*2ª parte do primeiro capítulo do livro.
Editora Zahar, Rio de Janeiro, 2018
As raízes da ira
A crise da democracia liberal resulta da
conjunção de vários processos que se reforçam mutuamente. A globalização da
economia e da comunicação solapou e desestruturou as economias nacionais e
limitou a capacidade do Estado[1]nação de responder em seu
âmbito a problemas que são globais na origem, tais como as crises financeiras,
a violação aos direitos humanos, a mudança climática, a economia criminosa ou o
terrorismo. O paradoxal é que foram os Estados-nação a estimular o processo de
globalização, desmantelando regulações e fronteiras desde a década de 1980, nas
administrações de Reagan e Thatcher, nos dois países então líderes da economia
internacional. E são esses mesmos Estados que estão recolhendo as velas neste
momento, sob o impacto político dos setores populares que em todos os países
sofreram as consequências negativas da globalização. Ao passo que as camadas
profissionais de maior instrução e maiores possibilidades se conectam através
do planeta em uma nova formação de classes sociais, que separa as elites
cosmopolitas, criadoras de valor no mercado mundial, dos trabalhadores locais
desvalorizados pela deslocalização industrial, alijados pela mudança
tecnológica e desprotegidos pela desregulação trabalhista. A desigualdade
social resultante entre valorizadores e desvalorizados é a mais alta da
história recente. E mais, a lógica irrestrita do mercado acentua as diferenças
entre capacidades segundo o que é útil ou não às redes globais de capital, de
produção e de consumo, de tal modo que, além de desigualdade, há polarização;
ou seja, os ricos estão cada vez mais ricos, sobretudo no vértice da pirâmide,
e os pobres cada vez mais pobres. Essa dinâmica atua ao mesmo tempo nas
economias nacionais e na economia mundial. Assim, embora a incorporação de
centenas de milhões de pessoas no mundo de nova industrialização dinamize e
amplie o mercado mundial, a fragmentação de cada sociedade e de cada país se
acentua. Mas os governos nacionais, quase sem exceção até agora, decidiram
unir-se ao carro da globalização para não ficarem de fora da nova economia e da
nova divisão de poder. E, para aumentar a capacidade competitiva de seus
países, criaram uma nova forma de Estado – o Estado-rede –, a partir da
articulação institucional dos Estados-nação, que não desaparecem, mas se
transformam em nós de uma rede supranacional para a qual transferem soberania
em troca de participação na gestão da globalização. Esse é claramente o caso da
União Europeia, a construção mais audaz do último meio século, como resposta
política à globalização. Contudo, quanto mais o Estado-nação se distancia da
nação que ele representa, mais se dissociam o Estado e a nação, com a
consequente crise de legitimidade na mente de muitos cidadãos, mantidos à
margem de decisões essenciais para sua vida, tomadas para além das instituições
de representação direta.