O Estado de S. Paulo
Olhando os efeitos em torno de nós, mais
certo é incluir aventuras como a de Chávez e Maduro entre as que
desgraçadamente desonraram o conceito de socialismo
Por mais equivocado que seja falar da
existência de uma só esquerda, no singular, certamente há um fundo comum de
casos e histórias ao qual se pode recorrer para iluminar escolhas que
diferentes agrupamentos fizeram ao longo do tempo. Uma dessas histórias,
ocorrida ainda no início dos anos 1990 e guardada desde então no fundo do baú,
tem como personagens ninguém menos do que Fidel Castro, ícone da vertente
revolucionária, e Salomão Malina, o último secretário do PCB, expoente da
“moderação na adversidade” e da defesa de mudanças graduais, inclusive para a
saída negociada de regimes de exceção.
Malina tinha a mão direita semiamputada por
causa de um incidente na clandestinidade, em que vivera durante parte
considerável da vida. Era a mão que usava para incomodar opinadores
politicamente inconvenientes, tal como Fidel em visita ao Brasil. As intervenções
do eterno combatente tinham como alvo o reformismo, afinal malogrado, de
Mikhail Gorbachev – e os reformistas em geral. O interlocutor que visivelmente
preferia era o petista Luiz Inácio Lula da Silva, como se um e outro não se
dessem conta do abismo intransponível entre o mito cubano e a realidade
brasileira. Para encurtar a fábula, Malina, ainda por cima militar
multicondecorado por feitos na 2.ª Guerra, estendeu a Fidel a parte da mão que
lhe restava. Não era menos bravo do que o outro, “apenas” tinha visão diferente
da política e dos seus procedimentos, segundo o relato de Carlos Marchi no
primeiro volume sobre os cem anos do Partidão (Longa Jornada Até a Democracia,
Brasília, 2022).
Nos anos que se seguiram, a Fidel juntou-se o
venezuelano Hugo Chávez, incendiando a imaginação pouco realista de parte da
esquerda latino-americana e até global. A tentativa era a de atualizar o
paradigma revolucionário dos anos 60 do século 20, retirando-o do contexto
exclusivamente militarista e inserindo-o na perspectiva de aprofundamento da
democracia “burguesa”. De fato, houve por algum tempo a percepção de que a
“revolução bolivariana”, sustentada na renda petrolífera particularmente
propícia, podia se espalhar, se não em todos, pelo menos nos países mais pobres
e desiguais do continente, a exemplo da Bolívia e do Equador.
Pouco qualificada, a tática de aprofundamento
democrático encontraria seu desenho mais definitivo na sistemática convocação
de assembleias constituintes logo em seguida à eleição de um presidente de
vocação autoritária. Tratava-se, para o novo ocupante do Executivo, de
paulatinamente submeter as instâncias do Legislativo e do Judiciário ao seu
arbítrio, cancelando a separação dos Poderes e esvaziando as agências de
controle republicano. Para efetivar a agenda maximalista, um item indispensável
para os novos donos do poder era a aprovação do mecanismo de reeleições
sucessivas, sem limitação de nenhum tipo. E, como em todos os casos de
“revolução pelo alto”, a cargo de condottieri carismáticos, punham-se
em ação mecanismos de controle social que vinculavam diretamente homem
providencial e massas fanatizadas.
Os testemunhos mais isentos de que dispomos
dão conta de que, no vazio de representação assim criado, implantou-se a
fantasia da democracia direta – e implantou-se, contraditoriamente, de cima
para baixo. O pluralismo natural da sociedade, nervo da vida política, passaria
a ser substituído pelo simulacro das polarizações dilaceradoras, recurso
antipolítico por excelência. Os sucessivos confrontos eleitorais, travados num
campo crescentemente desigual, teriam a marca da manipulação plebiscitária em
que desde sempre se especializaram os autoritários. Diante dessa suposta
intensificação dos confrontos, só os deliberadamente cegos, que sempre os há,
puderam repetidamente afirmar, por exemplo, que na Venezuela chavista e regimes
congêneres existia “democracia até demais”.
A ambição revolucionária dos bolivarianos
esteve presente, ainda, no rótulo imaginado pelo sociólogo alemão Heinz
Dieterich. Com o experimento chavista, radicalizado por Nicolás Maduro,
estaríamos diante do “socialismo do século 21″. O eixo das grandes transformações
se deslocaria para a América Latina, suposição que uma vez mais tomava a nuvem
por Juno. Mais certo teria sido inserir toda a ala extrema da onda rosa daquele
início de século no “momento populista” que, à direita e à esquerda, se
mostraria sistematicamente incapaz de recombinar os elementos de liberalismo e
de democracia que, juntos, constituem o núcleo político das boas sociedades
modernas.
Olhando os efeitos em torno de nós, aqui e
agora, mais certo ainda é incluir aventuras como a de Chávez e Maduro entre as
que desgraçadamente desonraram o conceito de socialismo, longe de reconstruí-lo
e torná-lo uma alternativa, entre outras, para tratar os problemas que nos
assediam. Instaurado o caos e dada a impossibilidade de nele viver
indefinidamente, a coisa a fazer é evocar a figura ideal dos adeptos da
moderação e das soluções pacíficas, isolando o tirano e sua claque para que
possa prevalecer, ao fim e ao cabo, a vontade da maioria.