- Eu & Fim de Semana / Valor Econômico
O assunto lembra Luigi Pirandello, de "Seis Personagens à Procura de um Autor". Porém, estas são histórias reais, de grande intensidade dramática, verdadeiramente trágicas. Ainda não mereceram a atenção dos nossos autores e cineastas.
Uma exceção foi o que ocorreu no Vale do Rio Doce, em Minas, nos meados dos anos 1950. Envolveu a pequena comunidade rural do Catulé, de negros pobres, meeiros de um latifúndio. Teria sido esquecido na página policial de uns poucos jornais brasileiros não fosse a iniciativa de um grupo de cientistas sociais da Faculdade de Filosofia da USP. Tendo lido a notícia, organizaram uma expedição ao local, entrevistaram os protagonistas do episódio na cadeia de Malacacheta e salvaram-no para a literatura e o cinema. E para nossa consciência social.
Um grupo de penitentes, numa Semana Santa, supondo que o mundo se acabava, caíram num estado de exaltação mística, praticaram sacrifícios rituais e, nus dentro de um Jordão brasileiro, aguardaram a vinda de Elias do céu, para buscá-los num carro de fogo.
Com base no relatório da pesquisa, publicado na revista "Anhembi", o teatrólogo Jorge Andrade escreveu a peça "Vereda da Salvação". Anselmo Duarte, por sua vez, transformou-a num filme. Um marco na atualização temática do cinema brasileiro.
O interesse não se repetiu. Nos anos 1930, estando na roça, uma família brasileira, de pai espanhol, no Amazonas, foi atacada por um grupo de índios ianomâmi. A adolescente Helena Valero foi ferida por uma flecha envenenada com curare, substância anestésica que paralisa os movimentos da caça. A família escondeu-a sob um monte de galhos e recomendou-lhe que ficasse calada. Voltaria mais tarde para resgatá-la. Foi descoberta pelos índios, que lhe deram o antídoto e a levaram consigo, dias de viagem de volta à aldeia, na Venezuela. Ali cresceu. Foi uma das esposas de um dos índios.
Helena fora educada numa escola católica. Falava português e espanhol e o nheengatu, língua comum em sua região de origem. Teve filhos. Assimilou a cultura tribal, sua língua e seus costumes.
Anos depois, quando os primeiros regatões de comerciantes começaram a chegar perto da região, fugiu com filhos e marido e pediu abrigo num dos barcos. Voltou à dita "civilização". Reencontrou a família, que, no entanto, a rejeitou. Para eles, ela se tornara uma índia. Foi acolhida na missão católica em que se educara.
Não faz muitos anos, foi localizada, por dois jornalistas de "O Estado de S. Paulo", à margem do rio Orinoco, cega, cuidada por uma nora indígena. Antes, havia sido entrevistada pelo biólogo italiano Ettore Biocca, que reproduziu a entrevista integralmente no livro "Os Ianomâmi", publicado em italiano, em francês e em espanhol. Nunca houve interesse em publicá-lo em português, mesmo sendo Helena Valero brasileira. Seria um modo de corrigir a autoria da excelente e dramática etnografia do texto, verdadeira obra literária.
Outra história é a de uma tragédia shakespeariana na selva de Rondônia, em meados dos anos 1970. Época da implantação de projetos de colonização oficial. Por esse tempo, haviam sido contactados pela Funai os indios suruí, que a si mesmos se denominam paíter, isto é, "nós", "gente". Colonos oriundos do Sul do Brasil, de Minas Gerais e do Espírito Santo, chegavam ao Estado dia e noite.
Nem todas as populações indígenas da região haviam sido contactadas, o que deu lugar a conflitos entre índios e adventícios. Destes, muitos eram apenas invasores de terras. A Funai recrutou um adolescente suruí, Oréia, que aprendera português, para participar da aproximação entre os dois grupos. Ele e a filha adolescente de um colono capixaba se apaixonaram.
Mas em toda a frente da expansão, ali também os brancos nutriam grande preconceito contra os indígenas, definindo-os como gentios no sentido de aquém da condição humana. A família da moça não aceitou aquela paixão. Foi a moça raptada por Oréia, com seu consentimento, e levada para a aldeia.
Reagiu a família, que organizou uma expedição e a recapturou. O rapaz entrou num processo depressivo. Deitou na rede e ali ficou, completamente abúlico. Os adolescentes suruí do seu grupo de idade organizaram um ataque aos brancos. Houve vítimas, pois ao retornarem cumpriram um período de purificação ritual do corpo porque haviam tido contato com sangue. A moça já fora enviada de volta ao seu estado de origem.
Em represália, os brancos atacaram a aldeia, Oréia foi morto na rede e esquartejado, as partes de seu corpo espalhadas pela mata. A tragédia ficou resumida a uma frase que ouvi de um funcionário da Funai em Porto Velho: "Oréia era um vagabundo". Era, apenas, um adolescente apaixonado, num mundo dividido.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de “Fronteira - A Degradação do Outro nos Confins do Humano” (Contexto).
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