O Estado de S. Paulo
É preciso libertar negros e brancos do estado mental da desumanização da escravidão e da perversidade e desfaçatez da discriminação racial
Gustavo Metropolo, branco, ex-aluno da
Fundação Getúlio Vargas, foi condenado por racismo contra seu colega aluno
negro. Pedro Baleotti, branco, ex-aluno do Mackenzie, foi expulso da
universidade e processado por racismo contra negros. William Waack, branco,
jornalista, foi desligado da Rede Globo por conduta de intolerância racial.
Paulo Henrique Amorim, branco, exjornalista da Rede Globo e da Record, foi
condenado pela Justiça pela prática de racismo contra seu colega de profissão,
negro, o jornalista Heraldo Pereira. Nelson Piquet, ex-campeão de Fórmula 1,
foi condenado pela prática de racismo contra seu colega de profissão o piloto
negro Lewis Hamilton. João Alberto de Freitas, Maju Coutinho, Heraldo Pereira,
Seu Jorge, o goleiro Aranha, Taís Araújo, Ludmilla, Cris Vianna, Sheron
Menezes, pessoas comuns e grandes artistas, jornalistas e esportistas negros
vitimados pelo racismo, fisicamente ou pelas redes sociais.
Se alguém pudesse ter dúvidas da perenidade do impacto da escravização dos negros sobre a vida e a realidade dos brasileiros, o arrolamento desse conjunto recente de ocorrências, num click no Google, e a diversidade, a qualidade e a variedade das pessoas negras e brancas envolvidas nelas, como vítimas e algozes da intolerância, podem iluminar o quanto estivemos equivocados e alienados diante da perversidade da escravidão, da iniquidade da abolição e, sobretudo, na atualidade, da destrutividade, dos malefícios e da danosidade do seu substrato mais pernicioso: o ódio, a intolerância e a discriminação racial.
Diferentemente do que é apregoado em
diversos fóruns e ambientes – no mais das vezes com requinte de veracidade –, a
discriminação racial imperante na sociedade brasileira nunca esteve afeta à
condição social vulnerabilizada dos indivíduos, e, como demonstra o arrazoado,
campeia pelos mais diversos espaços sociais, que vão da academia aos espaços
privilegiados da comunicação, dos esportes e das artes, envolvendo na sua teia
pessoas comuns, grandes personalidades, pobres e ricos. Todos emaranhados e
envolvidos na tessitura desta profunda, complexa e extensa rede que aglutina
visões, sentidos, sensações, emoções e sentimentos, e que transitam mecânica e
intermitentemente de um passado histórico para uma realidade iminente,
reproduzindo, reconstruindo e realimentando o passado no presente e
transformando e formalizando o presente no passado.
Foram a necessidade e a exigência da
desumanização dos negros para justificar a normalidade, a legalidade, a
moralidade e a correção ética e religiosa da sua escravização, bem como sua
transformação em mercadoria negociada e vendida em mercados públicos e
privados, que exigiram, em contrapartida e da mesma forma, a desumanização dos
brancos, para transformar em argumento e atitude críveis a normalidade e a
naturalidade da crueldade, da impiedade, da brutalidade, da indiferença e da
cupidez.
Esses sinais invertidos, por contraditórios
e irracionais na sua gênese, bloquearam nos brancos escravocratas a
manifestação da compreensão e da expressão do amor, do afeto, do carinho, da
amizade, da reverência e da cortesia de maneira incondicional e inegociada,
produzindo, como resultado final, a escravização dos negros e o aprisionamento
dos brancos numa tentativa artificial de subverter e modificar a necessária e
imperativa natureza única dos indivíduos humanos: autônomos, livres e iguais,
independentemente de condição ou adjetivação de raça ou cor de pele.
A abolição que se seguiu, sem a elevação e
evolução mental e sem o livramento do espírito da subordinação e acolhimento de
humanidades distintas, libertou fisicamente os negros para, em seguida,
aprisionar brancos e negros no estado mental e subjetivo de discriminação e,
logo, de hierarquização. Brancos continuam acreditando que são os únicos
portadores de humanidade e merecimento, e, por isso, superiores e dignificados.
Da mesma forma, continuam tomados pela ideia da justificação da desumanidade
dos negros e, por isso, sua destituição de aptidão e de mérito. Não há lugar
para o respeito, não há lugar para o reverenciamento, não há lugar para
celebração. A cor da pele distinta tem tornado inimigos até os irmãos e
submetido todos pela discriminação.
É fruto de um rebaixamento mental e de
indigência moral, dirão alguns. É fruto do inconformismo e da aversão do
sentido e natureza da gênese da nossa miscigenação instituída, incontestável e
imutável, dirão outros. E podemos até dizer que é fruto de um destino atávico,
automático, instintivo e incontrolável que subordina e subverte todos os que se
movem no interior de um caldeirão cultural que produz e reproduz automática e
impunemente nas estruturas das instituições sociais o famigerado racismo
estrutural.
Neste dia 13 de maio, ao refletirmos – se
nos lembrarmos disso – sobres os 135 anos da abolição da escravização no nosso
país, restará claro e definitivo que, sem libertar negros e brancos do estado
mental da desumanização da escravidão e da perversidade e desfaçatez da
discriminação racial, permaneceremos todos libertos pela abolição, mas
aprisionados pela indignidade e indigência humana da servidão.
*Advogado, sociólogo, mestre em educação, é Reitor da Universidade Zumbi dos Palmares
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