Folha de S. Paulo
O domínio do centrão nas eleições deste ano, sustenta o autor, aponta que o sistema político brasileiro, depois de um período de forte instabilidade e polarização extrema, passa por um processo de reequilíbrio, marcado por um presidencialismo de coalizão fraco e níveis menores de radicalidade ideológica
Os resultados das eleições municipais deste
ano confirmam que o sistema político brasileiro passa por um processo de
reequilíbrio em torno de novas bases ideológicas e de governabilidade. Bases
distintas daquelas que definiram o período de estabilização do regime
democrático entre os anos 1990 e 2010, assentadas sobre um eixo ideológico de
centro-esquerda e do presidencialismo
de coalizão forte ou imperial como modelo de governabilidade,
que levava a reboque o chamado centrão.
Há cerca de dez anos, o eixo ideológico começou a se deslocar para a centro-direita, sustentado por partidos de centro-direita e direita, que deixaram a periferia do sistema para se tornar seu núcleo de estabilidade e controle. O modelo de governabilidade, perdido ou desarranjado durante aqueles anos de transição, parece agora se estabilizar na forma de um presidencialismo de coalizão fraco ou, conforme seus críticos, um "parlamentarismo bastardo".
Essas mudanças decorrem de uma crise de
legitimidade do sistema representativo, que estalou nas jornadas de 2013, se
aprofundou com o impeachment
de Dilma Rousseff (PT) em 2015 e culminou, em 2018, na eleição
de Jair Bolsonaro (à época no PSL). Crise gerada pela emergência de uma nova
direita que não se percebia no sistema político da República de 1988 e o
hostilizava.
Embora Bolsonaro representasse a nova direita
radical, que canalizava o ressentimento popular contra o sistema e o suposto
establishment, o centrão renovado pela mesma eleição se adaptou à nova
conjuntura, assumindo uma postura conservadora pragmática e reforçando seu
papel como pilar de estabilidade. Passou a agir para limitar tanto as
prerrogativas da Presidência quanto do STF.
Tudo aponta para uma tendência em direção a
um novo equilíbrio sistêmico e ao afrouxamento da polarização para níveis
menores de radicalidade.
A Constituição
de 1988 foi concebida em um contexto progressista, em que havia
um consenso de que o país deveria se afastar das práticas autoritárias da
ditadura militar e se comprometer com um projeto de inclusão social e
liberdades públicas. Esse espírito se refletiu nas primeiras décadas de
democracia, em que o eixo ideológico predominante esteve à esquerda, sustentado
por uma Constituição com fortes valores social-democratas.
Entre os anos 1990 e 2010, o sistema político
se estabilizou em torno do chamado presidencialismo de coalizão, um arranjo em
que o presidente, mesmo minoritário no Congresso, usava seu vasto poder sobre o
Orçamento e a máquina governamental para construir maiorias legislativas e
garantir a governabilidade.
Esse modelo se consolidou a partir do Plano
Real, que gerou estabilidade econômica e legitimidade para Fernando Henrique
Cardoso (PSDB). Tanto ele quanto Lula e Dilma Rousseff, seus
sucessores, governaram formando coalizões com partidos mais conservadores que
se alinhavam pragmaticamente ao governo em troca de cargos e influência.
Era esse um presidencialismo forte ou
imperial, marcado pelo poder de agenda do chefe de Estado na definição de
políticas progressistas, voltadas para promover um ambiente de maior liberdade
política, civil e econômica, mas também maior igualdade social, racial e de
gênero.
No entanto, a partir dos anos 2010, o
consenso progressista começou a dar sinais de desgaste. O contexto político e
social havia mudado: a sociedade brasileira, transformada por décadas de
políticas sociais e de inclusão, se tornou mais complexa e polarizada. Em
paralelo, denúncias de corrupção e o colapso do modelo de presidencialismo
alimentaram uma crise de legitimidade.
As manifestações
de 2013 expressaram o descontentamento generalizado com a
classe política e marcaram o início de um período de grande instabilidade.
Bancado pela PGR (Procuradoria-Geral da República) e pelo STF, a
"revolução judiciarista" pautou a Operação
Lava Jato, derrubou Dilma Rousseff, quase derrubou Michel
Temer (MDB), além de prender e condenar dezenas de figuras do
establishment a título de purgá-lo da corrupção.
Esse processo abriu espaço para que o centrão
reagisse em busca de sobrevivência. Para alcançar esse fim, precisaria deixar
de ser apenas um grupo de apoio pragmático e passasse a atuar de forma mais
autônoma e ativa, buscando consolidar sua hegemonia.
Nesse contexto, o centrão se adaptou para
sobreviver e fortalecer sua influência. Até então, seus partidos haviam operado
pragmaticamente, compondo com presidentes de diversos espectros políticos.
Entretanto, após o impeachment de Dilma e com a ascensão de figuras mais
conservadoras, assumiu sua posição conservadora sem perder o pragmatismo,
perseguindo primazia sobre os demais Poderes.
Na impossibilidade de aprovar o
semipresidencialismo, esse processo culminou em uma nova forma de
presidencialismo de coalizão, agora fraco, menos centralizado na Presidência e
mais ancorado no Legislativo. Uma espécie de parlamentarismo bastardo.
Por meio de estratégias como o uso de emendas
parlamentares (como as emendas
Pix e o orçamento secreto), o centrão passou a controlar a
distribuição de recursos e fortalecer suas bases locais, garantindo seu domínio
sobre a política nacional, o que contribuiu para a vitória de seus candidatos
na última eleição municipal e fortaleceu sua influência. Essa apropriação do
Orçamento e da máquina pública se tornou um mecanismo de autossustentação,
tornando tais partidos cada vez mais independentes do presidente, seja ele de
direita ou de esquerda.
O resultado foi um conservadorismo inercial
que garante estabilidade ao sistema político ao custo de fazê-lo rodar muito
mais lentamente.
As ideologias passaram a ocupar um lugar mais
central na organização e na definição das identidades políticas do centrão. Seu
conservadorismo sempre existiu, mas estava adormecido pelo consenso
progressista. Findo este, saiu da incubadora.
Mas se trata de um conservadorismo moderado,
mais pragmático que doutrinário, voltado principalmente para a proteção dos
mecanismos de sua autorreprodução com pouca interferência do governo e do
Judiciário. Daí a defesa daquilo que eufemisticamente chamam de prerrogativas
do Congresso.
A crise de legitimidade vivida pela
democracia brasileira e, em paralelo, o avanço da
nova direita na década passada deram força política, em estilo
abertamente populista, a ideologias radicais que antes estavam à margem, como o
reacionarismo e o libertarianismo. A social-democracia identificada com o PT
entrou em crise.
No entanto, o pacto pragmático do liberalismo
democrático centrista com o conservadorismo tradicional da direita moderada tem
garantido que o sistema permaneça estável, coibindo o avanço de pautas
progressistas, ora decadentes, mas, também e principalmente, o avanço do
populismo autoritário.
Essa relação entre ideologia e pragmatismo se
revela na ambiguidade de líderes da direita do centrão, como Ciro
Nogueira (PP) e Valdemar
Costa Neto (PL). Querem o estoque eleitoral do populismo
radical, mas submetendo-o à disciplina partidária tradicional e, assim, podando
seus efeitos antissistêmicos.
Mesma ambiguidade visível em Tarcísio
de Freitas (Republicanos), que representa no governo de São
Paulo o impossível "bolsonarismo moderado", com que busca atrair
eleitores de centro-direita acenando periodicamente para o radicalismo. Na
centro-direita, Gilberto
Kassab (PSD) segura Tarcísio com a mão direita e Lula com a
esquerda, estabelecendo as alianças amplas que elegeram o
maior número de prefeitos neste ano.
A direita brasileira está consolidada, e seu
sucesso cria novos problemas. O maior reside na oposição entre moderados ou
sistêmicos, identificados, de um lado, com Kassab e Eduardo
Paes (PSD), e radicais antissistêmicos, como Bolsonaro e Pablo
Marçal (PRTB).
A liderança de Bolsonaro, inelegível e sem
expectativa de poder, está francamente decadente. Egoísta e inábil, o
ex-presidente confia sempre e unicamente na sua camarilha de bajuladores e
pretende submeter toda a direita ao seu objetivo particular de fugir da cadeia
por meio de uma anistia que reverta sua inelegibilidade ou lhe permita lançar à
Presidência um candidato subserviente.
Por essas e outras razões, com toda a sua
ambiguidade, a própria direita moderada centrônica o percebe como um estorvo e
não vê a hora de se livrar dele definitivamente. Prefere gente como Tarcísio
e Ronaldo
Caiado (União Brasil), este em rota de colisão com Bolsonaro.
A decadência de Bolsonaro se dá também no
campo da direita radical. Aparentemente, a apologia da tortura, da ditadura e
do golpe militar saíram de moda. Nesse contexto, a figura de Marçal emergiu
como um populista neoliberal, camaleão que busca capitalizar o sentimento
anti-establishment de gerações mais novas, mais preocupadas com enriquecimento
rápido e que veem a religião como terapêutica para problemas pessoais e
familiares.
Em termos eleitorais, Bolsonaro também se
engajou pessoalmente em campanhas municipais, não só contra a esquerda, mas
contra gente da própria direita, e saiu derrotado em quase todas. Muitas
igrejas evangélicas também já desinvestem do radicalismo, pregando a
despartidarização da religião ou mudando de lado.
Em outras palavras: a direita vai bem,
Bolsonaro vai mal. A direita populista, a despeito de sua força eleitoral e
histrionismo, continua longe de ameaçar os centrônicos. A eles interessa manter
a inelegibilidade de Bolsonaro, fingindo ajudá-lo a escapar quando, na verdade,
mais o aproximam do abismo. Mas também lhes interessa a inelegibilidade de
Marçal.
Ao mesmo tempo, é improvável que a própria
Justiça Eleitoral declare a inelegibilidade de Tarcísio pela declaração
que fez a respeito de Guilherme Boulos (PSOL) no dia do segundo turno.
Tarcísio pode dar suas "bolsonaradas" à vontade: o sistema o percebe
como um dos seus.
Já a esquerda, que historicamente liderou o
processo de redemocratização, enfrenta uma situação complexa. Com seu declínio
e a falta de renovação de suas lideranças, o PT perdeu o protagonismo e depende
cada vez mais da figura de Lula para se manter relevante.
Se Bolsonaro não consegue ser maior que a
direita, Lula consegue ser maior que a esquerda. Ele se reinventou como piloto
de uma frente democrática ou ampla e se comportou assim nas eleições, se
afastando o tanto quanto possível da imagem de partidário.
Em outras palavras: a esquerda vai mal, mas
Lula vai relativamente bem. Ao mesmo tempo que a esquerda se torna cada vez
mais "lulodependente", o presidente se vê obrigado a se mover cada
vez mais para o centro para preservar e aumentar seu arco de alianças. Enquanto
o governo vai se tornando cada vez menos de esquerda, a fissura entre os
socialistas se aprofunda. Alguns acham que falta pragmatismo, outros acham ser
preciso recuperar as bandeiras históricas do socialismo.
O retorno de
Donald Trump à Presidência dos EUA, um reacionário golpista,
condenado criminalmente e movido pelo desejo de vingança e de escapar da
cadeia, põe a democracia americana em uma posição frágil. Sua influência direta
sobre o Brasil, contudo, encontra limites importantes.
Primeiro, o Brasil não enfrenta uma crise de
decadência geopolítica ou de imigração para catalisar o tipo de ressentimento e
identidade nacionalista que Trump mobiliza.
Segundo, o sistema político brasileiro,
embora tenha falhas, possui mecanismos institucionais que oferecem resistência
a investidas autoritárias, como a independência do STF e um sistema
constitucional mais recente e adaptado às necessidades de uma sociedade
democrática.
O sistema bipartidário, que permite que todos
os setores conservadores se aglutinem em torno de um radical como Trump,
tampouco existe no Brasil. Bolsonaro não consegue ascendência nem sequer sobre
Valdemar Costa Neto. Além disso, o centrão não possui interesse em uma ruptura
autoritária que abale o equilíbrio de poder do qual depende para manter
influência e controle sobre o governo.
Assim, apesar de uma possível pressão da
internacional reacionária liderada por Trump e das tentativas de importar mais
uma vez sua retórica e seu messianismo, nada indica que ele abalará o atual
modelo de governabilidade de tendência conservadora, mas pragmática do Brasil.
Bolsonaro, que tentou sempre emular Trump, está cada vez mais isolado.
Da mesma forma, nenhuma das alternativas
conservadoras à Presidência se mostra disposta a romper o presidencialismo de
coalizão fraco. Aparentemente, querem todas ser apenas um Michel Temer com
votos. Nem a Justiça Eleitoral, nem o governo, nem o STF parecem dispostos a
anistiar Bolsonaro para que ele volte a se candidatar.
Nesse quadro, o que Trump poderá efetivamente
fazer de útil para Bolsonaro? Bolsonaro quer, claro, explorar em benefício de
sua anistia a tese delirante de que Trump mandará fuzileiros navais
prenderem Alexandre
de Moraes.
Trump estará ocupado redesenhando as
instituições e a sociedade norte-americana à sua feição. Está interessado em
reduzir a presença militar dos EUA no mundo, não em aumentá-la. Se precisar de
um bajulador sul-americano, já tem à mão um Milei para posar ao seu lado. Mais
provável são tuítes destemperados apoiados por Elon Musk ou
a concessão de asilo diplomático na calada da noite.
As eleições municipais de 2024, ao consolidar
o controle do centrão e do conservadorismo pragmático sobre a política local,
indicam que o Brasil está caminhando para uma nova configuração de poder. Esse
processo de normalização do sistema, que agora gira em torno da centro-direita,
sugere que a polarização política extrema dos últimos anos pode estar cedendo
lugar para uma moderação pragmática.
No entanto, essa normalização enfrenta
desafios, especialmente no que diz respeito à convivência com o STF, visto por
muitos como o último bastião de um sistema democrático e liberal. Há arestas
entre o tribunal e o centrão, decorrentes da tentativa de preservar o avanço
feito pelo Congresso sobre o Orçamento.
Sabe-se que, no quadro de fraqueza imposta ao
governo pelo "parlamentarismo bastardo", o governo também conta com a
maioria do STF como parceiro para restabelecer alguma paridade de armas. É o
"judiciarismo de coalizão", identificado principalmente com o
ministro Flávio
Dino.
Enfim, tudo indica uma tendência ao
reequilíbrio sistêmico em torno do centro-direita e um afrouxamento da
radicalização ideológica.
É cedo para discutir as eleições de 2026. Não
se sabe se Lula passará o bastão a Fernando
Haddad (PT) ou se será candidato à reeleição, opção que parece
cada vez mais provável. Nem se sabe para que lado penderia a centro-direita de
Kassab, apoiando um candidato como Tarcísio, mais seguro à reeleição em São
Paulo, ou Caiado. A reversão da inelegibilidade de Bolsonaro é remota, e Marçal
deve ser declarado inelegível pela falsidade assacada contra Boulos durante a
campanha em São Paulo.
Do ponto de vista sistêmico, porém, a
depender do resultado das eleições de 2026, saberemos se o sistema político
absorveu definitivamente, como parece, as tensões subversivas da direita
radical ou se sofrerá o ataque de um populista apoiado por cerca de um quarto
do eleitorado e, talvez, pela internacional reacionária.
*Professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Iesp-Uerj), editor da revista Insight Inteligência, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e pesquisador da Fundação Casa de Rui Barbosa
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