terça-feira, 6 de setembro de 2022

Luiz Gonzaga Belluzzo* - (Des)caminhos da finança global

Valar Econômico

Para Keynes, controle de capitais deveria ser uma característica permanente da ordem global pós-Guerra

Alan Greenspan, às vésperas de sua saída da presidência do Federal Reserve, chamou a atenção para as alterações provocadas pela globalização. Ele dizia que “durante as últimas décadas, a inflação caiu sensivelmente no mundo inteiro, assim como a volatilidade da economia. A globalização e a inovação parecem elementos essenciais de qualquer paradigma capaz de explicar os eventos dos últimos 10 anos”.

Em seu livro “Interest and Prices”, o economista Michael Woodford nos presenteou com uma exposição sobre o regime de metas. Woodford, apoiado “nos escritos monetários (não quantitativistas) de Knut Wicksell” se propõe a definir as condições de existência de uma regra ótima de reação do banco central diante de alterações antecipadas no nível geral de preços.

Os bancos centrais buscam coordenar as expectativas dos formadores de preços e dos detentores de riqueza, de modo a consolidar a confiança em sua atuação, atenuando a volatilidade do nível geral de preços, da renda e do emprego. O livro de Woodford interpreta Wickssel de forma peculiar. O autor constrói uma hipotética economia monetária na qual o crédito está praticamente ausente. Wickssel, na verdade, caminhou para a concepção de uma economia de “crédito puro” para examinar os processos cumulativos de inflação e deflação.

A obra de Woodford não menciona, sequer no glossário, a expressão “exchange rate”. Isto, imagino, pode significar que nos países de moeda conversível, as flutuações do câmbio apenas têm efeitos “reais” na medida em que afetam os preços relativos entre “tradables” e “non tradables”. Woodford parece considerar irrelevantes as flutuações do câmbio para a formação das expectativas dos agentes em uma economia monetária e financeira. Woodford não surpreende, portanto, ao negar relevância à globalização dos mercados financeiros na formulação de regras que orientem a atuação dos bancos centrais.

Na contramão, o economista do Banco para Compensações Internacionais (BIS), Claudio Borio, rebateu os argumentos de Woodford: “Nossas descobertas sugerem que os fatores globais se tornaram mais importantes do que os fatores domésticos”. Borio se refere às mudanças importantes que afetaram, antes da crise financeira, as condições da oferta e da demanda na economia globalizada. São elas:

1- A grande empresa manufatureira se deslocou para regiões onde o custo unitário da mão de obra é sensivelmente mais baixo. Nesses mercados, a oferta ilimitada de mão de obra impede que os salários acompanhem o ritmo de crescimento da produtividade.

2 - As relações produtividade/salários nos emergentes asiáticos incitaram a rápida criação de nova capacidade produtiva na indústria manufatureira, acirrando a concorrência global entre os produtores de manufaturas.

3 - As políticas de comércio exterior dos emergentes em processo de “perseguição” industrial combinam saldos comerciais alentados, acumulação de reservas e políticas de defesa do câmbio real.

4- Os Estados Unidos, beneficiados pela capacidade de atração de seu mercado financeiro amplo e profundo absorveram um volume de capitais externos muito superior aos déficits em conta corrente. Borio procura demonstrar que em um mundo em que prevalece a mobilidade de capitais a determinação não vai do déficit em conta corrente para a “poupança externa”. É a elevada liquidez e a alta “elasticidade” dos mercados financeiros globais que patrocinam a exuberante expansão do crédito, a inflação de ativos e o endividamento das famílias viciadas no hiper-consumo. A inflação ia muito bem, obrigado.

A combinação entre esses fenômenos - baixa inflação e excessiva elasticidade do sistema financeiro - acentuou o caráter procíclico da oferta de crédito e impulsionou a criação de desequilíbrios cumulativos nos balanços de famílias, empresas e países - com sérias consequências para a eficácia das políticas monetárias nacionais. A questão central, na opinião do economista do BIS, reside no crescimento excepcional dos fluxos brutos de capital entre as economias centrais.

Isso significa que as mudanças patrimoniais entre os agentes privados e públicos (bancos, empresas, governos e famílias) foram muito mais intensas do que as refletidas no financiamento do déficit em conta corrente. “Assim, mesmo que os Estados Unidos não apresentassem déficits externos ao longo dos anos 90 (e da primeira década do século XXI), o ingresso de capitais teria sido robusto”.

O ex-economista-chefe do FMI, Olivier Blanchard escreve: “Antes da crise de 2008, muitas economias emergentes adotaram o regime de metas de inflação. Isso era visto como o estado da arte no que respeita à política monetária... Esses países (no que se refere ao câmbio) se incluíam entre os “flutuantes”. Argumentavam, continua Blanchard, que os cuidados com a taxa de câmbio deveriam ser considerados apenas por seus efeitos na inflação. Não deram qualquer importância à taxa de câmbio como objetivo de política econômica. Mas os países (emergentes) têm razões para cuidar das taxas de câmbio. É importante dispor de instrumentos para afetar o nível e a volatilidade da taxa.

Conhecedor das proezas do irrequieto capital-dinheiro, um certo John Maynard Keynes, tocado pelas trapalhadas dos anos 1920 e pelas desgraças da Grande Depressão dos anos 1930, defendeu, nas negociações de Bretton Woods, a vedação dos movimentos de capitais. Não surpreende que, nos trabalhos elaborados para as reuniões que precederam as reformas de Bretton Woods, Keynes tenha tomado posições radicais em favor da administração centralizada e pública do sistema internacional de pagamentos e de criação de liquidez. Ele imaginava que o controle de capitais deveria ser “uma característica permanente da nova ordem econômica mundial do pós-Guerra. Para ser efetivo, esse controle envolveria provavelmente uma engrenagem de administração estrita do câmbio para todas as transações, mesmo se o balanço em conta corrente estiver em geral aberto”.

*Luiz Gonzaga Belluzzo é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp, professor emérito da Universidade Federal de Goiás.

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