- Revista Época
Escrevo este artigo influenciada pelo que tenho visto acontecer com mulheres que têm voz no Brasil
A foto já é icônica. Na frente, um Trump sisudo, tendo acabado de proferir no Congresso o último discurso sobre o estado da União do atual mandato — quiçá o último como presidente, caso não se reeleja. Atrás, o vice aprumado com ares de bom moço, sorridente e sem graça em igual medida. Ao lado dele, a líder da Câmara.
Trajando o branco das sufragistas, batom vermelho na expressão marota ou quase blasé, flagrada pela câmera em pleno ato de rasgar. Rasgar ao meio, rasgar cada papel e colocá-lo de lado numa pilha de farrapos. Nos farrapos, as palavras do presidente. Na rasgada, um ato repleto de símbolos. Na rasgada, a política em sua plenitude. Tão plena que suscitou, como todo ato político de envergadura e força, rechaços e elogios viscerais. O ódio se espalhou nas redes. A admiração, também.
A rasgada imortal de Nancy Pelosi é quebra de decoro. “Mas que absurdo!”, bradaram os defensores do decoro, e sobretudo os opositores de sua quebra por uma mulher. Mulher poderosa no sentido mais puro da palavra, mulher com voz no sentido mais literal — Pelosi é a “Speaker of the House”, aquela que fala por uma das instituições do Legislativo. No Twitter, subiram a hashtag #pettypelosi, mulher mesquinha essa Pelosi. Como ousa? Fiquei imaginando como seria chamada uma Pelosi no Brasil, com pegada de rasgada. Uma menina querendo agradar à mamãe na interpretação psicanalítica? Penso que não — Pelosi é avó. Uma idosa que mia e choraminga o tempo todo? Tampouco. Pelosi não abriu a boca.
Ela rasgou sem dó, sem dar importância ao que diriam homens e mulheres, mas principalmente os homens. Ela rasgou com a mais escancarada indiferença ao bom moço postado a seu lado e ao estridente astro de reality show, cabelo engomado, a sua frente. Tenham ou não gostado do filme, levou o Oscar. A noite se resumiu à rasgada e de tudo que foi dito o que sobrou foi tão simplesmente e tão completamente a rasgada.
De Petra Costa a Regina Duarte, de jornalistas a quem mais se atreva a entrar em terreno supostamente reservado a outras vozes.
Os ataques a essas mulheres, sejam de esquerda ou de direita, não são por causa de sua obra ou de seus atos — o filme, o cargo no governo, o ofício de todos os dias ou o luxo de ter uma coluna em jornal da qual não se depende para viver. Os ataques tantas vezes indizíveis pela carga de obscenidades são contra elas por serem elas, por ocuparem o lugar que ocupam, por atraírem a atenção cobiçada por outros, pelo mérito implícito em tudo isso que a elas não deveria pertencer por determinação. Determinação de quem? Do moço no Twitter que se sentiu diminuído? De gente famosa com megafone? E que com megafone é idolatrada pelos “machos” do planeta verde e amarelo talvez até sem querer?
Ficou difícil escrever “só” sobre economia. Ficou difícil porque a economia não é uma disciplina separada do resto como uma espécie de caixinha especial. A economia é influenciada e influencia muitas esferas da vida e, por ser na essência uma construção social, é afetada por costumes e normas culturais. A vontade cada vez mais explícita de querer determinar o papel da mulher na sociedade, o que ela pode e não pode falar, o que ela pode e não pode fazer, a tentativa de desqualificá-la, tudo isso tem um impacto econômico mensurável.
Não faltam estudos acadêmicos mostrando que atos discriminatórios prejudicam a economia de diversas maneiras. Também não faltam experiências revelando que a inclusão — no mercado de trabalho, na academia, na política — beneficia o desenvolvimento dos países. Falo sobre mulheres, mas os mesmos argumentos e estudos valem para questões de raça, orientação sexual ou religiosa, nacionalidade, e seja lá o que for que torne o indivíduo diferente da “maioria que determina”.
Não sei quais serão as consequências da rasgada de Pelosi, assim como não sei se o documentário de Petra Costa vencerá o Oscar. Também não sei se Regina Duarte será uma boa secretária da Cultura ou se os principais furos jornalísticos do ano serão dados por mulheres, como o das eleições de 2018. O que sei é que os ataques abjetos haverão de continuar, pois os freios se foram.
Cada um fala o que quer quando quer, cruza linhas antes impensáveis sem pensar, diz-se defensor da igualdade de gênero, mas não resiste a um ataque muito bem definido em latim como ad hominem. Não há non sequiturs aqui, pois causa e efeito já não importam. O que importa é que o comportamento bestial está relativizado e aprovado. Cabe a quem quiser enfrentar e chamar a atenção para o que não é aceitável. Dar sua própria rasgada. Eis a minha.
*Monica de Bolle é Pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins
Nenhum comentário:
Postar um comentário