- Blog Democracia e Socialismo, Junho, 2020
Pelo mundo afora está a se discutir o papel do Estado que haverá de surgir na economia pós-pandemia. Mas no Brasil, onde há uma avassaladora hegemonia do liberalismo no pensamento econômico, irradiado para a política, e principalmente difundido na grande mídia, mudar a orientação reformista liberal inaugurada desde a gestão Temer-Meirelles apresenta-se como um verdadeiro “cavalo-de-pau” para a imensidão da opinião pública liberal. Querendo ou não, exatamente por serem a corrente ideológica e política hegemônica, terá que partir deles em grande medida, de seu autoconvencimento, a mudança de rumos nas reformas do Estado brasileiro.
Com base no que observo atualmente, no tipo de argumentação que liberais apresentam contra o imperativo de um Estado protagonista na economia, constato levantarem pelo menos um dentre os seguintes três escudos defensivos:
1) O Estado brasileiro é patrimonialista;
2) Financiamento do Tesouro pelo BC é a volta do populismo;
3) O Estado é ineficiente e favorece a corrupção.
Minha resposta.
Começo pelo item (2) que vai mais de encontro à economia.
Tomo como referência o destacado economista André Lara Resende por ser um insuspeito liberal declarado. Erros de interpretação obviamente são de minha total responsabilidade. Ele parte de uma fundamentada visão histórica sobre a evolução da moeda até os dias de hoje. Ele faz ver que na moeda fiduciária contemporânea, num Estado nacional que emite sua própria moeda, Banco Central e Tesouro constituem uma unidade econômico-financeira, apesar de sua distinção formal. O endividamento público em moeda nacional pode ser astronômico, como em alguns países, sem a perda de confiança na moeda; além disso, o balanço consolidado do BC com o Tesouro apresenta um passivo, cujo "credor", o povo, seus nacionais, sabem que a contrapartida em ativos corresponde a um patrimônio social, aí já descontados os custos sociais dos desastres (“sunk costs”), como por exemplo Fukushima para os japoneses. Daí também que não se admita o desleixo e a ineficiência com o gasto público. Essa "dívida pública" pode ser e é passada entre gerações.
Quanto aos itens (1) e (3), a resposta é conjunta.
Quanto à ineficiência e à corrupção é preciso ver que o país mudou. As instituições de controle criadas pela CF 88 já foram postas à prova; Dilma foi derrubada pela política mas com as provas formais colhidas pela CGU; e todas as obras públicas tramitam pelos Tribunais de Contas; claro que a bagunça administrativa pode travar esses processos; daí que gente competente é imprescindível, a exemplo do atual Min. Tarcísio de Freitas, servidor de um governo reacionário, para dizer o mínimo, mas de quem conservo a boa impressão já declarada em textos de até um ano atrás. Ele é uma prova de que gestão eficiente depende só de gestores e equipes competentes.
E o que dizer da Lava-Jato? Não há prova maior de que estão cada vez mais difíceis os "(...) Tem que estancar a sangria" e os "(...) Tem que manter isso, viu?"
E o que dizer da Lei de Responsabilidade Fiscal, que a meu ver precisaria ser aperfeiçoada, por exemplo para dar a flexibilidade de uma regulação a períodos maiores do que exercícios anuais; aprimoramento continuo da legislação é conseqüência lógica da própria vida, do próprio sucesso.
Outras reformas, especialmente aquelas de aprimoramento do sistema político ainda precisam ser feitas, com forte incidência contra o patrimonialismo e a corrupção eleitorais. Ainda há pouco, nas vésperas de assumir a presidência do TSE, o Min. Barroso estava em entendimentos com a Câmara e Senado para agendarem uma reforma eleitoral, mediante projetos já existentes no parlamento, que discuta o voto distrital misto conjugado ao voto em lista semi-aberta, limites à reeleição, critérios que aumentariam o controle do eleitor sobre os eleitos, alem de forte redução de custos.
Na mesma linha de ataque ao patrimonialismo e à corrupção, é preciso reconhecer o impacto das novas tecnologias de comunicação para o controle e vigilância da cidadania sobre a representação política, a começar pelo aprimoramento já alcançado da votação e apuração por urnas eletrônicas e muito além: escândalos que são amplamente repercutidos pela mídia como as “malas de dinheiro”; ativismo das redes sociais; e destacadamente as novas tecnologias de investigação e cruzamento de informações, de que são exemplos a capacitação do COAF, Polícia Federal, Receita Federal e Ministério Público. Fato emblemático foi o julgamento do mensalão no STF, ao vivo e a cores, para todo o país.
Afora todos esses avanços, e embora possa frequentemente descambar para um uso dispersivo, alienante e politicamente reacionário, a revolução informacional em curso é rica em virtualidades emancipatórias para a humanidade, para democratização do conhecimento, para a comunicação, para as experiências de democracia direta e de mobilização em redes. São fatos historicamente novos, que mudam entre nós o contexto da reprodução secular de nossas heranças autoritárias, clientelistas e patrimonialistas.
Mas para todos aqueles males da corrupção, ineficiência, populismo e patrimonialismo estatais, a resposta do liberalismo é simplista, risonha, e "revolucionária": destruí-lo, reduzir o Estado às suas funções clássicas de garantir a "igualdade de oportunidades", investindo em educação, saúde e segurança.
Mas este é o “remédio” que mata o doente. Já de há alguns anos identifico esquematicamente duas tendências com as quais se depara o Brasil, mormente quanto às relações Estado-sociedade.
Ou se consolida como nação, e para isso tem que "trocar o pneu com o carro em movimento" (democracia, crescimento econômico, inclusão social) onde o permanente é a mudança, guardando autonomia sobre o seu próprio destino.
Ou vira "Mercadolândia" (a nação virando apenas um território de mercado), o "salve-se quem puder", abrindo mão da autonomia.
No primeiro caso, a grande tentação tem sido as soluções autoritárias de todo tipo, escalonando-se as tarefas históricas ao invés de enfrentá-las simultaneamente: ditadura para "salvar" a democracia (como no golpe de 1964); "primeiro crescer o bolo para depois distribuir"; instrumentalizar a democracia para chegar ao poder e "conduzir" o povo (populismos de esquerda e direita); cercar o Estado capitalista por um poder paralelo, popular, construído "desde as bases", um caminho para a “sociedade justa, igualitária, anticapitalista” em aversão e desconfiança face à democracia representativa historicamente construída (várias concepções de Estado e de revolução fundadas numa transição com "dualidade de poderes").
No segundo caso há uma crença de que o mercado livre garante tudo o mais, a começar pelas liberdades democráticas: democracia e livre mercado vistos como uma unidade: aversão e desconfiança quanto à atuação do Estado. Seria o caminho que supostamente romperia o “nó górdio” de ter que “trocar o pneu com o carro em movimento”. Mas o sofisma aqui embutido está em associar democracia e livre mercado.
Qual democracia? Democracia com crescimento e inclusão social? Um pacto social com cheque em branco às forças cegas do mercado?
Recorde-se a propósito que na CF 88, logo no seu Título I, dos Princípios Fundamentais, o Art. 3º dispõe sobre os objetivos fundamentais da República, segundo os incisos:
I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II – garantir o desenvolvimento nacional;
III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
IV- promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Ora, a pandemia escancarou o abismo de nossa sociedade partida e o futuro que nos legará.
Aqui um adendo sobre a importância do SUS para a população brasileira, como nunca agora evidenciada. O SUS é emblemático do papel do Estado e ponta do “iceberg” dos desafios à frente quanto aos objetivos da República. E nesse particular os exemplos estão vindo de fora. No combate à pandemia, casos como os da Alemanha e da Inglaterra, com sistemas semelhantes ao SUS, tem tido resultados minimamente satisfatórios. Já os EUA, com toda a sua potência econômica e tecnológica, mas sem um equivalente do SUS, está em situação desastrosa. Conforme tem vindo a público, os pobres nos EUA, principalmente negros, acumulam doenças, comorbidades que cobram seu preço na pandemia. Não as tratam a tempo no sistema privado para não deixarem dívidas impagáveis às suas famílias.
Diante desse quadro da nossa sociedade, a intelectualidade liberal no Brasil, até por ser portadora da hegemonia, é instada diuturnamente a se posicionar. E ao fazê-lo está dando transparência às suas divisões.
Aqui delineiam-se duas tendências:
1) Os que defendem reformas liberais com compromisso social, implicando maior protagonismo social do Estado, alguns inclusive já defendendo a flexibilização do “teto de gastos” para alem da situação emergencial e de calamidade pública atual;
2) Os que reconhecem apenas a excepcionalidade do presente ativismo financeiro do Estado; neste sentido, acreditam que a disciplina fiscal do Estado e a eficiência do gasto público requer a volta do ‘teto de gastos” tão logo passada a pandemia.
Claro que há nuances dentre os que integram esta segunda tendência. Uns são transparentes em acreditar mesmo numa “agenda de produtividade” com o enxugamento do Estado e a “salvação” pelo capital privado. Mas há o caso extremo, dos que vão alem, num projeto de “Estado mínimo”, que enchem a boca “ilustrada” com o “crowding in” do gasto privado sobre o público. Estes tem a convicção, velada, inconfessa, de que uma sociedade moderna, das mais altas tecnologias e produtividade não é mesmo para todos, não inclusiva daqueles que nem são objeto da "ciência" econômica que aprenderam.
A economia que conta é a das camadas médias "emergentes", do agronegócio, e dos ricos de sempre. Um subsistema econômico aculturado e atrelado ao dinamismo dos países centrais do capitalismo. E o resto? Ora, o resto que vá para o "empreendedorismo", de baixa produtividade, controlados pelas milícias e pela polícia, num novo "apartheid"...
Em suma.
Aqueles da primeira tendência, se forem consequentes com o enfrentamento a que se propuseram, logicamente chegarão aos limites do liberalismo econômico, recolherão os seus “escudos” e abraçarão a causa maior de um Estado protagonista pela construção daquele Brasil projetado na Constituição de 1988.
Já os da segunda tendência, abrangem um amplo espectro. Há os “crentes” no “whishfull thinking” da “agenda de produtividade”. Não vêem que a revolução liberal é o “remédio que mata o doente”. Já está matando a olhos vistos.
Por fim os do “Estado mínimo”, com sua hipocrisia e canalhice hoje investida de autoridade oficial.
*Alfredo Maciel da Silveira é Doutor em Economia, IE-UFRJ e MSc. Eng. de Produção, Coppe-UFRJ. É um dos editores deste Blog "Democracia e Socialismo".
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