- Valor Econômico
Agora, restam dúvidas reais se a cláusula do impeachment, válvula de proteção contra os que abusam do poder, pode funcionar quando há um presidente forte e beligerante. A democracia americana está mais ameaçada do que nunca na história moderna
O fatídico conflito sobre a deposição do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, do cargo revelou a alarmante fragilidade da Constituição na qual os americanos se apoiam há mais de 200 anos para manter seu sistema democrático. Nada desde a Guerra Civil americana representou um teste tão grande para sua viabilidade. E a lição amedrontadora é que um presidente determinado, que tenha forte controle sobre seu partido e despreze o Estado de direito, pode livrar-se dos freios e controles da Constituição.
Os idealizadores da Constituição dos EUA foram brilhantes, mas podiam imaginar o futuro apenas até certo ponto. Eles previram que alguém desonesto ou pior poderia ocupar a presidência e, embora tivessem antecipado “facções”, não queriam nem previram que haveria partidos políticos, muito menos que esses partidos seriam instrumentos do poder de um presidente. Na realidade, até Trump, os EUA nunca tiveram um presidente que exercesse um controle tão forte sobre seu partido. Agora que o país se depara com isso, as provisões para remover o presidente - por meio do impeachment na Câmara dos Deputados e da condenação por dois terços do Senado - foram neutralizadas.
Dois fatores explicam o controle de Trump sobre os membros republicanos do Congresso, muitos dos quais são mais inteligentes do que ele, não gostam dele e até o desprezam ou o consideram incapaz para o cargo: sua esperteza feroz e sua capacidade de amedrontar potenciais oponentes, seja soltando a coleira de sua base hipnotizada sobre republicanos dissidentes ou apoiando desafiantes desses dissidentes nas eleições primárias seguintes.
O primeiro dos dois artigos do processo de impeachment aberto em dezembro pela Câmara dos Deputados, controlada pelos democratas, era de abuso de poder. A Câmara acusou Trump de reter quase US$ 400 milhões em assistência militar à Ucrânia, aprovada pelo Congresso, até que o presidente eleito, Volodymyr Zelensky, anunciasse uma investigação sobre Joe Biden, que na época surgia como grande adversário de Trump para as eleições de novembro, e sobre o filho de Biden, Hunter, por supostos conflitos de interesse. A resistência total e sem precedentes de Trump a cooperar com os democratas na Câmara nas investigações do processo de impeachment, ao recusar-se a fornecer testemunhas ou documentos, resultaram em um segundo artigo para o impeachment, de obstrução ao Congresso.
A acusação de conflito de interesse contra Hunter e Biden originava-se do fato de que ele fez parte do conselho de administração de uma empresa ucraniana corrupta da área de gás natural ao mesmo tempo em que seu pai era o responsável no governo Obama pela política americana para o Leste Europeu. Na realidade, Trump não exigiu uma investigação real; ele simplesmente insistiu que se anunciasse uma investigação. Ao reter a ajuda financeira a um aliado sob ataque militar da Rússia, em troca de uma chance de manchar a reputação de seu possível oponente à reeleição, Trump foi contra os conselhos de seus principais auxiliares. (Trump também queria uma investigação sobre a história, originada na Rússia, de que foi a Ucrânia, não a Rússia, que havia interferido na eleição presidencial americana de 2016).
Contestações nos tribunais à recusa de Trump em cooperar com os investigadores de impeachment na Câmara poderiam ter estendido o processo para novembro ou até depois. Isso colocou os investigadores da Câmara em uma situação embaraçosa: a equipe de promotores da Câmara no julgamento no Senado insistiu que mesmo a transcrição modificada da ligação de Trump a Zelensky em julho já continha evidências suficientes de que o presidente havia exigido um “quid pro quo” do presidente ucraniano. Então, argumentou a equipe de defesa do presidente, por que os promotores da Câmara pediam mais testemunhas e documentos?
Os defensores jurídicos de Trump negligenciaram o fato de que informações comprometedoras haviam surgido depois da votação do impeachment na Câmara. Eles fizeram vistas grossas a notícias confiáveis nos jornais de que o livro por sair de Bolton continha revelações que reforçavam os argumentos da Câmara ou que o motivo para a Câmara não ter ouvido certas testemunhas foi o fato de Trump tê-las impedido. Outros argumentos da defesa - por exemplo, o de que a pressão de Trump sobre a Ucrânia era resultado do repentino empenho do presidente americano para acabar com a corrupção naquele país - foram risíveis.
A sustentação mais desconcertante dos defensores do presidente, feita por Alan Dershowitz, ex-professor da Harvard Law School e destacado advogado de defesa, especialista em recursos, foi a de que se um presidente achar que a reeleição está no interesse público, o que ele fizer para alcançar esse objetivo não pode ser passível de impeachment. Dershowitz posteriormente argumentou que falava “teoricamente”. Mas sua opinião seguia a linha do ponto de vista de Trump, expressado publicamente, com base no Artigo 2 da Constituição, que estabelece a presidência e seus poderes: “Tenho direito a fazer o que quiser como presidente.”
Ao amarrar-se a Trump, os republicanos no Senado assumiram o risco de que novas informações comprometedoras pudessem surgir depois que eles tivessem votado por sua absolvição. Eles se penduraram a um galho junto com Trump, sabendo que esse galho poderia partir-se. É um risco que ainda existe.
Minha opinião, inevitavelmente polêmica para aqueles acreditando que Trump é culpado das acusações pelas quais teve o impeachment aprovado na Câmara - assim como de outras - é que a resolução sobre a violação do presidente de seus deveres constitucionais terminou da forma acertada: com a recusa do Senado em condenar o presidente. Os idealizadores da Constituição estavam corretos ao pensar que algo tão drástico e traumático como remover um presidente do cargo não poderia ser feito sem ter por trás um forte consenso nacional. Foi pela existência desse consenso que Richard Nixon compreendeu que seria condenado e derrubado do cargo se não renunciasse.
A estreita margem que absolveu Trump no Senado (52 a 48) não foi surpresa. Mitt Romney, o único republicano a votar pela condenação, “partiu o bebê ao meio”, já que na outra acusação, de obstrução ao Congresso, votou pela absolvição. Em seu dramático discurso explicando por que voltou pela condenação, Romney - um dos dois republicanos no Senado a votar a favor da convocação de testemunhas (a outra foi Susan Collins, do Estado do Maine) - previu que ficaria sujeito a ataques de um presidente vingativo e de seus rancorosos aliados. Romney estava correto; um dos primeiros ataques veio de Donald Trump Jr.
Ainda assim, Trump sofreu um processo de impeachment e sua presidência está permanentemente manchada. Pouco antes do voto final no Senado, Trump estava se sentindo “invencível”, segundo auxiliares - e preparando uma lista de pessoas que deverão ser acusadas. Agora, restam dúvidas reais se a cláusula do impeachment, a válvula de proteção contra comandantes-em-chefe das Forças Armadas que abusam do poder, pode funcionar quando há um presidente forte e beligerante. A democracia americana está mais ameaçada do que nunca na história moderna. (Tradução de Sabino Ahumada).
*Elizabeth Drew é escritora e jornalista em Washington. Seu livro mais recente é “Washington Journal: Reporting Watergate and Richard Nixon’s Downfall”
Nenhum comentário:
Postar um comentário