terça-feira, 20 de dezembro de 2022

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

Supremo acertou ao acabar com o orçamento secreto

O Globo

Cabe ao Congresso estabelecer mecanismos mais transparentes para alocar os recursos públicos

Fez bem o Supremo Tribunal Federal (STF) ao proibir ontem o mecanismo orçamentário que permitiu aos presidentes da Câmara e do Senado destinar nos últimos três anos perto de R$ 55 bilhões em dinheiro do contribuinte a projetos escolhidos pelos parlamentares sem transparência nem critério técnico. Ao limitar drasticamente o uso das emendas do relator-geral, identificadas nas leis orçamentárias pela sigla RP9 e conhecidas pelo apelido “orçamento secreto”, o Supremo libera os R$ 19,4 bilhões previstos para elas no Orçamento de 2023 e lança sobre o Legislativo o dever de estabelecer e seguir regras mais republicanas e transparentes no uso do dinheiro público.

Com o fim das RP9s, passam a valer na distribuição das verbas a parlamentares apenas os critérios já vigentes para as emendas individuais e de bancada: distribuição igualitária e impositiva (o Executivo é obrigado a executar os pagamentos). Deixam de valer as regras do Projeto aprovado às pressas no Parlamento na sexta-feira passada, na tentativa de atrair votos recalcitrantes do Supremo para manter as emendas do relator.

É verdade que tal Projeto representava um avanço sobre a situação anterior ao impor que todas as emendas fossem associadas ao nome do parlamentar que patrocina os projetos. Mesmo assim, ainda deixava a alocação de 20% das verbas nas mãos dos presidentes da Câmara, do Senado e do relator-geral do Orçamento. Isso significaria, em 2023, cerca de R$ 1,45 bilhão distribuído segundo o alvitre exclusivo do presidente de cada uma das Casas Legislativas, valor superior ao orçamento de 14 ministérios, só superado pelas verbas destinadas à Defesa, Infraestrutura, Educação e Saúde.

As mudanças não convenceram o ministro Ricardo Lewandowski, que suspendera a votação na semana passada para que se aguardassem as providências que o Congresso tomaria a respeito. Lewandowski acabou acompanhando o voto da relatora, ministra Rosa Weber, que restringe o uso das RP9s apenas a ajustes e correções técnicas pontuais, vedando a criação de novas despesas. Ao justificar a inconstitucionalidade do mecanismo, ela argumentou que as RP9s concentram poder na mão de um grupo restrito de parlamentares, abrindo espaço a barganhas políticas inaceitáveis com o dinheiro público.

O fim do orçamento secreto não acaba, porém, com o problema de fundo que propiciou sua criação: a dificuldade de encontrar um método eficaz para o Executivo negociar apoio a seus projetos no Congresso num regime de alta fragmentação partidária, em que grande parte das legendas está mais interessada em verbas e cargos no governo do que em ideologia ou discussões programáticas.

A redução gradual dessa pulverização, como resultado da minirreforma política de 2017, contribuirá para aprimorar a relação entre os Poderes. Mesmo assim, ainda cabe aos legisladores estabelecer mecanismos por meio dos quais o dinheiro dos impostos possa ser destinado de acordo com necessidades tecnicamente justificadas, de modo transparente, preservando o papel do Legislativo ao confeccionar o Orçamento, mas também o do Executivo ao executá-lo.

Suspensão de jornalistas revela limites da gestão Musk no Twitter

O Globo

Bilionário mostrou ter tanto apreço pela liberdade de expressão quanto aqueles a quem acusara de censura

Elon Musk assumiu o Twitter defendendo a liberdade de expressão de modo absoluto. Eliminou equipes que monitoravam desinformação até sobre vacinas, desbloqueou contas banidas — como a do ex-presidente Donald Trump — e acusou a gestão anterior de perseguir a direita e os republicanos. Para comprovar, repassou aos jornalistas Matt Taibbi e Bari Weiss documentos do Twitter registrando discussões internas travadas em 2020 para restringir a difusão de conteúdos repercutindo reportagens sobre negócios suspeitos de Hunter Biden, filho do então candidato Joe Biden. As informações, extraídas de um laptop que Hunter mandara ao conserto, levaram a pedido de investigação. Musk, que se diz partidário dos republicanos, afirma que havia na empresa censura e influência perniciosa de democratas.

Pois o Twittergate foi eclipsado quando o próprio Musk mandou suspender contas de jornalistas de veículos como New York Times, Washington Post e CNN, acusados de veicular informações que poderiam levar a seu “assassinato”. Uma das contas suspensas usava dados de rotas aéreas para acompanhar seu jato em tempo real. Musk alegou que, ao compartilharem o trajeto do avião e outros dados pessoais, os jornalistas punham em risco a vida dele e de sua família (disse que um carro com seu filho fora perseguido). Determinou ainda que o Twitter bloqueie toda “informação ao vivo” de localização. Diante da reação contrária até entre aqueles que costumam defendê-lo — caso da jornalista Bari Weiss —, voltou atrás no fim de semana e mandou restaurar as contas dos jornalistas suspensos.

É louvável a preocupação do bilionário com a segurança, mas a localização de voos é informação pública, e a divulgação dificilmente representa ameaça. A resposta foi exagerada e desnecessária. O objetivo implícito era intimidar quem manifesta opiniões críticas ou incômodas a Musk, que revelou ter um apreço seletivo pela liberdade de expressão, como criticara na gestão anterior. Felizmente a pressão o fez recuar.

Embora a proteção à liberdade de expressão deva ser abrangente, existem situações em que se justifica suspender contas ou reduzir a circulação de informações nocivas. O episódio todo mostra mais uma vez que não dá para decidir o que pode circular nas redes sociais com base em idiossincrasias das plataformas digitais ou de seus donos. Nos Estados Unidos e no Brasil, deveria haver arcabouço jurídico mais eficaz.

As plataformas deveriam ser obrigadas a ter uma política pública, nos limites que a lei definir para a liberdade de informação e de expressão. Deveria também haver transparência na moderação, com fundamentação explícita das decisões e possibilidade de recurso. O Projeto de Lei das Fake News, parado na Câmara, traz uma resposta adequada ao desafio. Sem legislação estabelecendo as obrigações das redes sociais, sempre haverá espaço para arbítrio, seja das empresas ávidas por agradar a seus donos, seja do Judiciário, cioso por conter a desinformação, mas inclinado, na ausência de regras claras e eficazes, a também incorrer em exageros.

STF na barafunda

Folha de S. Paulo

Liminar prolonga casuísmo no Auxílio Brasil; plenário derruba emendas de relator

Jair Bolsonaro (PL) e o Congresso promoveram, por razões eleitoreiras, enorme desorganização no Orçamento federal. A equipe de transição de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) pretende, na prática, agravar o desequilíbrio das contas públicas com a ampliação de despesas sem lastro. Agora, também o Judiciário se meteu na barafunda.

Em decisão monocrática proferida no domingo (18), o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, estabeleceu que desembolsos necessários para manter o Auxílio Brasil (ou Bolsa Família) de R$ 600 mensais podem ser excluídos no próximo ano do teto de gastos inscrito na Constituição.

A canetada de Gilmar pode até indicar uma saída imediata para viabilizar um programa fundamental. Deveria ser desnecessário, porém, apontar os riscos de um magistrado interferir de modo discricionário em questões de política pública debatidas no Parlamento.

Cumpre recordar que a implantação do Auxílio Brasil, versão ampliada do Bolsa Família, foi desde o início objeto de sucessivas gambiarras legislativas e fiscais.

No final do ano passado, uma emenda constitucional adiou pagamentos de dívidas impostas pela Justiça à União —um calote, em português mais claro— e elevou o limite de gastos para que o programa, aposta eleitoral de Bolsonaro, coubesse no Orçamento.

Abandonou-se o que restava de compostura em julho deste ano, quando o governo contou com a quase totalidade do Congresso para decretar um fictício "estado de emergência" que autorizou a elevação temporária do auxílio de R$ 400 para R$ 600, fora do teto.

A decisão dominical, solitária e provisória de Gilmar prolonga o improviso e o casuísmo. O impacto ainda parece difícil de estimar, mas especula-se que a medida tenha facilitado a vida de Lula, ora envolvido em difíceis negociações com o centrão da Câmara pela famigerada PEC da Gastança.

Nesse mesmo contexto, ainda se avaliam as consequências políticas do julgamento do Supremo que considerou inconstitucionais as emendas de relator —este, ao menos, mais claramente assentado em aspectos jurídicos, embora também adentrando no terreno perigoso das relações entre forças eleitas de Executivo e Legislativo.

No que diz respeito à política pública, o Auxílio Brasil precisa estar inserido em um Orçamento sustentável, compatível com a capacidade de arrecadação e de crédito do governo. Deve, também, eliminar as distorções já identificadas que hoje aumentam seus custos.

Do contrário, os ardis legais, discursos messiânicos, conchavos e regabofes de Brasília só reproduzirão a surrada fórmula de distribuir dinheiro obtido com endividamento público, que será cobrado depois, com juros, dos mais pobres.

Ordem nas PMs

Folha de S. Paulo

Câmara tira polêmicas de lei que rege corporações, mas ignora controle de abusos

O projeto da Lei Orgânica da Polícia Militar, aprovado na Câmara dos Deputados na última quarta-feira (14), é uma demanda justificada e antiga das PMs por mais segurança jurídica, e a discussão sobre o tema é bem-vinda.

As regras das corporações ainda são regidas por um decreto-lei de 1969, e o projeto que enfim avançou foi proposto em um longínquo 2001 pelo governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB).

Mais recentemente, contudo, a tramitação do texto foi usada por seguidores de Jair Bolsonaro (PL) para angariar apoio a propostas temerárias —afinal, as forças de segurança sempre estiveram entre as bases políticas do presidente.

Na principal delas, sugeriu-se que a escolha do comandante estadual da PM se desse a partir de uma lista tríplice feita por oficiais com mandato fixo, o que na prática esvaziaria parte do poder dos governadores sobre a instituição.

Os deputados acertaram ao barrar esse ponto, mas o que sobrou ao final foi um diploma com poucas novidades e vários penduricalhos corporativistas. Perdeu-se a oportunidade de aprimorar as regras do trabalho policial e propor modelos de reestruturação das polícias —falha que ainda pode ser corrigida no Senado Federal.

Ademais, caberá ao Executivo federal definir por decreto termos da lei como segurança pública e poder de polícia. Um retrocesso, já que tal especificação merece debate legislativo extenso.

Um ponto preocupante e contraditório foi a autorização para policiais irem armados a manifestações políticas fora do expediente. Forças policiais na ativa deveriam se abster de envolvimento em movimentos do tipo, como o próprio projeto aprovado estabelece.

Já a expansão da Justiça Militar nos estados e a manutenção de sua competência para o julgamento de crimes militares praticados contra civis, felizmente, não prosperou. Se aprovada, o Brasil reforçaria que caminha na contramão de países da região que ou extinguiram ou reformaram a Justiça Militar.

No país onde 6.145 pessoas foram mortas em 2021 por intervenções policiais, número em queda pela primeira vez desde 2013, é inadmissível que não tenha avançado o debate sobre controle externo e protocolos para uso da força.

Espera-se que essa e outras questões sejam debatidas com profundidade, em ambiente mais sereno.

Gritante inconstitucionalidade

O Estado de S. Paulo.

Com a derrubada do orçamento secreto pelo STF, é tempo de restaurar as relações institucionais e as funções de cada um dos Poderes, embaralhadas no confuso governo Bolsonaro

Com a derrubada do orçamento secreto, é tempo de restaurar as relações institucionais.

Por 6 votos a 5, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu declarar a inconstitucionalidade do orçamento secreto. Revelado pelo Estadão em maio de 2021 e veementemente negado pelo governo federal à época, o esquema garantiu estabilidade política a Jair Bolsonaro no Congresso. Parlamentares blindaram o presidente contra pedidos de impeachment e, em troca, asseguraram recursos para suas bases por meio das bilionárias emendas de relator.

A decisão do STF ganha enorme relevância no momento em que o governo eleito precisa de autorização do Legislativo para aprovar ajustes no Orçamento. A proposta enviada pelo atual Executivo ao Congresso não reservou verba para manter em R$ 600 o piso do Auxílio Brasil, que será renomeado como Bolsa Família, e cortou em 60% a verba de programas como o Farmácia Popular. Reservou, no entanto, R$ 19,4 bilhões para o pagamento das emendas de relator – distribuídas por critérios obscuros pelos presidentes da Câmara, Arthur Lira (PPAL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), sem qualquer vinculação com políticas públicas e sem que a sociedade pudesse sequer identificar o parlamentar que fez a indicação.

Na liminar concedida no fim do ano passado, quando suspendeu a execução das emendas de relator, a ministra Rosa Weber declarou que elas eram um instrumento incompatível com os princípios da publicidade e da impessoalidade dos atos da administração pública e com o regime de transparência no uso dos recursos financeiros do Estado. Ao proclamar o voto definitivo sobre o caso, na semana passada, a presidente do STF reiterou seu posicionamento. Disse que o mecanismo configurava um “verdadeiro regime de exceção ao orçamento da União, em burla à transparência e à distribuição isonômica de recursos públicos”, e funcionava de maneira “incompatível com a ordem constitucional, democrática e republicana”.

A contundência da ministra não deixou espaço para dúvidas sobre a inconstitucionalidade do orçamento secreto. Chama a atenção, portanto, que o plenário do STF tenha derrubado o dispositivo por apenas um voto, o que mostra o quanto a luta política contaminou o Supremo. Acompanharam Rosa Weber os ministros Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Luiz Fux, Cármen Lúcia e Ricardo Lewandowski. Já André Mendonça, Nunes Marques, Alexandre de Moraes, Dias Toffoli e Gilmar Mendes divergiram da ministra, cobrando transparência e publicidade nas emendas como contrapartida para sua manutenção.

Três dias antes, na tentativa de influenciar os votos remanescentes dos ministros, o Congresso aprovou um conjunto de normas para distribuição das emendas. A nova regra estabelecia uma divisão conforme o tamanho das bancadas dos partidos, com divulgação dos nomes dos parlamentares que fizessem as indicações e alocação de metade da verba em saúde, educação e assistência social. Os termos da resolução são o maior reconhecimento, por parte da Câmara e do Senado, de que o orçamento secreto vinha, de fato, funcionando à margem da legalidade.

Diante do gigantismo que as emendas assumiram, as consequências do julgamento são imprevisíveis, mas devem alterar a dinâmica das relações entre os Poderes que vigorou no governo Bolsonaro. Lideranças veem influência do presidente eleito Lula da Silva no voto do ministro Ricardo Lewandowski, com quem contavam para manter o mecanismo vivo, e prometem revidar.

Lula ainda precisa dos deputados para aprovar a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da Transição, mas uma liminar concedida pelo ministro Gilmar Mendes abriu caminho para financiar o piso do Bolsa Família por meio de crédito extraordinário. É menos do que ele queria, mas certamente soluciona sua demanda mais urgente e abre espaço para negociações posteriores sob novas bases.

Sejam quais forem os próximos capítulos dessa novela, é tempo de restaurar as relações institucionais e as funções de cada um dos Poderes após o confuso governo de Bolsonaro. A elaboração do Orçamento é função do Executivo. Ao Legislativo, cabe aprovar a peça orçamentária e propor correções, além de fiscalizar o uso dos recursos e avaliar sua execução e aplicação. Para ambos, vale o princípio da transparência, como determina a Constituição.

Discurso e realidade da Lava Jato

O Estado de S. Paulo.

Além de escancarar a precariedade dos métodos da Lava Jato, a revogação da prisão de Sérgio Cabral lembra que, na República, o caminho é a lei, e não extravagâncias messiânicas

Durante muito tempo, a Lava Jato foi apresentada como uma robusta e implacável operação policial contra grandes esquemas de corrupção operados por políticos e empresários. O discurso tinha ares encantadores. Depois de várias operações anteriores frustradas, finalmente Polícia Federal, Ministério Público Federal e Poder Judiciário tinham aprendido a lição e estavam agora fazendo um trabalho investigativo da forma mais séria e rigorosa possível. Não havia como dar errado.

Nos últimos anos, a divergência desse discurso com a realidade foi exposta diversas vezes, a começar pela interpretação amplíssima que a 13.ª Vara Federal de Curitiba deu a respeito de sua própria competência, o que acarretou várias nulidades. Mais recentemente, a utilização da Lava Jato para fins político-partidários pelo ex-procurador Deltan Dallagnol e pelo exjuiz Sérgio Moro – que se valeu de sua atuação no caso até para eleger a mulher como deputada federal por São Paulo – evidenciou uma nuvem pouco republicana sobre a famosa operação. “A contradição é notória”, dissemos neste espaço sobre o uso eleitoreiro da Lava Jato (E o lavajatismo chegou lá, 10/10/2022). “Uma operação estatal cujo objetivo era apurar diferentes modalidades de desvio de recursos públicos para fins particulares – pessoais ou partidários – tornou-se ela mesma instrumento para promover objetivos particulares: a eleição de ex-funcionários públicos e seus parentes.”

Agora, mais uma camada da realidade da Lava Jato foi exposta. No dia 16 de dezembro, na conclusão do julgamento pela 2.ª Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) de um habeas corpus impetrado em favor de Sérgio Cabral, o País se deu conta de que o ex-governador do Rio de Janeiro estava preso simplesmente em razão de uma ordem de prisão preventiva decretada pela 13.ª Vara Federal de Curitiba em novembro de 2016 por fatos ocorridos em 2008 e 2009. Ora, uma prisão nesses moldes é ilegal.

A prisão preventiva tem finalidades e requisitos precisos. Como estabeleceu o Congresso na legislação processual, essa medida restritiva não pode ser utilizada como “antecipação de cumprimento de pena”, tampouco é “decorrência imediata de investigação criminal ou da apresentação ou recebimento de denúncia”. Ao decretar uma prisão preventiva, a decisão judicial “deve ser motivada e fundamentada em receio de perigo e existência concreta de fatos novos ou contemporâneos que justifiquem a aplicação da medida adotada”. Fatos ocorridos há mais de 10 anos não servem para justificar uma prisão preventiva. Por isso, ao revogar a prisão de Sérgio Cabral, a 2.ª Turma do STF agiu corretamente. Fechar os olhos à ilegalidade de uma prisão preventiva que vinha se prolongando indefinidamente no tempo seria descumprir, de forma contundente, a Constituição.

No julgamento do habeas corpus, os ministros do Supremo salientaram que não estavam avaliando “o mérito das denúncias” contra Sérgio Cabral nem era um “juízo de valor sobre a gravidade dos fatos supostamente praticados pelo acusado”. O tema era outro. Tratava-se tão somente de verificar a legalidade de uma prisão preventiva que durava mais de seis anos. A Lava Jato não passou no teste.

A revogação da prisão do ex-governador do Rio de Janeiro é muito simbólica. Até mesmo aquele que era apontado como o único político atualmente preso pela Lava Jato estava na prisão em função de uma ordem inequivocamente ilegal. Ou seja, a alegada robustez da operação era, na realidade, uma tremenda precariedade, rigorosamente incapaz de produzir a consequência tão prometida à população: a devida responsabilização dos culpados pelos escândalos revelados.

A cada novo capítulo da história da Lava Jato, a lição republicana tornase mais cristalina. É uma grande enganação achar que se defende a lei, que se combate a criminalidade ou que se reduz a impunidade com órgãos públicos atuando fora da lei. Não serve rigorosamente para nada. O caminho é a lei, e não as extravagâncias messiânicas de quem se considera acima do Estado.

Os desafios da biodiversidade

O Estado de S. Paulo.

Conferência da ONU estabelece metas que dependem do equilíbrio entre preservação e produtividade

A 15.ª conferência sobre biodiversidade da ONU – irmã da conferência sobre o clima, também chamada COP – pactuou colocar 30% do planeta sob proteção até 2030. A meta é comparável à do Acordo de Paris de limitar o aquecimento global a 1,5°C na era industrial. Hoje, 17% das terras e 8% dos mares estão sob proteção.

Entre os desafios ambientais, a biodiversidade vinha sendo negligenciada em comparação ao aquecimento global. Mas ambos estão relacionados. O desmatamento que destrói ecossistemas prejudica a absorção de carbono, acelerando as mudanças climáticas, que, por sua vez, prejudicam a biodiversidade.

De ecossistemas sadios dependem o consumo de água, peixes, carne, madeira, a polinização de plantas nativas ou cultivadas, insumos para medicamentos, o controle de pestes, além de usos recreacionais. Mas, nos últimos 50 anos, cerca de 60% desses “serviços ecossistêmicos” foram degradados.

Além da meta de proteção, a COP estabeleceu outros três compromissos: criar um fundo para países em desenvolvimento de US$ 20 bilhões anuais até 2025; obrigar os negócios a reportar sua dependência da biodiversidade; e reduzir US$ 500 milhões por ano de subsídios para empreendimentos nocivos à natureza.

Ainda assim, o mundo está distante dos US$ 384 bilhões anuais que a ONU considera necessários. Uma das soluções é a criação de créditos de biodiversidade similares aos créditos de carbono. Um dos desafios é estabelecer consensos sobre as métricas.

Tal como nas políticas climáticas, as políticas de biodiversidade precisam equacionar relações de custo-benefício otimizadas entre a responsabilidade ambiental e a social. Reduções mal planejadas de combustíveis fósseis e terras agricultáveis podem encarecer demais os preços da energia e dos alimentos, com efeitos sociais desastrosos.

Recursos naturais e humanos são limitados, e é preciso inteligência para empregá-los. Nas políticas climáticas, frequentemente se gasta muito subsidiando energias limpas custosas e ineficazes, e muito pouco em pesquisa para tornar essas energias tão baratas e eficazes quanto as fósseis.

Em relação à biodiversidade, militantes ambientalistas frequentemente advogam a agricultura orgânica em detrimento de fertilizantes, tratores, transgênicos e pesticidas. Mas graças a eles é possível produzir hoje o que se produzia há 50 anos utilizando 70% menos de terra. Se há efeitos colaterais danosos, é preciso reduzi-los. Mas o fato é que é preciso mais, não menos tecnologia.

Por isso, tão importante quanto investir em reservas e reflorestamento é investir em pesquisa e desenvolvimento de sistemas agrícolas que permitam produzir mais com menos terras. Esse “crescimento com encolhimento” é o caminho. Além dos benefícios à natureza, inovações agrícolas podem baratear os alimentos, reduzindo a fome e a desnutrição. Para concretizar esse “ganha-ganha”, o maior desafio das próximas COPS será encontrar equações otimizadas entre o quanto se investe em preservação florestal e o quanto se investe em produtividade agrícola.

Estados fazem acordo com União enquanto elevam ICMS

Valor Econômico

Uma solução coerente para essas disputas só virá com reforma tributária, e há boas chances de que ela seja aprovada em 2023

Pelo arranjo federativo brasileiro, os Estados parecem ter poucas responsabilidades em relação à União. Causa frequente de atritos, invariavelmente mediados pelo Judiciário, que com frequência os favorece, Estados e municípios podem descumprir acordos com a União, mesmo que formalmente ratificados, têm ampla independência na gestão econômica pública, mas é costumeiro que aleguem hipossuficiência quando a conta de dívidas líquidas e certas lhes é cobrada. Isso ficou mais uma vez claro após as estripulias eleitoreiras do presidente Jair Bolsonaro, que, em acordo com o Legislativo, reduziu o ICMS de bens essenciais à alíquota modal (17%-18%), cortando preços de combustíveis e diminuindo a inflação.

Os Estados reagiram à ação de baixar os preços de combustíveis na marra e, em várias frentes, os resultados começam a aparecer agora, com um acordo intermediado pelo Supremo Tribunal Federal sacramentado na semana passada. A solução arbitrada é precária e a definitiva só virá por meio de uma reforma tributária, para a qual os entes federativos mostraram-se dispostos durante a tramitação de dois projetos sobre o assunto no Legislativo. O ministro Paulo Guedes não se interessou por nenhum deles, mas sim pela volta de um imposto sobre transações financeiras. Maduros para ir à votação, os projetos aguardam uma decisão política do novo governo, que já colocou a reforma tributária como uma de suas urgentes prioridades.

O imbróglio atual começou com Bolsonaro demitindo dois presidentes da Petrobras até que a estatal segurasse os preços dos combustíveis. A União os desonerou totalmente dos impostos federais. O Legislativo deu sua contribuição, aceitando proposta do Executivo de reduzir o ICMS dos produtos essenciais - gasolina, etanol, gás, telecomunicações e transportes - à aliquota modal dos Estados, então entre 17% e 18%, quando esses itens tinham alíquotas abusivas de até mais de 30% em algumas unidades da Federação. A União prometeu compensar os Estados pelas perdas que ultrapassassem 5% da arrecadação, sem definir como - e essa definição ainda está em aberto, pelo acordo selado no STF.

Os Estados, por meio de transferências bilionárias recebidas em função da pandemia, em 2021, e do crescimento da inflação em 2022, tiveram ótima arrecadação, e vários deles, em ano eleitoral, reajustaram salários dos servidores e ampliaram investimentos. Diante da redução do ICMS, porém, não deixaram de recorrer ao STF, que muitas vezes os socorreu com decisões casuísticas. Um dos casos mais flagrantes foi o de impedir que as contragarantias dadas ao Tesouro para empréstimos recebidos pelo Estado do Rio de Janeiro fossem executadas mesmo diante da inadimplência de pagamentos de compromissos sob aval, cujos credores foram e estão sendo ressarcidos pela União.

A saída arbitrada pelo STF é paradoxal. O próprio tribunal decidiu, em ações envolvendo Piauí, Pernambuco, Acre, Santa Catarina e Distrito Federal, que as alíquotas incidentes sobre energia elétrica e serviços de telecomunicação, considerados essenciais, não poderiam ser maiores do que as que recaem sobre as operações em geral. O STF ajuizou que a decisão passaria a ter efeitos a partir de 2024.

Agora, o STF agiu de forma diferente. O ministro Gilmar Mendes fechou acordo que reconhece que a União terá de compensar os Estados por perdas de uma decisão que já foi tomada pelo tribunal e passará a vigorar no ano seguinte, embora como isso será feito ainda esteja em aberto. O Congresso estipulou que a compensação ocorreria a partir de perdas de 5% das receitas totais.

Enquanto a negociação ocorria, porém, o STF concedeu liminares a meia dúzia de Estados para que deixassem de pagar dívidas com a União, diante exatamente da perda de arrecadação que a redução do ICMS acarretaria. Os Estados, por sua parte, não se fizeram de rogados, utilizando expedientes que o governo Bolsonaro utilizou. Assim como a União furou o teto sempre que precisou, pelo menos 9 governos estaduais decidiram que, se perdem receitas com bens essenciais à aliquota modal de 17%, é preciso então aumentá-la. A manobra foi aprovada pelas Assembleias Legislativas.

Estados e União concordaram que GLP, gás de cozinha e diesel são bens essenciais. O caso da gasolina será estudado. Uma solução coerente para essas disputas, no entanto, só virá com reforma tributária que institua um Imposto sobre Valor Agregado cobrado no destino. Há boas chances de que ela seja aprovada em 2023.

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