Descobertas da Comissão da Verdade e projetos de lei para mudar nomes de espaços públicos ligados à ditadura alimentam debate sobre como lidar com marcas da História recente do país
Ricardo Medeiros Pimenta*
No último dia 10, o coronel reformado Carlos Alberto Brilhante Ustra, entre outros militares convocados a depor, prestou depoimento à Comissão Nacional da Verdade (CNV), em Brasília. Sua fala não surpreendeu. Ao afirmar que jamais havia torturado ou assassinado alguém, Ustra declarou sua “verdade”, apesar do que apontam os documentos e informações levantados pela própria Comissão. Não demorou muito para que o auditório se manifestasse. Entre acusações e defesas, aquela plenária representou uma espécie de microcosmos de um Brasil intensamente marcado por expressões de acusação e defesa a personagens que trilharam um período tão obscuro da história recente.
Tocar no assunto é doloroso, como assim o foi em tantos outros países que passaram por um período de reparação do arbítrio e demais violências impostas e consentidas pelo Estado. Parafraseando o historiador francês Henry Rousso, ao se referir ao período de ocupação nazista e de colaboração do próprio Estado francês com a perseguição aos judeus, conhecido como Regime de Vichy, no Brasil também vivemos “um passado que não passa”.
Um passado que constrange pela verdade que não se quer revelar. Afinal, informar-se sobre os duros fatos ocorridos durante os anos de chumbo é municiar-se contra o projeto de futuro orquestrado pelos próprios dirigentes do Estado de exceção, que teve no silêncio uma de suas principais fundações. A própria comissão, após completar um ano de atividades, apresentou esta semana um resultado parcial das investigações. Nele, documentos do Centro de Informações da Marinha (Cenimar) apontam uma realidade distinta daquela posta até hoje. Uma outra “verdade”, que pôs em foco outros locais onde teriam ocorrido torturas, como a Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).
Enquanto os arquivos públicos vêm trabalhando no intuito de tornar acessíveis seus acervos, fundamentados pela Lei de Acesso à Informação (nº 12.527), de 18 de novembro de 2011, diferentes agentes e grupos da sociedade civil brasileira têm criado comissões e grupos de trabalho, alguns inspirados na experiência da CNV, com o objetivo de buscar documentos, depoimentos e demais vestígios sobre os arbítrios da ditadura militar.
Tais ações apontam para uma luta em andamento, que não se limita aos arquivos da ditadura, apesar de passar por eles também, mas se estende por ruas e colégios, praças e avenidas de nossas cidades. Essa luta diz respeito a uma memória que, ao sair dos subterrâneos do que se convencionou como uma espécie de história oficial, busca reocupar o espaço outrora marcado por um projeto de fabricação de heróis, imagens e símbolos de um período tão vergonhoso para nossa jovem democracia.
É o caso de manifestações como a que ocorreu em 29 de março de 2012 às portas do Clube Militar, no centro do Rio, quando homens e mulheres protestaram contra um evento em que militares reformados celebraram o aniversário da chamada “Revolução de 1964”. Encerrado entre as paredes do clube, o ato não poderia ser diferente. Afinal, quem comemora comunga de uma mesma memória. Partilha um espaço comum de lembranças. Para os demais que, de fora deste espaço comum, não partilhavam tal memória, tal verdade, a rua se tornou o espaço comum de oposição.
Ao nomear praças e avenidas, pontes e monumentos, em homenagem a militares e demais colaboradores ligados ao regime, o Estado apenas coloca uma fina camada de “verniz” em um passado de profundos sulcos em sua superfície memorial. Há diversos exemplos de homenagens desse tipo, mais comuns do que se imagina. Como no bairro de Sulacap, na Zona Norte do Rio, onde encontramos a Escola Municipal Presidente Humberto de Alencar Castelo Branco. Outros lugares acabaram por se tornar alvo inúmeras vezes de protestos da população. No dia 29 de julho de 2012, por exemplo, jovens protestaram contra a estátua do mesmo ex-presidente, no bairro do Leme, na Zona Sul carioca.
Em São Paulo, em 2006, o então prefeito José Serra (PSDB) propôs à Câmara Municipal a alteração do nome do viaduto Milton Tavares de Souza, o “Caveirinha”, colaborador na implementação do DOI-Codi na cidade. Atualmente, um projeto de lei sancionado pelo prefeito Fernando Haddad (PT) prevê a retirada do nome de ditadores e seus colaboradores das ruas por meio de abaixo-assinado. No Rio, outro projeto de lei apresentado pelo vereador Eliomar Coelho (PSOL) busca impedir que mais escolas do município sejam batizadas com tais nomes. Iniciativas como essas apontam a intolerância da sociedade civil brasileira com uma memória do segredo e uma retórica de meias verdades onde se maquiam personagens que estiveram à frente do projeto ditatorial.
Os símbolos e enunciados que compõem a cidade são uma representação do poder público que a configura e administra. Mas ela também é espaço de protesto da população que interpreta seus símbolos, códigos e discursos. Entre arquivos e memoriais, documentos e monumentos, a discussão em torno das memórias e do acesso às informações relacionadas à ditadura se tornou urgente.
*Ricardo Medeiros Pimenta é doutor em Memória Social, professor-adjunto do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT) e professor do Programa de Pós-graduação em Ciência da Informação (PPGCI/IBICT-UFRJ). Ele mediará a mesa “Lugares de memória e de informação: construções de conhecimento sobre a ditadura militar”, dia 29, às 10h, no IBICT (R. Lauro Muller 455, Botafogo)
Fonte: Prosa / O Globo
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