Fábio Wanderley Reis
DEU NO VALOR ECONÔMICO
O Senado Federal promoveu há pouco um ciclo de debates sobre o Poder Legislativo no mundo contemporâneo, tomando diversos aspectos das relações entre os poderes que têm sido objeto de preocupação. Em sessão de que eu próprio participei, destacavam-se temas aparentemente diversos, que vão das implicações do chamado "presidencialismo de coalizão" a uma suposta crise geral de representatividade do Legislativo e ao fato de que ele deve conviver com o exercício de atribuições normativas também pelo Executivo e pelo Judiciário.
Problemas ligados à atuação do Judiciário têm sido considerados aqui com alguma insistência. Quanto às relações Executivo-Legislativo, o tema do presidencialismo de coalizão sugere antes de tudo (supostamente em consequência da combinação de presidencialismo, federalismo, bicameralismo, multipartidarismo e representação proporcional) a fragmentação das forças políticas representadas no Congresso e, apesar de certas releituras e contestações, a debilidade do Executivo que derivaria da necessidade de organizar-se com base em grandes coalizões instáveis. Mas um tema também saliente quanto a essas relações tem sido o das medidas provisórias, e não é de todo casual que o simpósio no Senado tenha coincidido com a devolução algo dramática pelo presidente do Congresso da chamada MP das filantrópicas.
Há aqui algumas ponderações gerais pertinentes. Uma, de cunho doutrinário relativo aos princípios constitucionalistas, salienta o desiderato de que os diferentes poderes sejam autônomos e se relacionem em termos de equilíbrio e igualdade. Outra, de natureza factual, aponta para fatores que há tempos levam à expansão do Executivo pelo mundo afora, em conexão com fenômenos (passíveis de disputas sobre como caberia avaliá-los normativamente em cada caso) como o estado de bem-estar, a "tecnoburocracia", o neocorporativismo... Uma indagação importante é a de se essa expansão compromete necessariamente os princípios constitucionalistas quanto às relações dos poderes. E a mesma questão surge, naturalmente, se nos voltamos para as medidas provisórias. As condições de "urgência e relevância" contempladas na Constituição para o recurso a elas fazem delas instrumentos de governo efetivo em determinadas circunstâncias. Mas seu uso abundante e desatento aos critérios legitimadores ameaça redundar em desequilíbrio e em sujeitar o Legislativo a eventuais caprichos autoritários do Executivo.
As análises de ciência política a respeito não têm sido de grande ajuda. Procurando ligar o recurso às medidas provisórias pelo presidente às coalizões do nosso presidencialismo (como em artigo de 2005 de Carlos Pereira e outros, "Under what Conditions do Presidents Resort to Decree Power?"), as observações feitas acabam enredadas em suposições problemáticas e provavelmente enganosas sobre qual poder, nas relações Executivo-Legislativo, é o "mandante" e qual é o "mandatário" ou "agente", e portanto o subordinado. Assim, no primeiro mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso, o fato de que o governo teria sido capaz de compor uma coalizão governamental "ampla e bem recompensada" resulta em delegação legitimadora pelo Congresso, que "responde" delegando ao presidente autoridade para governar por MPs, enquanto em casos de menor capacidade circunstancial de compor coalizão análoga o presidente teria de recorrer "unilateralmente" (autoritariamente?) a elas. Ora, é claro que um Congresso que "responde" ao poder do presidente dificilmente poderia ser visto como o "mandante" real na relação, e a idéia de "delegação" nada acrescenta ao aspecto factual das manobras mais ou menos exitosas deste ou daquele titular da Presidência nas circunstâncias de precariedade político-partidária - maior ou menor - que encontrará. Com a ressalva, naturalmente, da "delegação" correspondente ao fato em si de que a lei contemple o instrumento da medida provisória, que provavelmente requer, ele mesmo, explicação numa sociologia realista.
Isso sugere que a ênfase em "quem manda" é basicamente torta ou equivocada. Não obstante a óbvia importância constitucional da autonomia dos poderes e de seu equilíbrio, como condição de que não se tenha ditadura, ela não resulta em que eles devam brigar, como vemos com frequência em nosso conflagrado Estado-arena do momento. Preservadas, em particular, as condições de isenção e adjudicação competente por parte do Judiciário (oxalá as turbulências atuais se resolvam), o que cabe esperar das relações entre o Legislativo e o Executivo é antes que se articulem de modo apropriado, vale dizer, de modo a assegurar o governo a um tempo democrático e eficiente. E não há como deixar de repetir a respeito, à parte confusões novidadeiras, a velha observação de que o instrumento que nos tem faltado para isso são partidos políticos em que o enfrentamento do desafio de combinar a penetração eleitoral e a coesão real em torno de idéias (referidas, por certo, a interesses, tanto quanto possível adequadamente agregados, e às identidades correspondentes, talvez inevitavelmente definidas de maneira algo tosca) venha a propiciar a disciplina no comportamento parlamentar e ao governo como um todo maior organicidade e a busca consistente de políticas de maior alcance. O que também remete a uma sociologia atenta, em nosso caso, ao áspero e deficiente substrato social da política.
Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras
DEU NO VALOR ECONÔMICO
O Senado Federal promoveu há pouco um ciclo de debates sobre o Poder Legislativo no mundo contemporâneo, tomando diversos aspectos das relações entre os poderes que têm sido objeto de preocupação. Em sessão de que eu próprio participei, destacavam-se temas aparentemente diversos, que vão das implicações do chamado "presidencialismo de coalizão" a uma suposta crise geral de representatividade do Legislativo e ao fato de que ele deve conviver com o exercício de atribuições normativas também pelo Executivo e pelo Judiciário.
Problemas ligados à atuação do Judiciário têm sido considerados aqui com alguma insistência. Quanto às relações Executivo-Legislativo, o tema do presidencialismo de coalizão sugere antes de tudo (supostamente em consequência da combinação de presidencialismo, federalismo, bicameralismo, multipartidarismo e representação proporcional) a fragmentação das forças políticas representadas no Congresso e, apesar de certas releituras e contestações, a debilidade do Executivo que derivaria da necessidade de organizar-se com base em grandes coalizões instáveis. Mas um tema também saliente quanto a essas relações tem sido o das medidas provisórias, e não é de todo casual que o simpósio no Senado tenha coincidido com a devolução algo dramática pelo presidente do Congresso da chamada MP das filantrópicas.
Há aqui algumas ponderações gerais pertinentes. Uma, de cunho doutrinário relativo aos princípios constitucionalistas, salienta o desiderato de que os diferentes poderes sejam autônomos e se relacionem em termos de equilíbrio e igualdade. Outra, de natureza factual, aponta para fatores que há tempos levam à expansão do Executivo pelo mundo afora, em conexão com fenômenos (passíveis de disputas sobre como caberia avaliá-los normativamente em cada caso) como o estado de bem-estar, a "tecnoburocracia", o neocorporativismo... Uma indagação importante é a de se essa expansão compromete necessariamente os princípios constitucionalistas quanto às relações dos poderes. E a mesma questão surge, naturalmente, se nos voltamos para as medidas provisórias. As condições de "urgência e relevância" contempladas na Constituição para o recurso a elas fazem delas instrumentos de governo efetivo em determinadas circunstâncias. Mas seu uso abundante e desatento aos critérios legitimadores ameaça redundar em desequilíbrio e em sujeitar o Legislativo a eventuais caprichos autoritários do Executivo.
As análises de ciência política a respeito não têm sido de grande ajuda. Procurando ligar o recurso às medidas provisórias pelo presidente às coalizões do nosso presidencialismo (como em artigo de 2005 de Carlos Pereira e outros, "Under what Conditions do Presidents Resort to Decree Power?"), as observações feitas acabam enredadas em suposições problemáticas e provavelmente enganosas sobre qual poder, nas relações Executivo-Legislativo, é o "mandante" e qual é o "mandatário" ou "agente", e portanto o subordinado. Assim, no primeiro mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso, o fato de que o governo teria sido capaz de compor uma coalizão governamental "ampla e bem recompensada" resulta em delegação legitimadora pelo Congresso, que "responde" delegando ao presidente autoridade para governar por MPs, enquanto em casos de menor capacidade circunstancial de compor coalizão análoga o presidente teria de recorrer "unilateralmente" (autoritariamente?) a elas. Ora, é claro que um Congresso que "responde" ao poder do presidente dificilmente poderia ser visto como o "mandante" real na relação, e a idéia de "delegação" nada acrescenta ao aspecto factual das manobras mais ou menos exitosas deste ou daquele titular da Presidência nas circunstâncias de precariedade político-partidária - maior ou menor - que encontrará. Com a ressalva, naturalmente, da "delegação" correspondente ao fato em si de que a lei contemple o instrumento da medida provisória, que provavelmente requer, ele mesmo, explicação numa sociologia realista.
Isso sugere que a ênfase em "quem manda" é basicamente torta ou equivocada. Não obstante a óbvia importância constitucional da autonomia dos poderes e de seu equilíbrio, como condição de que não se tenha ditadura, ela não resulta em que eles devam brigar, como vemos com frequência em nosso conflagrado Estado-arena do momento. Preservadas, em particular, as condições de isenção e adjudicação competente por parte do Judiciário (oxalá as turbulências atuais se resolvam), o que cabe esperar das relações entre o Legislativo e o Executivo é antes que se articulem de modo apropriado, vale dizer, de modo a assegurar o governo a um tempo democrático e eficiente. E não há como deixar de repetir a respeito, à parte confusões novidadeiras, a velha observação de que o instrumento que nos tem faltado para isso são partidos políticos em que o enfrentamento do desafio de combinar a penetração eleitoral e a coesão real em torno de idéias (referidas, por certo, a interesses, tanto quanto possível adequadamente agregados, e às identidades correspondentes, talvez inevitavelmente definidas de maneira algo tosca) venha a propiciar a disciplina no comportamento parlamentar e ao governo como um todo maior organicidade e a busca consistente de políticas de maior alcance. O que também remete a uma sociologia atenta, em nosso caso, ao áspero e deficiente substrato social da política.
Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras
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