Com solidez técnica, no STF Dino deve deixar as polêmicas
O Globo
Sabatina precisa se guiar por aspectos
jurídicos, sem que prevaleçam as controvérsias de natureza política
A indicação do ministro da Justiça e
Segurança Pública, Flávio Dino,
para o cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal (STF)
encerra quase dois meses de expectativa. Embora fosse uma escolha esperada —
Dino sempre liderou a bolsa de apostas —, o presidente Luiz Inácio Lula da
Silva manteve o suspense quanto pôde. Jamais havia demorado tanto para fazer
uma indicação. O nome de Dino não era unânime entre os petistas, mas contava
com apoio dentro e fora do STF. No final, prevaleceu a preferência do
presidente da República, como manda a Constituição.
Credenciais para ocupar o posto não faltam a Dino. Ele é autor de livros sobre Direito e foi juiz federal por mais de dez anos, período em que chegou a presidir a Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe). Deixou a magistratura para entrar na política e tornou-se deputado federal pelo PCdoB. Em 2014, foi eleito governador do Maranhão, estado que governou por dois mandatos e pelo qual se elegeu senador no ano passado. Licenciou-se do cargo para assumir a pasta da Justiça.
No comando do ministério, viveu uma
dualidade. Tecnicamente, sua atuação esteve acima da média. Desempenhou papel
fundamental no combate ao golpismo do 8 de Janeiro, promoveu avanços na
investigação do assassinato de Marielle Franco e na atuação da Polícia Federal
contra o crime organizado. Politicamente, porém, envolveu-se num sem-número de
disputas que contribuíram para consolidar uma imagem de polemista.
Enfrentou parlamentares de oposição em
sessões do Congresso, criou atritos com o presidente da Câmara, entrou em
embate com integrantes da CPI dos Atos Golpistas em torno das imagens gravadas
por câmeras de segurança (liberadas só depois de ordem do STF) e ficou exposto
na crise de segurança pública que atingiu os estados da Bahia e do Rio de
Janeiro. Tornou-se uma estrela das redes sociais, pronto a opinar em toda sorte
de assunto, da prisão de suspeitos de terrorismo às mudanças climáticas.
Bloqueou quase uma centena de seguidores e se tornou alvo predileto do
bolsonarismo.
É natural que a presença de oposicionistas na
Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado traga certo ar belicoso para
a sabatina de Dino. Mas não deveria ser esse o espírito da avaliação dos
senadores sobre a indicação. A função da sabatina é descobrir se ele satisfaz
às exigências constitucionais para ocupar o cargo: notório saber jurídico e
reputação ilibada. Os senadores têm de fazer isso por meio de uma arguição
robusta, mas as questões devem ser guiadas pelos aspectos técnicos e jurídicos.
Não devem se deixar influenciar pelas inclinações ideológicas, pela verve de
Dino ou por vendetas pessoais.
Dino está longe de ser uma unanimidade mesmo
entre os governistas. Mas suas qualificações são inegáveis. É pouco provável
que não consiga reunir os 41 votos necessários para ocupar a cadeira do Supremo
aberta pela aposentadoria da ministra Rosa Weber. Uma vez nela, seu desafio
será demonstrar a todos ter deixado de atuar como um político para voltar a
agir com o conhecimento, a serenidade, o destemor e, sobretudo, a
imparcialidade exigidos pelo cargo para o qual foi aprovado em concurso pela
primeira vez aos 26 anos — o de juiz.
Javier Milei emite sinais positivos de
moderação antes da posse
O Globo
Presidente eleito argentino adota tom
pragmático no campo econômico e faz gesto de reaproximação com Brasil
Os primeiros passos do presidente eleito
argentino Javier Milei têm
sido, até o momento, positivos. Passada apenas uma semana do segundo turno em
que derrotou o peronista Sergio Massa por vantagem expressiva com um discurso
ultraliberal, o populista Milei surpreendeu ao descer rapidamente do palanque.
Aparentemente preocupado com a tarefa árdua de formar governo e aparar arestas
criadas na campanha, avançou na economia e nas relações exteriores.
No domingo, embarcou para os Estados Unidos
com Luis Caputo, economista ligado ao ex-presidente Mauricio Macri cotado para
assumir o Ministério da Economia. Caputo é crítico de ideias descabidas como a
dolarização e a extinção do Banco Central. Os dois manterão encontros com
autoridades econômicas dos Estados Unidos e representantes do Fundo Monetário
Internacional (FMI), credor da dívida de US$ 43 bilhões com a Argentina.
A preocupação imediata é uma parcela que vence no início de 2024.
Também no domingo, o governo eleito deu
sinais de moderação em relação ao Brasil. A futura
chanceler, Diana Mondino, desembarcou em Brasília para encontrar o ministro das
Relações Exteriores, Mauro Vieira. Em mãos, trouxe uma carta em que
Milei convida o presidente Luiz Inácio Lula da
Silva para sua posse, em 10 de dezembro. “Sabemos que nossos dois países estão
estreitamente ligados pela geografia e história e, a partir disso, desejamos
seguir compartilhando áreas complementares, como integração física, comércio e
presença internacional, que permitam que toda essa ação conjunta se traduza,
para os dois lados, em crescimento e prosperidade”, diz o texto.
O fato de Mondino ter escolhido o Brasil como
destino da primeira viagem internacional depois de indicada ao cargo e o teor
da carta ajudaram a desarmar os ânimos. Na campanha, Milei se aproximou de Jair
Bolsonaro, não perdeu a oportunidade de chamar Lula de “comunista” e de
criticar o Mercosul. Lula deu sinais indiretos, mas claros, de apoio ao
peronista Massa. Contados os votos, restou a dúvida se haveria um gesto de
reconciliação com o governo brasileiro. Dado o primeiro passo, Lula e o
Itamaraty não deveriam desperdiçar a oportunidade de marcar presença na posse
em Buenos Aires.
A eventual ida de Bolsonaro não é motivo para
Lula declinar o convite. O ex-presidente não tem mais nenhum poder para definir
o relacionamento do Brasil com seu principal sócio no Mercosul. Essa
prerrogativa foi concedida a Lula em 2022 pelas urnas. Espera-se que ele a
exerça em sua plenitude. Na posse de Lula, o presidente uruguaio Luis Lacalle
Pou, de centro-direita, foi a Brasília acompanhado dos ex-presidentes José
“Pepe” Mujica, de esquerda, e Julio María Sanguinetti, de centro, demonstrando
que relações entre países não devem assumir cores ideológicas. De Bolsonaro,
que não passou a faixa a Lula e saiu do país dois dias antes da posse, não dá
para esperar o mesmo comportamento republicano dos estadistas uruguaios. Se
comparecer à posse, o incomodado deve ser apenas ele.
Envelhecimento da população desafia a
educação dos jovens
Valor Econômico
Se o acesso dos alunos ao ensino médio
técnico profissional for triplicado, o PIB brasileiro poderia aumentar até
2,32%
Quando o IBGE divulgou, há um mês, o
envelhecimento da população brasileira constatado pelo Censo de 2022, o foco
principal das análises de especialistas e autoridades foi a preocupação com as
implicações na saúde. Todos alertaram para a necessidade de expansão do
atendimento especializado, dada a maior propensão a problemas circulatórios,
neurológicos e oncológicos dos idosos. Mas o desafio tem muitas faces.
O resultado do Censo 2022 surpreendeu. Depois
da pandemia da covid-19 se esperava a redução da população mais velha. Mas foi
constatado o aumento do número de pessoas com mais de 65 anos, que passou de
7,4% da população total em 2010 para 10,9% dos 203,1 milhões de brasileiros de
2022, totalizando 8,1 milhões a mais. Em pouco mais de uma década, o
crescimento dessa faixa etária foi de 57,4%. No outro extremo, o percentual de
habitantes com zero a 14 anos caiu de 24,1% para 19,8%, o equivalente a uma diminuição
de 5,8 milhões de pessoas, ou 12,6%. A maior parte da população está na faixa
de 15 a 64 anos, com 69,3% do total em 2022 em comparação com os 68,5% de 2010.
Visto de outro ângulo, o índice de
envelhecimento também fica evidente: o número de pessoas com 65 anos ou mais de
idade, em relação a um grupo de 100 crianças de zero a 14 anos, ficou em 55,2
no ano passado, quase o dobro dos 30,7 do Censo de 2010, o maior da série
histórica, iniciada em 1940. A aceleração entre 2010 e 2022 também foi a mais
forte da série.
José Eustáquio Diniz, ex-professor da Escola
Nacional de Ciências Estatísticas do IBGE, projeta que o Brasil vai envelhecer
bem mais rapidamente do que a França, por exemplo, e levar um quarto do tempo
do país europeu para chegar a 28% da população com mais de 65 anos. A França
vai atingir essa marca em 2070, e o Brasil, em 2062, o que revela a velocidade
da transição demográfica brasileira (Valor, 30/10).
Há nuances pelo país. As regiões Norte e
Nordeste são as mais jovens, com 25% e 21% da população com até 14 anos,
respectivamente. As regiões mais velhas são Sudeste e Sul, com porcentuais de
idosos de 12%. A idade mediana também reflete esse quadro: ela é de apenas 26
anos em Roraima e chega a 38 no Rio Grande do Sul.
De toda forma, a constatação é que o bônus
demográfico ficou para trás, de acordo com especialistas, o que exige
providências. A sensação que fica é que o próprio governo se surpreendeu e
agora corre atrás para cobrir as lacunas. Em artigo no Valor (24/11),
o presidente da Fundação Itaú, que congrega o Itaú Social, Itaú Educação e
Trabalho e Itaú Cultural, Eduardo Saron, jogou o olhar para a necessidade de se
preparar a população mais jovem para a transição etária, uma vez que terá a
tarefa cuidar dos mais velhos e de financiar seu atendimento de saúde e
previdenciário.
O tamanho do desafio pode ser medido pelo
expressivo grupo de jovens de 18 a 24 que não estudam nem trabalham, os
chamados nem-nem. De 37 países analisados pela Organização para a Cooperação e
Desenvolvimento Econômico (OCDE), o Brasil é o segundo com maior proporção de
nem-nem depois da África do Sul, com 36% dessa faixa etária.
A parcela dos jovens que irá sustentar a
transição demográfica só estará pronta para a tarefa com investimento
consistente em educação, salienta Saron. Vários estudos apontam para esse
caminho. Um deles, feito pelo Insper a pedido do Itaú Educação e Trabalho,
assegura que se o acesso dos alunos ao ensino médio técnico profissional for
triplicado, o PIB brasileiro poderia aumentar até 2,32%, graças à maior
empregabilidade e ganhos salariais dos profissionais. Estima-se que o salário
de quem cursou o técnico é 12% superior ao de quem fez apenas o médio.
Esse é um dos motivos pelos quais a procura
por esses cursos é alta. Mas a oferta é baixa. Na verdade, o Brasil está
distante da meta do Plano Nacional de Educação, que é ter 4,8 milhões de vagas
no ensino técnico até 2024. Em 2022, só 2 milhões eram matriculados no técnico
(O Globo, 27/11). Para dobrar a oferta de ensino técnico seria preciso reforçar
os investimentos públicos destinados ao ensino médio dos atuais 1,18% do PIB
para 1,27% e chegar a 1,35% para triplicar as cadeiras, projeta o Insper. Em
consequência, apenas 8% dos estudantes que concluem o ensino médio no Brasil se
formaram pelo técnico, em comparação com 37% nos países da OCDE.
A ampliação da educação profissional e
tecnológica é tida como prioridade pelo Ministério da Educação, mas não foi bem
abordada na reformulação do ensino médio proposta pelo governo Lula. O projeto
estabeleceu 2,1 mil horas para disciplinas básicas e 900 horas para as
técnicas, ao longo de três anos. No ensino médio regular, a formação básica
ficou com 2,4 mil horas. Cursos na área de tecnologia da informação e saúde,
que estão entre as carreiras mais promissoras do futuro, inclusive pelo
envelhecimento da população e pela exigência de maior produtividade, demandam
pelo menos 1,2 mil horas.
O MEC, por sua vez, pede aos Estados que invistam em ensino integral para oferecer modalidades técnicas que demandam maior carga horária. Esse investimento é vital: o estudo do Insper mostra que traz retorno futuro para a economia e para a sociedade.
Viés de seleção
Folha de S. Paulo
Hipertrofia do STF, onde atua também
procurador-geral, incentiva sua politização
Pesquisadores por vezes deparam com
desequilíbrios em suas amostras estatísticas, quando elas apresentam um perfil
demográfico distinto do da população a ser representada e estudada. A essa
anomalia se dá o nome de viés de seleção.
Entre as causas do problema costumam estar
estímulos que concorrem para o recrutamento desproporcional de certos grupos.
Mutatis mutandis, o processo de escolha de ministros do Supremo Tribunal
Federal padece de viés de seleção.
Acercam-se da nomeação mais pessoas enredadas
no jogo da política partidária —e na teia das relações pessoais do presidente
da República— do que seria desejável para a arquitetura institucional.
Não foge a essa regra a indicação
do titular da pasta da Justiça, Flávio Dino (PSB-MA), para a vaga
aberta pela aposentadoria de Rosa Weber, após quase dois meses de imotivada
demora do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Embora egresso da magistratura federal, Dino
há mais de 15 anos dedica-se apenas à política. Chefiou a Embratur na gestão
Dilma Rousseff, elegeu-se governador do Maranhão em 2014 e conquistou um novo
mandato quatro anos depois.
Se for aprovado pela maioria dos senadores,
será o primeiro ex-governador a atuar como ministro do tribunal constitucional
brasileiro. Não foi por seus atributos judicantes que foi ungido por Lula.
Numa corte cujos integrantes tiveram poderes
e influência hipertrofiados nos últimos anos, tudo conspira para que a
fidelidade ao grupo político e à pessoa do presidente que faz a nomeação salte
à frente como critério de indicação.
Basta comparar com as escolhas da primeira
passagem de Lula pelo Planalto para notar como a lealdade política tornou-se
requisito preponderante. Passaram para o segundo plano as preocupações com a
qualidade da obra jurídica e a diversidade
de gênero e de origens sociais dos candidatos.
Também se tornou
menos mediada a escolha do procurador-geral da República. O
nomeado de Lula, Paulo Gonet, não constava de nenhuma lista votada por seus
pares. Emergiu de obscuras e intensas pressões de bastidores das quais não se
furtaram ministros da corte suprema. A parte que julga fez lobby para definir a
parte que acusa.
Desse modo a politização na cúpula da
operação do Direito no Brasil tende a se perpetuar. O sistema seleciona
vocacionados para a defesa de um líder político, os escolhidos na corte atuam
desabridamente para ampliar suas prerrogativas, e os líderes do futuro são
estimulados a indicar quem os proteja.
Desvirtua-se nessa espiral de disputa por
poder o papel precípuo do Supremo, que é o de arbitrar com equidistância e
fidelidade à Carta as disputas cruciais da República.
Cuidado com a dengue
Folha de S. Paulo
Sorotipo 3 no país eleva risco de epidemia
grave; urge incorporar vacina ao SUS
Ciência e estatísticas são bons conselheiros
em políticas públicas. Com elas, é possível criar estratégias eficientes e se
antecipar a problemas. A dengue é um deles.
Segundo a Organização Mundial da Saúde, as
taxas da doença se multiplicaram por oito em todo o mundo desde o ano 2000
devido a três fatores: mudanças climáticas, aumento de circulação de pessoas e
urbanização crescente.
Com o fenômeno meteorológico El Niño e o
aquecimento global, a OMS emitiu alerta para alta de casos em 2023 na América
Latina e na Ásia e disparada nos próximos anos no sul dos EUA e da Europa e em
novas regiões da África.
No Brasil, desde 2000, o número de casos só
cresce, passando de 4,5 milhões na primeira década do século para 9,5 milhões
na seguinte. Só o primeiro semestre deste ano já registra 1,4 milhão de casos,
ante 1,5 milhão em todo 2022.
Ainda mais preocupante, foram registrados 8
casos do sorotipo 3 neste ano —4 deles neste
mês em São Paulo. O vírus da dengue tem 4 sorotipos e o 3 não causa
epidemias aqui há mais de 15 anos.
O problema é que o indivíduo só fica
imunizado para o tipo que já contraiu. Quando é contaminado por um novo, pode
desenvolver sintomas mais graves que levam à hospitalização e até à morte. Se a
população está há muito tempo sem contato com o tipo 3, há risco de
epidemia severa em 2024.
A vacina japonesa Qdenga age contra os 4
sorotipos e foi aprovada para venda no país pela Anvisa em março, mas com
preços que variam entre R$ 300 e R$ 800. Atualmente, está presa num labirinto
burocrático para chegar ao SUS.
A pasta da Saúde diz aguardar informação da
empresa Takeda para concluir o processo, mas até 8 de
novembro a farmacêutica afirmava não ter recebido solicitação.
Após receber os dados, a comissão responsável
pela introdução de novas drogas no SUS ainda tem 180 dias para deliberar.
Em março, o ministério anunciou a instalação
de um Centro de Operações de Emergências de Arboviroses para controle e redução
de casos graves e óbitos em parceria com estados e municípios.
A medida é válida, mas é preciso agilizar a incorporação da vacina no SUS. Não se trata de panaceia, mas de uma das frentes de combate à doença preconizadas pela OMS —ao lado de monitoramento de casos, incremento da estrutura das redes de saúde e universalização do saneamento básico.
Justa desconfiança sobre o BNDES
O Estado de S. Paulo
Petistas já o usaram para favorecer
empreiteiras camaradas e regimes companheiros, e por isso é justo suspeitar da
volta dos financiamentos no exterior, mas não se deve proibi-los
O calafrio é inevitável. A tentativa do
governo de Lula da Silva de oficializar o retorno dos financiamentos do Banco
Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para obras de
empreiteiras brasileiras no exterior, por meio de projeto de lei recentemente
enviado ao Congresso, faz lembrar os tempos tenebrosos em que o banco foi usado
pelos governos petistas para favorecer empreiteiras camaradas e regimes
companheiros.
Desde o início do ano tramitam na Câmara
quatro projetos de deputados de oposição propondo justamente o contrário:
proibir o BNDES de fazer empréstimos para serviços no exterior.
Os parlamentares citam casos escandalosos,
como o do Porto de Mariel, construído pela Odebrecht em Cuba sob a alegação de
que serviria como espécie de escala estratégica para as exportações
brasileiras. Com financiamento de US$ 638 milhões do BNDES, o porto está
prestes a completar dez anos. Apenas uma parcela mínima do empréstimo foi paga,
Cuba ainda deve US$ 520 milhões, e o prometido uso pelo Brasil também não se
concretizou.
O caso cubano é apenas um dos tantos exemplos
de desvirtuamento da função do BNDES, e faz sentido que se desconfie das
intenções do governo petista ao restabelecer esse tipo de financiamento do
banco. No entanto, também não é desejável que se proíba totalmente essa atuação
do BNDES, porque o financiamento à exportação de bens e serviços de engenharia
no exterior é necessário. O programa, lançado em 1998, ainda no governo
Fernando Henrique Cardoso, estimula empresas nacionais e gera empregos no
Brasil. Se bem formulados – e, sobretudo, se a avaliação de risco for real, e
não movida por considerações ideológicas –, esses contratos são quase sempre
vantajosos para o País.
Agora, o Tribunal de Contas da União (TCU)
participou do desenvolvimento da nova proposta em conjunto com o corpo técnico
do BNDES. Proibiu, por exemplo, novos financiamentos a obras em países
inadimplentes com o Brasil. A intenção é criar uma espécie de marco
regulatório, como disse ao Broadcast/Estadão o diretor de Comércio Exterior do
banco, José Gordon. O uso de padrões internacionais utilizados pela Organização
Mundial do Comércio (OMC) e pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento
Econômico (OCDE) dá à ferramenta um aspecto mais moralizador.
O ponto negativo é justamente o vício da
gestão petista, que naturalmente cerca de suspeitas as iniciativas desse tipo.
O dinheiro público destinado a promover o desenvolvimento não deve, sob
qualquer pretexto, servir de incentivo a projetos político ideológicos, não
importa quais sejam. Frisando queéo governo federal que estabelece as operações
por meio de sua administração direta eque as condições de financiamento são
ditadas pelo BNDES, as dúvidas sobre que tipo de tratamento será dado a esses
empréstimos, desde o prazo até os juros, são muitas.
E em nada ajudam declarações como adop
residente do banco, Aloizio Mercadante, desdenhando da consequência dos calotes
da Venezuela, de Cuba e de Moçambique, que, juntos, somam US$ 1,12 bilhão, ou
cerca de R$ 5,7 bilhões pelo câmbio atual. Em outubro, quando participava de um
fórum em Paris, ele reagiu com irritação ao ser questionado sobre a
inadimplência desses empréstimos: “Vocês (jornalistas) ficam com esse
nhenhenhém, que é uma coisa absolutamente irrelevante para o BNDES”.
Ao contrário do que disse o sr. Mercadante,
nenhuma inadimplência é irrelevante para banco nenhum, sobretudo para o BNDES,
um banco público de fomento que tem como único acionista o Tesouro Nacional. No
caso específico de financiamento de serviços no exterior, o Fundo de Garantia à
Exportação (FGE), vinculado ao Ministério da Fazenda, assume eventuais calotes.
Ou seja, o dinheiro para arcar com o prejuízo de financiamentos malfeitos é dos
contribuintes, tenham ou não qualquer simpatia por Cuba, Venezuela e quejandos.
Os conflitos da indústria de Inteligência
Artificial
O Estado de S. Paulo
Governança conturbada da mais icônica empresa
de IA alerta para a urgência de um quadro regulatório estabelecido por
representantes eleitos e fiscalizado por agências independentes
O ano de 2023 será lembrado como o “momento
Sputnik” da corrida pela Inteligência Artificial (IA). O análogo do satélite
soviético é o ChatGPT, com quem dezenas de milhões de pessoas “conversam” todos
os dias, e a face humana dessa revolução é o CEO da sua desenvolvedora, a
OpenAI, Sam Altman.
Nos últimos dias, o mundo acompanhou atônito
a odisseia de Altman. No dia 17, o conselho da OpenAI o defenestrou alegando
que ele “não era consistentemente transparente” – sem que a alegação fosse ela
mesma consistentemente transparente. No dia 19, a Microsoft, com participação
de 49% na empresa, convidou Altman a liderar uma divisão de IA. Mas, após um
motim dos funcionários e pressões dos investidores, no dia 21 um novo conselho
foi criado e Altman foi reinstalado.
O psicodrama corporativo expôs dilemas
profundos no mundo da IA, personificados, como disse a revista The Economist,
nos “doomers”e “boomers”.
Para os primeiros, o desenvolvimento da IA
sem freios e contrapesos amplia os riscos de que ela leve à perdição (doom) da
humanidade. Para os segundos, a aceleração desenfreada (boom)
rumo às tecnologias mais eficientes gerará
naturalmente as mais benéficas. A saga da OpenAI é como um microcosmo desse
embate. Ela foi criada em 2015 como um laboratório não lucrativo para
desenvolver uma “superinteligência” segura. Mas logo ficou claro que para isso
precisaria de investimentos massivos, e uma subsidiária comercial foi criada
para monetizar ferramentas de IA.
Essa estrutura híbrida encarna conflitos
intrínsecos não só da indústria de IA, como das indústrias de tecnologias
digitais e de qualquer outra. O desenvolvimento de produtos depende de
investimentos e, quanto maior a perspectiva de lucro, maiores os investimentos.
Ganhos privados não são incompatíveis com o bem comum, mas eventualmente podem
ser. Assumindo que a “mão invisível” do mercado baste para gerar produtos
melhores e mais baratos, ela não garante que servirão ao interesse comum. Por
maior que seja a procura e por mais lucrativa que seja a oferta de um produto,
isso não significa que ele seja benéfico e deva ser lícito. Aqui entra a mão
visível do Estado. Para a maioria dos produtos, essa mão só intervém para
garantir direitos elementares do consumidor. Mas, quanto maiores os riscos (por
exemplo, na indústria farmacêutica ou aeronáutica), maior é sua atuação.
Os ambientalistas levaram décadas para
conscientizar a humanidade dos riscos das emissões desreguladas de carbono. Com
a IA é diferente. Muito antes dos rudimentos da computação se materializarem em
máquinas, a ficção científica já disseminara pavores apocalípticos no
imaginário popular. Ninguém ignora suas ameaças. Neste ano, lideranças públicas
e tecnológicas – incluindo Altman – advertiram que “mitigar os riscos da IA
deve ser uma prioridade global junto com outros riscos em escala social como
pandemias e guerra nuclear”. A questão é como essa mitigação deve ser
formalizada em regras, como devem ser aplicadas e quem as aplicará.
Cotejando propostas de entidades públicas e
privadas, o instituto Future of Life identificou três áreas de ação para as
autoridades: estabelecer registros de experimentos gigantes em IA, mantidos por
agências independentes; construir sistemas de licenciamento para fazer com que
laboratórios provem que seus sistemas são seguros antes de empregá-los; e tomar
medidas para garantir que desenvolvedores respondam legalmente pelos danos de
seus produtos. Assim como a cooperação internacional logrou delimitar a clonagem
e banir armas biológicas, a comunidade global deveria criar uma agência
internacional de auditoria da IA.
Quanto maior a quantidade e a potência dos
veículos da indústria automobilística, mais sofisticados devem ser seus freios
e mecanismos de segurança, e mais importante é um Estado ativo para desenhar e
aplicar regras de tráfego e prover boa infraestrutura. Analogamente, as
empresas de IA poderão se mover mais rápido se suas máquinas tiverem freios
eficientes para cada usuário e se submeterem a bons regulamentos em prol da
coletividade.
Os gestos de Milei
O Estado de S. Paulo
Carta de Javier Milei a Lula e visita da
futura chanceler argentina indicam disposição ao diálogo
A visita da futura ministra das Relações
Exteriores da Argentina, Diana Mondino, ao chanceler Mauro Vieira abre a
perspectiva de superação de um mau começo nas relações entre os governos de
Javier
Milei e de Lula da Silva. Nessa primeira
conversa, no último dia 26 no Itamaraty, Mondino teve o cuidado de levar uma
carta do presidente argentino eleito a Lula, na qual oficialmente expressou o
desejo de tê-lo presente na cerimônia de sua posse, em 10 de dezembro. Ao
destacar na missiva sua intenção de realizar um “trabalho frutífero” e a
“construção de laços” com o Brasil, Milei sinaliza que “El Loco”, o personagem
que ganhou a eleição, talvez tenha dado lugar a alguém bem menos
desequilibrado.
Mesmo que não derive de sua própria
convicção, a mensagem não deixa de expressar um bem-vindo entendimento de seu
entorno político. É o que importa.
Mondino não omitiu seu esforço para desfazer
os atritos causados por insultos pessoais de Milei a Lula e pelas suas
declarações extemporâneas contra o comércio com o Brasil e a permanência da
Argentina no Mercosul – todos turbinados pelo recente convite do argentino ao
ex-presidente Jair Bolsonaro, adversário figadal de Lula, para comparecer a sua
posse. Ao ressaltar a importância conferida pelo governo de Milei à conclusão
do tratado de livre comércio entre o bloco sul-americano e a União Europeia
(UE), a futura chanceler aplacou temores crescentes em Brasília de uma guinada
unilateral na política comercial argentina. Mas não chegou a sugerir um diálogo
azeitado entre Lula e Milei, o que ninguém de fato espera. “Uma coisa é a
crítica à ideologia; e outra coisa, à pessoa. Temos de separar o Estado de
governo e de pessoas. A parceria continuará da melhor forma e o mais
rapidamente possível”, afirmou ela.
Tais mensagens denotam a compreensão de
Mondino e da equipe de transição de governo sobre o grau elevado de integração
entre as economias de seu país e do Brasil e a importância do diálogo e da
cooperação bilateral para o êxito do futuro programa de governo argentino. Já é
um bom começo, dado o cenário previsto de animosidade permanente. A
receptividade do Itamaraty às escusas, ainda que implícitas, mostrou-se
igualmente significativa e alinhada ao interesse brasileiro. “O que foi dito na
campanha é uma coisa, o que acontece durante o governo é outra”, afirmou
Vieira, em claro sinal de que novos insultos, a partir de agora, terão outro
peso.
Seria ingênuo imaginar que as reações do governo brasileiro às fanfarronices de Milei não tenham surtido efeitos na reacomodação do tratamento ao Brasil. As movimentações de Lula da Silva com líderes europeus em prol da conclusão do acordo Mercosul-UE antes da posse de Milei não passaram despercebidas em Buenos Aires. Está claro que Milei parece ter se dado conta – ou, o que é mais provável, foi convencido pelo grupo político de centro-direita que foi decisivo para sua vitória – de que a Argentina não pode se dar ao luxo de brigar com seus principais parceiros comerciais.
COP28 entre a vida e a morte do planeta
Correio Braziliense
Nas mãos dos governantes está a solução para
preservar e garantir a perenidade da vida no planeta. Cabe aos cidadãos, em
todas as partes do mundo, pressioná-los pela decisão correta
Nos últimos 40 anos, as mudanças do clima,
com o aquecimento e a ocorrência de eventos extremos no planeta, tornaram-se
mais acentuadas. Não faltaram alertas sobre os impactos das alterações na vida
de todos os seres da Terra. A voz dos cientistas, dos climatologistas e dos
ambientalistas não foi, na devida medida, considerada pelas sociedades e pelos
governantes. Manteve-se o nível de exploração, cada vez maior, dos recursos
naturais, ignorando as consequências do comportamento predatório, sem preocupação
de promover ações compensatórias, como a recuperação das áreas afetadas pelas
atividades voltadas aos mais diferentes setores da economia.
Na próxima quinta-feira, dia 30, em Dubai, a
maior cidade dos Emirados Árabes, ao sul do Golfo Pérsico, começará a 28ª
Conferência das Partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças
Climáticas (COP28) e se estenderá até 12 de dezembro. Estarão reunidos líderes
dos países que assinaram o acordo climático original da Organização das Nações
Unidas (ONU), em 1992, durante a Cúpula da Terra, no Rio de Janeiro. Ao longo
dessas décadas, os esforços e cumprimento de metas foram pífios. Isso se comprova
com o agravamento contínuo dos fenômenos climáticos extremos que afetam os
países e aprofundam as desigualdades socioeconômicas, deixando um lastro de
fome, miséria e perdas de vidas em todos os continentes.
A expectativa é de que não será um debate
fácil, ante os conflitos de interesses econômicos que estarão em jogo. Como
construir um acordo para eliminar a emissão de gases de efeito estufa que
aceleram o aquecimento global quando o petróleo é a base da economia dos
Emirados Árabes e de outros países?
Recente relatório da Oxfam — Igualdade
Climática: um Planeta para os 99% — mostra que "o 1% mais rico da
população mundial produziu tanta poluição em 2019 quanto cerca de 5 bilhões de
pessoas (dois terços da humanidade)". O estudo avalia que "as
descomunais emissões" dessa parcela mais rica em 2019 "são
suficientes para causar 1,3 milhão de mortes relacionadas ao calor entre 2020 e
2100".
Para alguns especialistas e observadores, os
dados revelam uma incongruência em relação às decisões do Acordo de Paris,
subscrito por 195 países em 2015, de redução em 43% das emissões de gases de
efeito estufa por meio da eliminação das fontes fósseis de energia — petróleo,
gases e queima de carvão —, como chave para conter o aquecimento global. Sem
isso, avaliam, seria trafegar rumo ao colapso do planeta.
Tem sido alto o preço pago pela humanidade
pela indiferença e pelo descaso com os alertas. No Brasil, onde o negacionismo
em relação à ciência é bem acentuado, ocorreram episódios gravíssimos. Em
setembro último, no Rio Grande do Sul, os ciclones causaram danos imensuráveis
em 100 cidades, deixando centenas de famílias desabrigadas e 47 mortes.
Novembro chegou com uma onda de calor. Em algumas cidades, como o Rio de
Janeiro, a sensação térmica foi superior a 58ºC. Em todas as regiões do país,
não foi diferente, provocando um desconforto antes não sentido pelas pessoas,
levando várias à hospitalização e até à morte.
No setor produtivo, a agricultura, sobretudo
o agronegócio, vê as projeções de colheita e faturamento frustradas, seja pela
estiagem, seja pelas chuvas torrenciais. Os dois extremos — seca e excesso de
água — vão repercutir na produção de alimentos e na elevação do custo de vida
em um Brasil com mais de 21,1 milhões de famintos — pouco mais de 10% da
população do país. Mais uma vez, o pantanal mato-grossense arde em chamas, com
perdas inestimáveis do patrimônio natural que impactarão, como sempre ocorre,
outros biomas.
Todos estudos e projeções indicam e reforçam os alertas do passado de que a vida na Terra depende da eliminação dos gases fósseis e de uma virada radical no sentido de adotar as fontes limpas de energia — solar, eólica, hídrica —, e de estancar os desmatamentos e quaisquer outras atividades hostis ao patrimônio natural. Nas mãos dos governantes está a solução para preservar e garantir a perenidade da vida no planeta. Cabe aos cidadãos, em todas as partes do mundo, pressioná-los pela decisão correta.
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