Carta Capital
Relatório do BIS desqualifica as políticas
econômicas sempre voltadas para o curto prazo
O mercado da riqueza é um fenômeno estranho
à lógica convencional, sempre empenhada em formular deduções pela exclusão de
contradições. Os processos de mercado não podem ser avaliados pela concepção de
“ciência” que busca definir “valores de equilíbrio” extraídos de construções
teóricas que empobrecem as subjetividades dos protagonistas, como aquelas
geradas sob o patrocínio das “expectativas racionais”.
Em condições de “normalidade”, asseguram os
“especialistas”, operações de mercado de ativos são viabilizadas por
equivalências que simultaneamente significam percepções contrárias de valores.
O preço da operação (equivalência) diz
respeito a uma oportunidade vantajosa para renúncia de liquidez e aquisição do
ativo para o comprador, e de renúncia do ativo em troca de liquidez para o
vendedor. No mercado financeiro, cada qual prevê o futuro à sua maneira. O
comprador acredita que o prêmio esperado compensa o risco, ocorrendo o oposto
com o vendedor. O benefício para o comprador será realizado caso o tempo
entregue os ganhos esperados com a aquisição do ativo.
As percepções distintas de valores são
possíveis no presente enquanto expectativas distintas. A economia colaborativa
descrita na teoria clássica – sempre dedicada a atribuir vantagens mútuas nas
trocas entre agentes mobilizados pelo desejo de consumo de utilidades diversas
– é subvertida por movimentos de agentes com percepções inversas quanto à
estratégia para realizar um desejo mútuo (e contraposto) de expandir seu valor
em dinheiro.
O Relatório Anual do Banco de Compensações Internacionais de 2014/2015 aponta a incapacidade da teoria dominante de avaliar o que ocorre no “mundo real”:
“Se expurgamos a visão analítica
prevalecente de suas nuances e nos fixamos em sua influência no debate a
respeito das políticas econômicas, nos deparamos com uma lógica simples. Há um
excesso ou deficiência de demanda para a produção doméstica (hiato do produto),
o que determina a inflação, ou pelo menos suporta as expectativas
inflacionárias. As políticas de demanda agregada devem ser utilizadas,
portanto, para eliminar o hiato de produto e assim alcançar o pleno emprego e a
estabilidade do nível geral de preços; as políticas fiscais afetam diretamente o
gasto e a política monetária afeta indiretamente o dispêndio agregado mediante
o manejo da taxa real de juros. A taxa de câmbio flutuante permite às
autoridades liberdade para fixar os objetivos da política monetária. Se cada
país ajusta as políticas fiscal e monetária de modo a fechar o hiato do
produto, período após período, tudo anda no melhor dos mundos”.
O relatório desqualifica as políticas
econômicas que ignoram a globalização financeira e seus fluxos de capitais,
insistindo em medidas sempre voltadas para o curto prazo e destinadas a
“colocar a casa em ordem” (sic).
Desgraçadamente, lamentam os economistas do
BIS, “os fatores financeiros ainda flutuam na periferia do pensamento
macroeconômico”. Mais adiante, o relatório vai insistir nos riscos embutidos no
comportamento dos mercados financeiros.
“Isso tem tudo a ver com a forma de
expansão do crédito. Ao invés de financiar a aquisição de bens e serviços, o
que eleva os gastos e o produto, a expansão do crédito está simplesmente
financiando a aquisição de ativos já existentes, sejam eles ‘reais’ (imóveis
ou empresas) ou financeiros.”
A expansão do crédito financia a aquisição
de ativos já existentes, “reais” ou financeiros
O desvendamento do crédito como riqueza
potencial é fundamental para a compreensão do comportamento dos mercados
financeiros em suas euforias e decepções. Concentrado no aparato dos bancos e
demais instituições financeiras, o crédito é o dinheiro em sua forma mais
desenvolvida como “riqueza potencial”. Os movimentos de expansão e contração do
crédito pertencem à intimidade da dinâmica capitalista e não podem ser
entendidos como distorções ou anomalias, como pretendem muitos “economistas de
mercado”.
No livro Manias, Panics and Crashes, o
economista Charles Kindleberger faz uma autópsia dos processos maníacos que,
inevitavelmente, terminam no colapso de preços e nas crises de crédito. Assim
foi em Amsterdã, no episódio da Tulipomania, um antepassado modesto dos grandes
crashes dos séculos XX e XXI. Entre 1634 e 1637, os investidores holandeses,
muitos de classe média, especularam furiosamente com a possibilidade de
negociar a preços cada vez mais elevados os bulbos de tulipa, que, ademais,
tinham a vantagem de exigir muito pouco ou nada para a sua reprodução. Na base
das expectativas exacerbadas a respeito da evolução do preço das tulipas estava
o crédito bancário e sua capacidade de suportar o avanço da especulação.
Em 1929, o gatilho da Grande Depressão foi
o colapso da Bolsa de Valores de Nova York, determinado por uma tentativa do
Federal Reserve de cessar a supervalorização das ações estimulada por uma
expansão frenética do crédito, gerando expectativas não consistentes sobre o
valor de mercado das empresas, algo muito parecido com 2008, por meio de
instrumentos de mercados de capitais.
Os bancos comerciais mandavam brasa no
financiamento da compra de ações – a chamada alavancagem – e isso foi
acompanhado pelas demais instituições financeiras não bancárias, tais como
bancos de investimento, associações de poupança e empréstimo, fundos de pensão.
Primeiro, é a fantasia do enriquecimento
rápido, sem causa, milagroso, fruto de alguma esperteza inata ou habilidade
singular; segundo, a formação de um consenso sobre o ineditismo das
circunstâncias que parecem justificar a valorização rápida dos papéis (sempre
há uma “nova economia”); terceiro, e muito importante, o envolvimento dos
bancos na especulação, fornecendo crédito abundante para alimentar a euforia;
quarto, o avanço do endividamento dos investidores, disfarçado pelos valores
cada vez mais inflados da riqueza financeira ou imobiliária; quinto, a
“correção de preços”, decepção e quebradeira.
A crise financeira de 2008 é um caso
exemplar de concentração das expectativas, primeiro, na posição altista,
desmontada mais à frente pelo temor de não realização das antecipações. Esse
temor suscita a elevação radical da preferência pela liquidez e interrompe o
funcionamento do mercado ao atirar os ativos em uma espiral descendente.
Publicado na edição n° 1259 de CartaCapital.
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