sábado, 13 de maio de 2023

José Vicente* - Libertos pela abolição, aprisionados pela servidão

O Estado de S. Paulo

É preciso libertar negros e brancos do estado mental da desumanização da escravidão e da perversidade e desfaçatez da discriminação racial

Gustavo Metropolo, branco, ex-aluno da Fundação Getúlio Vargas, foi condenado por racismo contra seu colega aluno negro. Pedro Baleotti, branco, ex-aluno do Mackenzie, foi expulso da universidade e processado por racismo contra negros. William Waack, branco, jornalista, foi desligado da Rede Globo por conduta de intolerância racial. Paulo Henrique Amorim, branco, exjornalista da Rede Globo e da Record, foi condenado pela Justiça pela prática de racismo contra seu colega de profissão, negro, o jornalista Heraldo Pereira. Nelson Piquet, ex-campeão de Fórmula 1, foi condenado pela prática de racismo contra seu colega de profissão o piloto negro Lewis Hamilton. João Alberto de Freitas, Maju Coutinho, Heraldo Pereira, Seu Jorge, o goleiro Aranha, Taís Araújo, Ludmilla, Cris Vianna, Sheron Menezes, pessoas comuns e grandes artistas, jornalistas e esportistas negros vitimados pelo racismo, fisicamente ou pelas redes sociais.

Se alguém pudesse ter dúvidas da perenidade do impacto da escravização dos negros sobre a vida e a realidade dos brasileiros, o arrolamento desse conjunto recente de ocorrências, num click no Google, e a diversidade, a qualidade e a variedade das pessoas negras e brancas envolvidas nelas, como vítimas e algozes da intolerância, podem iluminar o quanto estivemos equivocados e alienados diante da perversidade da escravidão, da iniquidade da abolição e, sobretudo, na atualidade, da destrutividade, dos malefícios e da danosidade do seu substrato mais pernicioso: o ódio, a intolerância e a discriminação racial.

Diferentemente do que é apregoado em diversos fóruns e ambientes – no mais das vezes com requinte de veracidade –, a discriminação racial imperante na sociedade brasileira nunca esteve afeta à condição social vulnerabilizada dos indivíduos, e, como demonstra o arrazoado, campeia pelos mais diversos espaços sociais, que vão da academia aos espaços privilegiados da comunicação, dos esportes e das artes, envolvendo na sua teia pessoas comuns, grandes personalidades, pobres e ricos. Todos emaranhados e envolvidos na tessitura desta profunda, complexa e extensa rede que aglutina visões, sentidos, sensações, emoções e sentimentos, e que transitam mecânica e intermitentemente de um passado histórico para uma realidade iminente, reproduzindo, reconstruindo e realimentando o passado no presente e transformando e formalizando o presente no passado.

Foram a necessidade e a exigência da desumanização dos negros para justificar a normalidade, a legalidade, a moralidade e a correção ética e religiosa da sua escravização, bem como sua transformação em mercadoria negociada e vendida em mercados públicos e privados, que exigiram, em contrapartida e da mesma forma, a desumanização dos brancos, para transformar em argumento e atitude críveis a normalidade e a naturalidade da crueldade, da impiedade, da brutalidade, da indiferença e da cupidez.

Esses sinais invertidos, por contraditórios e irracionais na sua gênese, bloquearam nos brancos escravocratas a manifestação da compreensão e da expressão do amor, do afeto, do carinho, da amizade, da reverência e da cortesia de maneira incondicional e inegociada, produzindo, como resultado final, a escravização dos negros e o aprisionamento dos brancos numa tentativa artificial de subverter e modificar a necessária e imperativa natureza única dos indivíduos humanos: autônomos, livres e iguais, independentemente de condição ou adjetivação de raça ou cor de pele.

A abolição que se seguiu, sem a elevação e evolução mental e sem o livramento do espírito da subordinação e acolhimento de humanidades distintas, libertou fisicamente os negros para, em seguida, aprisionar brancos e negros no estado mental e subjetivo de discriminação e, logo, de hierarquização. Brancos continuam acreditando que são os únicos portadores de humanidade e merecimento, e, por isso, superiores e dignificados. Da mesma forma, continuam tomados pela ideia da justificação da desumanidade dos negros e, por isso, sua destituição de aptidão e de mérito. Não há lugar para o respeito, não há lugar para o reverenciamento, não há lugar para celebração. A cor da pele distinta tem tornado inimigos até os irmãos e submetido todos pela discriminação.

É fruto de um rebaixamento mental e de indigência moral, dirão alguns. É fruto do inconformismo e da aversão do sentido e natureza da gênese da nossa miscigenação instituída, incontestável e imutável, dirão outros. E podemos até dizer que é fruto de um destino atávico, automático, instintivo e incontrolável que subordina e subverte todos os que se movem no interior de um caldeirão cultural que produz e reproduz automática e impunemente nas estruturas das instituições sociais o famigerado racismo estrutural.

Neste dia 13 de maio, ao refletirmos – se nos lembrarmos disso – sobres os 135 anos da abolição da escravização no nosso país, restará claro e definitivo que, sem libertar negros e brancos do estado mental da desumanização da escravidão e da perversidade e desfaçatez da discriminação racial, permaneceremos todos libertos pela abolição, mas aprisionados pela indignidade e indigência humana da servidão.

*Advogado, sociólogo, mestre em educação, é Reitor da Universidade Zumbi dos Palmares

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