Yoshiaki Nakano
DEU NO VALOR ECONÔMICO
Até o momento, a crise financeira nos Estados Unidos e na Europa provocou uma contração econômica modesta, mas está entrando numa nova fase, dentro de um padrão clássico de recessão. A contração inicial, comandada pela queda na demanda de consumo, está se deslocando para ajuste significativo no emprego (e na folha de pessoal) e corte nos investimentos. Esta aceleração no corte de pessoal e salários implicará em novas quedas na demanda e deverá se estender por este ano. A forte aceleração na queda nos pedidos de bens de capital desde novembro deverá ter os mesmos efeitos. Assim, apesar da ação agressiva do Federal Reserve e do Banco Central Europeu, e da política fiscal expansionista adotada também do lado real da economia, o pior está por vir.
Profundo e rápido ajuste pelas empresas diante da queda na demanda poderia facilitar a posterior recuperação do crescimento, se a recessão atual fosse típica. Se a ação rápida e agressiva da política monetária fosse capaz de evitar o colapso do sistema financeiro, e a política fiscal fosse capaz de revitalizar a demanda agregada, as empresas estariam melhor preparadas para recuperar a produção, recontratar os trabalhadores e retomar os planos de investimento. Mas a atual recessão não é apenas "profunda e prolongada".
Paul Krugman, ganhador do último Prêmio Nobel de economia, vem sistematicamente chamando atenção para o fato de que podemos estar caindo num abismo econômico, e que se isso acontecer será muito difícil sair dele. Segundo Krugman, o pior de tudo é a possibilidade de que a economia americana se veja presa numa prolongada armadilha deflacionária. Isto é, estamos de novo com a economia em depressão, enfrentando problemas que caracterizaram a maior parte da economia mundial nos anos 30 e que o Japão enfrentou durante 15 anos, desde o início da década de 90. Citando Irving Fisher, ele lembra que a deflação, uma vez iniciada, tende a se autoalimentar, por isso pode durar muito e é difícil sair dela.
Mas é Richard C. Koo, economista-Chefe do Nomura Research Institute, o braço de pesquisa da Nomura Securities, que no seu recente livro "The Holy Grail of Macroeconomics Lessons from Japan´s Great Recession", (Singapura, John Wiley and Sons Asia, 2008) apresenta certamente a mais significativa e bem documentada análise com seu conceito de "balance sheet recession". Este conceito oferece um novo entendimento sobre os problemas que as economias americanas e europeia começam a enfrentar.
De fato, a crise financeira está atingindo a fase em que as as grandes dívidas assumidas pelas empresas na fase de euforia começam a vencer. Na zona do euro estas dívidas atingiram US$ 11 trilhões, cerca de 95% do PIB da região, e os empréstimos bancários despencaram 40% no fim de 2008. As empresas americanas não estão numa situação melhor. Num primeiro momento, o aumento da inadimplência deverá provocar novas ondas de choques que irradiarão pela economia global, e mais dívidas tóxicas desabarão sobre o sistema financeiro.
Mas o ponto central, para Koo, é que a crise financeira destruirá centenas de trilhões de dólares de ativos financeiros que foram criados durante a fase de longa expansão da economia global, que geraram grande "boom" de crédito e sustentavam uma inflação de preços de ativos financeiros e bolhas especulativas. A desalavancagem, a iliquidez dos mercados e a incerteza e aversão ao risco num processo de retroalimentação já provocaram uma brutal deflação de preços de ativos, as bolsas de valores perderam a metade de seu valor, e o mesmo aconteceu com as commodities e outros mercados. Esta brutal deflação de ativos terá um efeito devastador não só sobre o balanço dos bancos, mas também sobre o das empresas, com redução no patrimônio liquido. Muitas empresas ficarão com patrimônio líquido negativo. Neste quadro, a lógica que regerá as empresas será a lógica da recomposição do patrimônio, minimizando a sua dívida: redução do valor dos ativos forçando a redução dos passivos, num processo que se autoalimenta. É a versão da deflação de preços ativos em contrapartida à deflação de preços bens e serviços de Irving Fisher.
A lógica da expansão econômica e de crédito que imperava até meados de 2007 será substituída pela lógica da contração econômica e de ativos. Na expansão, as expectativas de elevados retornos dos investimentos produtivos estimulam o sistema financeiro a gerar ativos financeiros, dando-lhes liquidez imediata para a produção futura, e criam um ambiente de crédito barato que estimula novos investimentos, e assim por adiante. Nesta fase, os agentes econômicos expandem seus gastos sustentados pelo crédito e aumento do valor da riqueza financeira. Quando o ciclo se reverte, a contração econômica reduz os preços dos bens e serviços. Quando desencadeado por crises financeiras, os preços dos ativos despencam, com grandes perdas patrimoniais, arruinando o balanço das famílias e das empresas. Tanto as famílias como as empresas são obrigadas a pagar suas dívidas para não irem à falência. E a contração econômica será tão mais profunda e prolongada, quanto mais exagerada for a geração de crédito e inflação de ativos.
Numa recessão normal, a demanda de consumo que sustenta o nível de atividade e depende da renda gerada pelo emprego se contrai, mas se recupera em seguida. Numa grande contração provocada pela crise financeira, ativos são destruídos e dívidas precisam ser pagas, ou seja, é preciso poupar, subtraindo demanda de consumo, para recompor o patrimônio líquido. As famílias americanas que não só deixaram de poupar, como se endividaram para consumir mais e mais, sustentaram uma grande expansão econômica até 2007. Subitamente, desde lá até o final do ano passado, tiveram uma perda patrimonial estimada de mais US$ 5 trilhões. Além disso, os economistas estimam que a taxa de poupança das famílias deverá chegar a 4% a 5% do PIB.
Mesmo que não haja uma deflação de preços de bens e serviços, o colapso no preços dos ativos financeiros - a deflação de ativos - muda totalmente a lógica da ação econômica das empresas e dos bancos, que têm agora também que reduzir, a qualquer custo, as suas dívidas e recompor os seus patrimônios, para evitar a falência. As famílias aumentam a poupança, mas as empresas não tomam empréstimos para expandir seus investimentos - tomam apenas para pagar suas dívidas. Seus lucros, se houver, também são canalizados para reduzir seus passivos.
Neste quadro, a política monetária deixa de ter efeitos e, mesmo reduzindo a taxa de juros para zero, nem as famílias, nem as empresas, têm estímulo para se endividar, consumir ou investir. No desespero, os bancos centrais reduzem a taxa de juros. Nos Estados Unidos, o Fed já reduziu para 0% a 0,25%, mas a economia não responde, pois ninguém está disposto a se endividar e investir. No máximo substituem empréstimos com juros mais altos por mais baixos. É por isso que, mesmo com juros negativos, o mercado de títulos de empresas também paralisa.
Yoshiaki Nakano, ex-secretário da Fazenda do governo Mário Covas (SP), professor e diretor da Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas - FGV/EESP, escreve mensalmente às terças-feiras.
DEU NO VALOR ECONÔMICO
Até o momento, a crise financeira nos Estados Unidos e na Europa provocou uma contração econômica modesta, mas está entrando numa nova fase, dentro de um padrão clássico de recessão. A contração inicial, comandada pela queda na demanda de consumo, está se deslocando para ajuste significativo no emprego (e na folha de pessoal) e corte nos investimentos. Esta aceleração no corte de pessoal e salários implicará em novas quedas na demanda e deverá se estender por este ano. A forte aceleração na queda nos pedidos de bens de capital desde novembro deverá ter os mesmos efeitos. Assim, apesar da ação agressiva do Federal Reserve e do Banco Central Europeu, e da política fiscal expansionista adotada também do lado real da economia, o pior está por vir.
Profundo e rápido ajuste pelas empresas diante da queda na demanda poderia facilitar a posterior recuperação do crescimento, se a recessão atual fosse típica. Se a ação rápida e agressiva da política monetária fosse capaz de evitar o colapso do sistema financeiro, e a política fiscal fosse capaz de revitalizar a demanda agregada, as empresas estariam melhor preparadas para recuperar a produção, recontratar os trabalhadores e retomar os planos de investimento. Mas a atual recessão não é apenas "profunda e prolongada".
Paul Krugman, ganhador do último Prêmio Nobel de economia, vem sistematicamente chamando atenção para o fato de que podemos estar caindo num abismo econômico, e que se isso acontecer será muito difícil sair dele. Segundo Krugman, o pior de tudo é a possibilidade de que a economia americana se veja presa numa prolongada armadilha deflacionária. Isto é, estamos de novo com a economia em depressão, enfrentando problemas que caracterizaram a maior parte da economia mundial nos anos 30 e que o Japão enfrentou durante 15 anos, desde o início da década de 90. Citando Irving Fisher, ele lembra que a deflação, uma vez iniciada, tende a se autoalimentar, por isso pode durar muito e é difícil sair dela.
Mas é Richard C. Koo, economista-Chefe do Nomura Research Institute, o braço de pesquisa da Nomura Securities, que no seu recente livro "The Holy Grail of Macroeconomics Lessons from Japan´s Great Recession", (Singapura, John Wiley and Sons Asia, 2008) apresenta certamente a mais significativa e bem documentada análise com seu conceito de "balance sheet recession". Este conceito oferece um novo entendimento sobre os problemas que as economias americanas e europeia começam a enfrentar.
De fato, a crise financeira está atingindo a fase em que as as grandes dívidas assumidas pelas empresas na fase de euforia começam a vencer. Na zona do euro estas dívidas atingiram US$ 11 trilhões, cerca de 95% do PIB da região, e os empréstimos bancários despencaram 40% no fim de 2008. As empresas americanas não estão numa situação melhor. Num primeiro momento, o aumento da inadimplência deverá provocar novas ondas de choques que irradiarão pela economia global, e mais dívidas tóxicas desabarão sobre o sistema financeiro.
Mas o ponto central, para Koo, é que a crise financeira destruirá centenas de trilhões de dólares de ativos financeiros que foram criados durante a fase de longa expansão da economia global, que geraram grande "boom" de crédito e sustentavam uma inflação de preços de ativos financeiros e bolhas especulativas. A desalavancagem, a iliquidez dos mercados e a incerteza e aversão ao risco num processo de retroalimentação já provocaram uma brutal deflação de preços de ativos, as bolsas de valores perderam a metade de seu valor, e o mesmo aconteceu com as commodities e outros mercados. Esta brutal deflação de ativos terá um efeito devastador não só sobre o balanço dos bancos, mas também sobre o das empresas, com redução no patrimônio liquido. Muitas empresas ficarão com patrimônio líquido negativo. Neste quadro, a lógica que regerá as empresas será a lógica da recomposição do patrimônio, minimizando a sua dívida: redução do valor dos ativos forçando a redução dos passivos, num processo que se autoalimenta. É a versão da deflação de preços ativos em contrapartida à deflação de preços bens e serviços de Irving Fisher.
A lógica da expansão econômica e de crédito que imperava até meados de 2007 será substituída pela lógica da contração econômica e de ativos. Na expansão, as expectativas de elevados retornos dos investimentos produtivos estimulam o sistema financeiro a gerar ativos financeiros, dando-lhes liquidez imediata para a produção futura, e criam um ambiente de crédito barato que estimula novos investimentos, e assim por adiante. Nesta fase, os agentes econômicos expandem seus gastos sustentados pelo crédito e aumento do valor da riqueza financeira. Quando o ciclo se reverte, a contração econômica reduz os preços dos bens e serviços. Quando desencadeado por crises financeiras, os preços dos ativos despencam, com grandes perdas patrimoniais, arruinando o balanço das famílias e das empresas. Tanto as famílias como as empresas são obrigadas a pagar suas dívidas para não irem à falência. E a contração econômica será tão mais profunda e prolongada, quanto mais exagerada for a geração de crédito e inflação de ativos.
Numa recessão normal, a demanda de consumo que sustenta o nível de atividade e depende da renda gerada pelo emprego se contrai, mas se recupera em seguida. Numa grande contração provocada pela crise financeira, ativos são destruídos e dívidas precisam ser pagas, ou seja, é preciso poupar, subtraindo demanda de consumo, para recompor o patrimônio líquido. As famílias americanas que não só deixaram de poupar, como se endividaram para consumir mais e mais, sustentaram uma grande expansão econômica até 2007. Subitamente, desde lá até o final do ano passado, tiveram uma perda patrimonial estimada de mais US$ 5 trilhões. Além disso, os economistas estimam que a taxa de poupança das famílias deverá chegar a 4% a 5% do PIB.
Mesmo que não haja uma deflação de preços de bens e serviços, o colapso no preços dos ativos financeiros - a deflação de ativos - muda totalmente a lógica da ação econômica das empresas e dos bancos, que têm agora também que reduzir, a qualquer custo, as suas dívidas e recompor os seus patrimônios, para evitar a falência. As famílias aumentam a poupança, mas as empresas não tomam empréstimos para expandir seus investimentos - tomam apenas para pagar suas dívidas. Seus lucros, se houver, também são canalizados para reduzir seus passivos.
Neste quadro, a política monetária deixa de ter efeitos e, mesmo reduzindo a taxa de juros para zero, nem as famílias, nem as empresas, têm estímulo para se endividar, consumir ou investir. No desespero, os bancos centrais reduzem a taxa de juros. Nos Estados Unidos, o Fed já reduziu para 0% a 0,25%, mas a economia não responde, pois ninguém está disposto a se endividar e investir. No máximo substituem empréstimos com juros mais altos por mais baixos. É por isso que, mesmo com juros negativos, o mercado de títulos de empresas também paralisa.
Yoshiaki Nakano, ex-secretário da Fazenda do governo Mário Covas (SP), professor e diretor da Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas - FGV/EESP, escreve mensalmente às terças-feiras.
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