O Globo
Jogo pesado em torno do PL das Fake News
esgarça uma democracia que precisa se recompor
É triste assistir à guerra em torno do
Projeto de Lei (PL) que regulamenta as redes sociais. Na batalha regulatória,
as empresas, o governo e a Justiça estão pesando a mão, sem observar que o jogo
pesado esgarça uma democracia que passou recentemente por um trauma e precisa
se recompor.
Pouco antes da primeira tentativa
(frustrada) de votar o projeto na Câmara dos Deputados, o Google colocou
um link na capa de seu site de buscas apresentando detalhadamente os motivos
por que se opunha a ele. Não haveria problema algum em a empresa publicar um
post em seu blog ou canal no YouTube.
Mas ela não poderia ter abusado da posição de distribuidora de conteúdo de
terceiros para colocar um conteúdo próprio em destaque. O Google detém mais de
90% do mercado de buscas e é simplesmente o site mais visitado no Brasil.
Buscadores como Google, redes sociais
como Facebook e
sites de vídeos como YouTube não são tratados pela lei como veículos de mídia
porque, em vez de produzirem conteúdos próprios, distribuem os de terceiros. É
justamente por isso que, fora algumas circunstâncias excepcionais, não são
responsáveis pelos conteúdos que distribuem e não têm as obrigações que cabem a
jornais e TVs.
Ao pôr o link na capa, o Google privilegiou um conteúdo dele mesmo, rompendo com a alegada neutralidade que diz ter como distribuidor de conteúdo de terceiros. E não fez só isso. No recurso de autocompletar, o Google sugeria seu próprio texto quando alguém começava a digitar “PL das Fake News” — mesmo seu texto não estando entre as expressões mais buscadas. Também veiculou propaganda contra o PL no Facebook, mas este não classificou a propaganda como política, limitando a divulgação dos dados da campanha.
Alguns dias depois, o Telegram foi
mais longe. Distribuiu uma mensagem apresentando sua posição contra o projeto a
todos os seus usuários no Brasil. A medida foi ainda mais abusiva que a do
Google porque, quando um usuário usava o navegador, tinha a liberdade de clicar
ou não no link. No caso do Telegram, a mensagem foi entregue a todos.
O abuso precisava ser punido, mas o governo
e, sobretudo, a Justiça pesaram a mão. O ministro Flávio Dino corretamente
acionou a Secretaria Nacional do Consumidor, que, entendendo o link como
propaganda abusiva, determinou sua retirada sob pena de multa. Mas não parou na
medida acertada e determinou que a empresa divulgasse “contrapropaganda”,
exigência completamente esdrúxula. Logo em seguida, o Cade — órgão vinculado ao
Ministério da Justiça que zela pela concorrência — abriu investigação para
apurar abuso de posição dominante.
O ministro Alexandre de
Moraes, do STF,
apoiado no controverso inquérito das fake news, convocou o presidente do Google
e da Meta para depor na Polícia Federal, considerando a campanha das empresas
“imoral” e “instigação à manutenção de diversas condutas criminosas praticadas
pelas milícias digitais”, um juízo de valor sobre os argumentos completamente
inapropriado. O deputado Arthur Lira,
presidente da Câmara, encaminhou notícia-crime à Procuradoria-Geral da
República, que solicitou — Moraes depois acatou — abertura de inquérito para
apurar a conduta de Google e Telegram em relação ao PL. No pedido, a PGR diz
que a ação das empresas pode configurar o crime de abolir o Estado Democrático
de Direito, acusação absolutamente descabida!
Em relação ao Telegram, Moraes determinou a
remoção da mensagem contrária ao Projeto de Lei, sob pena de suspender o
aplicativo por 72 horas. Também determinou que o Telegram distribuísse nova
mensagem aos usuários dizendo que “a mensagem anterior do Telegram caracterizou
FLAGRANTE e ILÍCITA DESINFORMAÇÃO [em maiúsculas no despacho] atentatória ao
Congresso Nacional, ao Poder Judiciário, ao Estado de Direito e à Democracia
Brasileira, pois, fraudulentamente, distorceu a discussão e os debates sobre a
regulação dos provedores de redes sociais e de serviços de mensageria privada
(PL 2.630), na tentativa de induzir e instigar os usuários a coagir os
parlamentares”.
Moraes não apenas condenou o abuso do
Telegram ao distribuir mensagem própria a todos os seus usuários, mas,
inapropriadamente, emitiu juízo sobre o conteúdo. Os argumentos do Telegram na
mensagem podem ser equivocados, mas não cabe ao ministro emitir juízo sobre
eles, muito menos usar o poder de punir a empresa para distribuir mensagem
desqualificando argumentos de quem se opõe ao Projeto de Lei. Não se combate
abuso com abuso.
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