercedes Carrascal, como foram dignas, justas e fortes as palavras que a senhora disse durante o velório do seu filho, meu colega e amigo Ricardo Boechat! Muito obrigada pela demonstração de força e de cidadania, pela ternura e pelas memórias. Ao vê-la, entendi de onde vieram a generosidade, o caráter e aquela permanente indignação com que ele enfrentava, sem medo, os poderosos da terra. Receba, por favor, o meu abraço, o meu carinho e a minha maior admiração.
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