Estigmatizados como foco de mazelas ou celebrados como berço da cultura brasileira, os antigos cortiços deram origem a habitações coletivas que continuam a existir em todo o país
Por Pedro Sprejer
Em seu romance mais marcante, publicado em 1890, Aluísio Azevedo (1857-1913) retratou detalhadamente a vida de trabalhadores brasileiros e imigrantes em um cortiço de Botafogo. Influenciado pelo naturalismo do francês Émile Zola, o escritor maranhense narrou a saga dos moradores da Estalagem São Romão, desde sua criação pelas mãos do ambicioso comerciante português João Romão, até a transformação do conjunto, onde os habitantes viviam “socados” e amontoados, em uma vila de classe média.
No centenário de sua morte, o autor tem vida e obra revisitadas em nova versão da biografia escrita pelo pesquisador Jean-Yves Mérian, publicada originalmente em 1988. Em entrevista, ao GLOBO, ele diz que “O cortiço” retrata o espaço onde Azevedo acreditava ter sido forjada a nação brasileira, com sua miscigenação, exploração e uma caótica vitalidade.
Desde então, a realidade das moradias coletivas cariocas mudou muito. “Cortiço” tornou-se uma palavra pejorativa, mas, em muitos bairros, esse tradicional tipo de habitação continua a existir, em novas formas.
Cidade Misturada
O despertar da Estalagem São Romão é descrito por Aluísio Azevedo como uma mistura de risos, gritos, grasnar de marrecos, cantar de galos e cacarejar de galinhas. Mal raiava o dia e o pátio central era tomado por “lavadeiras que não se calavam”, trabalhando ao redor dos tanques. Na confusão matinal, os moradores experimentavam “o prazer animal de existir”. À noite, sob a luz dos candeeiros de querosene, com todos massacrados pelo dia de “labutação”, soavam modinhas cantadas por brasileiros e melancólicos fados com sotaque português.
No número 34 da Rua Senador Pompeu, no Centro, por trás de um insuspeito portão, se descortina uma singela joia arquitetônica da cidade: um antigo cortiço de fins do século XIX. Em dois tons de azul, a construção tem grandes janelas, portas e sacadas de madeira, em torno de um pátio com tanques de roupa coletivos.
Hoje não há mais lavadeiras por ali, todos têm máquina de lavar, e os tanques são quase cenográficos. Tombado pelo Patrimônio Cultural do Município, o cortiço teve os 46 quartos originais transformados em 23 conjugados. Há exatos dez anos, a construção foi reformada pela Caixa Econômica Federal e transformada em conjunto habitacional para pessoas de baixa renda.
— Gosto muito do livro, mas isso aqui não tem mais nada a ver com o cortiço da história — diz a enfermeira aposentada Izabel Moreira.
Em 2003, ela e o marido deixaram a casa onde viviam em Realengo para o filho e se mudaram para o local. Como os outros moradores, o casal foi contemplado pelo Programa Morando no Centro, uma parceria entre a Caixa e a prefeitura que não recebeu continuidade nos últimos anos. Pelo conjugado, pagam R$174 de arrendamento e R$109 de condomínio. Ao fim de 15 anos, serão proprietários do imóvel.
Dos moradores que viviam ali antes da reforma, apenas um restou. O conjunto costuma receber visitas que vão de estudantes de arquitetura a diplomatas estrangeiros, passando por equipes de TV e fotógrafos. Orgulhosa, Izabel guarda um caderno com 42 folhas assinadas por visitantes. Ela reclama, porém, da falta de manutenção da construção, e conta que os moradores já tentaram eleger um síndico para o condomínio, mas encontraram forte resistência na empresa terceirizada que presta serviço para a Caixa administrando o imóvel.
Em 10 anos, só duas crianças nasceram ali: Vitinho, de 7 anos, e Laura, de poucas semanas. Mãe do primeiro, Márcia da Silva, morava em Cosmos, na Zona Oeste, onde ficam conjuntos que têm recebido famílias desalojadas pelas obras na cidade. Ela fez o caminho inverso, chegando ao Centro, onde trabalha como operadora de informática a poucos passos de casa.
— Para morar tão próximo dos outros, tem que saber conviver — explica Márcia.
Um lugar onde o povo gerou suas linguagens
A palavra cortiço tem duas acepções possíveis: uma caixa de cortiça onde as abelhas fabricavam mel, e pequena corte. Pouco antes de Aluísio Azevedo, Zola escreveu sobre uma estalagem parisiense em “L’Assommoir”. Em 1935, George Gershwin ambientou sua ópera “Porgy and Bess” no Catfish Row, um cortiço fictício na Carolina do Sul. Já a famosa vila do seriado mexicano Chaves remete às tradicionais construções de classe média baixa que sucederam os cortiços em muitos países.
O antropólogo e doutorando em literatura Pedro Guilherme Freire estudou as moradias populares cariocas, como o antigo Hotel Bragança, um “cortiço em sobrado” na Lapa. Em 2010, cerca de setenta famílias que viviam ali foram removidas após a construção ter sido considerada área de risco. Freire, que chegou a morar em outra habitação multifamiliar no Centro, acredita que Aluísio Azevedo contribuiu para estigmatização da população que vive nesses locais.
— O livro está cheio de estereótipos preconceituosos associados a promiscuidade, sujeira, violência. Não existe “o cortiço”, cada uma dessas moradias é um mundo à parte, onde há uma diversidade enorme de pessoas convivendo — observa Freire. — Até hoje, são os locais que recebem migrantes e estrangeiros, como africanos refugiados da guerra.
Para o biógrafo e estudioso da obra de Azevedo, Jean-Yves Mérian, o autor expõe no livro os dois lados da moeda:
— A Estalagem São Romão representava, ao mesmo tempo, um símbolo da precariedade, da exploração, da falta de asseio e um lugar com alegria, solidariedade, onde surgiu da mistura uma cultura muito rica.
De acordo com o historiador e arquiteto Nireu Cavalcanti, as primeiras moradias do tipo surgiram no período colonial e ficaram conhecidas como pardieiros, por serem associadas às casinhas onde se criavam pombos. A construção de estalagens e a transformação de sobrados em habitações multifamiliares, conhecidas como “casas de cômodos”, ocorre a partir de meados do século XIX, época de grande crescimento demográfico, em que muitos imigrantes chegam ao país e o trabalho escravo vai sendo substituído pelo assalariado. Os terrenos estreitos e profundos dos imóveis cariocas, concentrados nas mãos de poucos donos, favoreceram a construção de quartos ao longo dos quintais, aumentando a renda dos proprietários, geralmente portugueses, que os alugavam.
— Nessa época, a cidade era atingida por muitas epidemias e autoridades começaram a ver os cortiços como locais insalubres, focos de doenças — afirma Nireu, que faz campanha pelo tombamento de sobrados na Rua Marechal Niemeyer em Botafogo, resquícios, segundo ele, do cortiço que inspirou Azevedo.
Inimigo dos cortiços, o prefeito higienista Barata Ribeiro mandou derrubar o famoso Cabeça de Porco em 1893. Na década seguinte, o prefeito Pereira Passos (cuja morte também completou 100 anos em 2013) promoveu reformas urbanas no processo conhecido como “bota abaixo”, demolindo muitos sobrados. Os desalojados migraram para outros cortiços ou para as primeiras favelas da cidade, construindo barracos com a madeira da demolição.
Autor de “A cidade no Brasil” (Editora 34), o antropólogo e poeta baiano Antônio Risério lembra que habitações coletivas semelhantes aos cortiços e casas de cômodos ainda existem maciçamente em todo o país — mesmo assim, não há estatísticas precisas devido à grande mobilidade dos moradores.
— Ali o povo foi gerando suas linguagens, como o samba. Nos cortiços de Salvador é que o candomblé foi recriado — assinala Risério. — É preciso melhorar as condições de moradia, mas o planejamento urbano tem que levar em conta critérios antropológicos e históricos.
Em São Paulo, até a década de 40, ainda era comum encontrar proprietários morando em sobrados na entrada dos cortiços, exatamente como o português João Romão do romance.
— Eles podiam ir para outros lugares, mas preferiam ficar perto daquela energia vital do cortiço, o avesso do isolamento burguês-aristocrático do apartamento — analisa Risério.
Alternativa para a moradia popular
Subsecretário municipal de Patrimônio, Washington Fajardo foi, à época, um dos arquitetos responsáveis pela transformação do cortiço da Rua Senador Pompeu. Ele diz que a gestão atual da prefeitura acha mais interessante erguer novos conjuntos habitacionais em terrenos vazios no Centro e em outros bairros do que reformar construções históricas para esse fim:
— O que se observou, com o tempo, é que a população que vive nesses imóveis não estava conseguindo zelar pela manutenção, que é mais cara e trabalhosa — diz Fajardo, ressaltando que considera fundamental a manutenção da diversidade na ocupação da cidade.
O arquiteto Luiz Fernando Janot, membro do conselho superior do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB), acredita que, com políticas de incentivo às reformas e estímulo à formação de lideranças internas é possível recuperar sobrados e manter a população que já vive nos locais:
— Você pode aproveitar esse casario e dentro fazer uma estrutura em aço, aproveitando a espacialidade que já existe ali. Incentivando lideranças comunitárias, você protege o local da criminalidade. É uma solução perfeitamente viável para habitações populares em muitos bairros da cidade. Uma das melhores saídas.
Professor do departamento de História da PUC-Rio, Antonio Edmilson Rodrigues, vê semelhanças entre o período em que se passa “O cortiço” e o momento atual da cidade:
— Há uma crise geral da moradia por conta dos altos preços. Assim como naquela época, essas construções voltam a ser alternativas para quem não pode pagar muito.
A paraibana Júlia Pereira vive há 33 anos num sobrado que batizou de Flor de Laranjeiras. Quando chegou, eram só ela, a portuguesa Dona Maria, proprietária do imóvel (“minha segunda mãe”), sua amiga Dona Ana (“irmã de um cangaceiro”) e a inquilina Vó Elza (“agora mora em Santa Cruz, tem 94 anos”). A casa teria sido comprada com o dinheiro da venda de uma joia trazida de Portugal. Hoje, inteiramente reformada, tem 23 quartos e quatro quitinetes.
— Quando chega alguém novo, dou uma folha com o regulamento. Tem gente que trabalha de dia e que trabalha de noite. Todos precisam descansar. Aqui é meio convento — diz Júlia.
Passaram por ali carteiros, garçons, porteiros, estudantes, funcionários de colégios da região. A maioria deles nordestinos. Geralmente, já chegam indicados por conhecidos. Júlia diz que atualmente oito pessoas esperam por uma vaga. Cada um dos três andares do casarão tem banheiros coletivos — é proibido ir até eles enrolado na toalha. Cada quarto tem o próprio relógio de luz. Tudo regularizado, garante Júlia.
Na quitinete em que vive com o filho e o marido, Júlia cria três passarinhos e duas calopsitas. Ela coloca as gaiolas lado a lado, “para eles ficarem mais próximos”. Gatos e cachorros são proibidos no sobrado. Música alta, nem pensar. Papagaios, só com licença do Ibama.
Fonte: Prosa / O Globo
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