Editoriais
Eletrobras de muitos
Folha de S. Paulo
Em marco do plano de privatização, gigante
da energia deixa de ter controlador
Com a conclusão da oferta de
ações que diluirá a participação da União no capital da Eletrobras,
chega-se a um marco do longo processo de desestatização iniciado nos anos 1990.
A transferência ao setor privado da empresa responsável por cerca de um terço
da geração de energia no país abrirá nova etapa de investimentos no setor.
O processo de
venda significa que a União passa a deter cerca de 40% do
capital votante (e 36,9% do total), ante 68,6% até então. A oferta em mercado
poderá movimentar até R$ 33,7 bilhões ao preço de R$ 42 por ação, avaliando a
empresa em cerca de R$ 66 bilhões. A demanda total somou R$ 60 bilhões.
Além de investidores estrangeiros e institucionais domésticos, nessa quantia estão inclusos R$ 6 bilhões oriundos de contas do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) . Estima-se que 370 mil pessoas fizeram compras.
Doravante, a governança societária impedirá
que qualquer grupo, inclusive o governo, exerça poder de voto superior a 10%.
Na prática, a Eletrobras foi transformada
numa corporação pública, no sentido mais estrito do termo —com ações amplamente
distribuídas no mercado e gestão profissional escolhida em processos
transparentes. A União preserva prerrogativas especiais, como a de impedir
mudanças no estatuto que alterem essa condição.
A operação como um todo foi cercada de
controvérsias, a começar por infundadas objeções ideológicas. Não há, como
defendem os críticos, uma privatização do regime de águas. Ao contrário, a
prerrogativa regulatória permanece estatal e o governo continuará a definir
políticas públicas e parâmetros técnicos que norteiam todas as empresas
atuantes no setor.
Mesmo as exigências despropositadas
determinadas pelo Congresso, como a construção de usinas térmicas em locais
direcionados politicamente, não obscurecem os ganhos ao final.
Para a Eletrobras, abre-se um novo
capítulo. Historicamente usada para abrigar apaniguados políticos nas várias
subsidiárias e amarrada por ineficiências, a companha apresenta amplo espaço
para corte de custos e melhoria administrativa.
Amplia-se, além disso, a capacidade para
novos investimentos —e não será surpresa se a empresa recuperar parte da
participação na geração perdida nas últimas duas décadas justamente por causa
do esgotamento financeiro.
Trata-se da primeira venda importante neste
século de empresa diretamente controlada pelo Tesouro Nacional, o que não
significa que o processo de desestatização tenha ficado inerte no período.
Concessões à iniciativa privada, realizadas
por todos os governos, e alienação de subsidiárias das estatais têm contribuído
para a eficiência econômica, ainda que caminhem a passos lentos as reformas do
Estado brasileiro.
Ecos do Capitólio
Folha de S. Paulo
Comitê apura atos insuflados por Trump,
modelo de Bolsonaro em contestar eleição
Após quase um ano de apuração, com cerca de
800 prisões e mais de 1.000 entrevistas, começou nos EUA um procedimento
congressual com potencial de evento histórico na principal democracia do globo.
Na quinta (9) ocorreu a primeira audiência
pública do comitê da Câmara dos Representantes que investiga as circunstâncias
da invasão do
Capitólio, sede do Legislativo tomada de assalto por manifestantes
insatisfeitos com a derrota de Donald Trump em sua tentativa de reeleição em
2020.
Naquele 6 de janeiro de 2021, as hordas
haviam sido insufladas pelo então presidente a rejeitar a sessão do Congresso
que viria a validar a vitória de Joe Biden, ritual burocrático do processo
eleitoral.
O resultado foram as longas horas de horror
da invasão, com figuras grotescas ocupando salas e galerias do edifício,
encimadas por ao menos cinco mortes, algo inaudito na história norte-americana.
A culpa do republicano no episódio é
cristalina. Mas, ciente do mundo de disputas de versões da política, o comitê
buscou elaborar um acervo probatório robusto sobre o ocorrido, baseado em
investigação própria e de outros.
Com efeito, foi chamado de caça às bruxas
por Trump. Não há dúvidas de que, com 5 de 7 integrantes sendo do Partido
Democrata que se opõe ao ex-presidente, há viés na sua forma de divulgação.
Espera-se que o relatório a ser desfiado em
mais cinco sessões esteja impecável tecnicamente. Não irá convencer eleitores
do ex-mandatário, mas poderá estabelecer um alerta. Afinal, como disse o
presidente do comitê, o democrata Bennie Thompson, o perigo subsiste: "A
conspiração para frustrar a vontade do povo não acabou".
O processo não deixa de ecoar no Brasil,
atormentado pela cantilena golpista de seu presidente —nada por acaso um
apoiador de Trump. Jair Bolsonaro (PL) pode até considerar o ídolo
"passado", como disse antes de se encontrar com Biden na quinta (9),
mas sua prática é outra.
O desprezo pelo regramento democrático, o
roteiro de contestação prévia de resultados eleitorais desfavoráveis e a
incitação à balbúrdia institucional são elementos inerentes à conduta do
mandatário brasileiro.
A provável condenação do americano no comitê poderá levar a medidas judiciais. Cabíveis, riscam no chão uma linha que, com algum otimismo, pode servir de alerta para as intentonas do bolsonarismo.
Lula quer imprensa encabrestada
O Estado de S. Paulo
Candidato petista defende que veículos de comunicação não sejam livres para publicar o que bem entendem. A isso ele dá o nome de ‘democratização dos meios’
O PT é obcecado pela ideia de uma imprensa
encabrestada. O partido jamais lidou bem com a liberdade – assegurada pela
Constituição – que permitiu ao jornalismo profissional e independente revelar
ao País os muitos erros administrativos e os crimes cometidos por seus próceres
e apaniguados ao longo dos 14 anos em que esteve no poder. Se durante todo esse
tempo o PT não conseguiu moldar a imprensa à sua maneira, que fique claro que
não foi por convicção democrática, mas sim por falta de apoio na sociedade e no
Congresso. Fosse a imprensa “regulada” àquela época, talvez os brasileiros não
tivessem tomado conhecimento de esquemas como o mensalão e o petrolão, apenas
para citar dois grandes marcos da passagem do PT pela administração federal. Ao
menos não com a extensão e a riqueza de detalhes com que esses escândalos
ganharam a luz do dia.
A campanha eleitoral de 2022 trouxe o tema
novamente ao debate público. Em entrevista ao portal Metrópoles, no dia 8
passado, Lula da Silva, atual líder nas pesquisas de intenção de voto para a
Presidência da República, tornou a ameaçar o País com um projeto de “regulação
da mídia” caso vença a eleição em outubro. Todo mundo sabe muito bem do que se
trata quando o ex-presidente fala em “regulação da mídia”: um eufemismo pouco sutil
para a sujeição dos meios de comunicação ao tacão estatal.
“Ninguém quer censura”, disse Lula. “O que
a gente quer”, prosseguiu o petista, “é que os meios de comunicação sejam
efetivamente democratizados, que as pessoas possam ouvir a oposição, que tenha
sempre o outro lado falando. Não pode ser um meio de comunicação que fala só um
lado.”
É um tanto peculiar essa ideia que Lula faz
de “democratização” dos meios de comunicação. Ora, nos regimes democráticos as
empresas de comunicação são totalmente livres para decidir o que e como
publicar, e há múltiplos veículos de comunicação, que, a depender de seus
valores e interesses empresariais, abordam os fatos sob diferentes ângulos. A
escolha do “lado”, como disse Lula, que essas empresas decidem focalizar, tanto
em coberturas jornalísticas como em editoriais ou artigos de opinião, é uma
decisão legítima que diz respeito única e exclusivamente ao veículo e à sua
audiência, não ao governo de turno. Não é concebível, numa democracia, que um
veículo de comunicação tenha que tomar suas decisões editoriais não conforme os
padrões jornalísticos, e sim segundo um modelo estatal de “equilíbrio
editorial”.
Ademais, já há limites, éticos e legais
para o trabalho dos veículos de comunicação profissionais e independentes. Os
jornalistas profissionais são responsáveis pelo que publicam, e as empresas
jornalísticas podem ser contestadas na Justiça e ter de responder por eventuais
erros ou crimes contra a honra cometidos por seus funcionários. Logo, se Lula,
de fato, estivesse preocupado com uma “regulação da mídia que interesse à
sociedade”, nem deveria pugnar pela proposta. Os interesses da sociedade já são
resguardados pelas leis e pela Constituição. O que Lula quer é outra coisa.
Quer subjugar veículos para que deixem de publicar o que ele não quer que seja
publicado.
O petista ainda afirmou que as mídias
sociais digitais não podem “permitir que mentiras, inverdades, grosserias e
ofensas façam parte da cultura brasileira”. É legítima a cobrança por maior
responsabilização das chamadas big techs, mas Lula não é o mais indicado
para encampar essa agenda. Há quem não se lembre, mas foi o PT que alçou a
destruição de reputações por meio das redes sociais à categoria de arma
política. O 4.º Congresso do PT, em 2011, marcado por ataques à imprensa,
decidiu criar um núcleo de treinamento para a militância nas redes sociais, o
que ajudou a abrir esse bueiro do qual saíram extremistas que hoje atacam
adversários e turvam o debate público por meio de mentiras e distorções da
realidade.
No ideal de uma imprensa subserviente e
aduladora e na hostilidade que estimulam contra os jornalistas que ousam
publicar o que não lhes convém, Lula e o presidente Jair Bolsonaro são irmãos
siameses.
Bolsonaro investe no tumulto
O Estado de S. Paulo
O presidente aproveitou as manobras de seus prepostos no STF para reinvocar ameaças golpistas; por isso é preciso que o Judiciário o deixe falando sozinho
O Supremo Tribunal Federal (STF), através
da Segunda Turma, restabeleceu a cassação do deputado Fernando Francischini
(União Brasil – PR), determinada pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), por
divulgação de notícias falsas sobre o sistema eleitoral. A decisão consolida a
jurisprudência deixando uma mensagem inequívoca ao universo político: espalhar
desinformação com o intuito de semear a desconfiança sobre as eleições não será
tolerado e levará, conforme a lei, à cassação dos mandatos. Nem por isso os ministros
do STF Kassio Nunes Marques e André Mendonça deixaram de lograr seu intento:
lançar lenha na fogueira armada pelo presidente Jair Bolsonaro para tumultuar o
processo eleitoral.
Na semana passada, Marques feriu o
protocolo institucional ao derrubar monocraticamente, em vez de encaminhar ao
plenário do Supremo, a decisão colegiada do TSE em desfavor do citado deputado,
não por acaso bolsonarista.
Um mandado de segurança já estava em
julgamento em uma sessão extraordinária do pleno, quando o ministro André
Mendonça pediu vista. Paralelamente, Marques havia pautado o processo na
Segunda Turma, que afinal restaurou a decisão do TSE, por três votos contra os
dois – de Marques e Mendonça, ambos indicados por Bolsonaro.
A derrota era anunciada. Marques e Mendonça
só evitaram que fosse acachapante. Mas a senha foi passada ao presidente.
Bolsonaro usou um evento denominado “Brasil pela vida e pela família” como
palanque para vociferar contra a decisão, retomar ameaças golpistas, atacar o
STF e a imprensa, além de confessar o mesmo crime cometido por Francischini.
Francischini afirmou, nas eleições de 2018,
que as urnas não estariam aceitando votos para Bolsonaro. Nunca houve um mísero
indício disso além de um vídeo flagrantemente fraudulento. Mas, segundo Bolsonaro,
“esse deputado não espalhou fake news, porque o que ele falou na live eu também
falei”. É mais um exemplo do arbítrio lógico, ou melhor, da lógica do arbítrio
característica de Bolsonaro: se ele falou, não pode ser mentira, assim como ele
já disse que, se perder as eleições, elas não podem ser limpas.
Vale lembrar que a mesma Procuradoria-Geral
da República que recorreu da decisão de Marques classificou as calúnias do
presidente ao sistema eleitoral como “liberdade de expressão”.
No Dia Nacional da Liberdade de Imprensa,
Bolsonaro defendeu que a imprensa brasileira fosse fechada por ser “uma fábrica
de fake news” e voltou a invocar “centenas de fragilidades” nas urnas apontadas
pelas Forças Armadas. Não há qualquer evidência nem de uma coisa nem de outra,
mas importa o pretexto para ameaçar as eleições. “Eu sou o chefe das Forças
Armadas. Não faremos papel de idiotas. Eu tenho a obrigação de agir”, vociferou
o presidente.
Na verdade, tudo não passa de tática
eleitoral. Não sabendo nem querendo governar, Bolsonaro faz a única coisa que
sabe bem e que lhe garantiu votos em suas mais de três décadas na política:
confrontar. Vendo a sua corrida à reeleição fazer água, Bolsonaro busca juntar
suas tropas militantes e lança cortinas de fumaça para que o eleitorado esqueça
a inflação, a fome, a crise na educação e na saúde e a destruição do meio
ambiente.
Tentando provar a sua força, Bolsonaro só
comprova seu desespero; tentando conquistar popularidade, só amplia o seu
isolamento. As intenções de voto estão estagnadas e os índices de rejeição
crescem. As Forças Armadas e os presidentes da Câmara e do Senado já deram
sinais claros de que não embarcarão em aventuras golpistas.
Apesar dos desconfortos no Judiciário
fabricados por prepostos bolsonaristas, os tribunais vêm fazendo o seu
trabalho. Ainda assim, é preciso que os ministros redobrem a precaução para não
se deixar levar por provocações do presidente, que certamente ficarão mais
frequentes até o desfecho das eleições. A resposta do Judiciário deve ser dada
não em bate-bocas que só favorecem os truculentos, e sim em decisões serenas e
firmes, como esta que pôs um limite claro à desinformação. Bolsonaro deve ser
deixado falando sozinho.
O golpe de Trump
O Estado de S. Paulo
Comitê da Câmara que investiga a invasão do Capitólio por extremistas trumpistas dá ao caso o nome correto
O comitê da Câmara dos Representantes
(deputados) dos EUA que investiga a invasão do Capitólio (sede do Legislativo
americano) em 6 de janeiro de 2021 por uma multidão de enfurecidos seguidores
do então presidente Donald Trump deu ao episódio o nome correto: tratou-se de
uma tentativa de golpe.
Não se pode relativizar o que houve naquele
tenebroso episódio. É preciso que haja punição exemplar para os que, a pretexto
de defender a democracia, violentam justamente as instituições que a sustentam,
como foi o caso da turba de vândalos que, sob o comando incontestável de seu
líder Trump, inconformado com sua derrota eleitoral, tentou reverter na marra o
resultado das urnas.
As cenas de militantes pró-Trump
enfrentando a polícia e adentrando a sede do Congresso dos EUA, até o plenário,
no momento em que os congressistas se reuniam para confirmar a vitória de Joe
Biden, evidenciaram as ameaças que pairam sobre as instituições democráticas −
mesmo na maior potência econômica do planeta.
Nos EUA, a resposta dessas mesmas
instituições democráticas foi rápida. Horas após a invasão do Capitólio, já de
madrugada, os congressistas retornaram ao prédio para oficializar o resultado
das urnas. Confirmaram, assim, a maioria conquistada por Biden no colégio
eleitoral, sacramentando a derrota do presidente Trump, que buscava a
reeleição. Na semana seguinte, a Câmara dos EUA aprovou o impeachment de Trump,
acusado de incentivar a invasão do Capitólio. Um mês mais tarde, porém, com
Biden já devidamente no poder e Trump longe da Casa Branca, o Senado rejeitou o
pedido.
Na última quinta-feira, o comitê da Câmara
que investiga o ataque deu início a uma série de audiências públicas sobre o
caso. Formado por democratas e republicanos, o comitê apresentou vídeos e
depoimentos coletados ao longo de 11 meses de apuração. O material é vasto:
inclui mais de mil testemunhas, desde servidores de alto escalão da Casa Branca
e assessores da campanha eleitoral de Trump até familiares do ex-presidente,
como a filha mais velha, Ivanka, o genro Jared Kushner e o filho Donald Trump
Jr. O relatório final deverá ser divulgado em setembro e encaminhado ao
Departamento de Justiça dos EUA, que decidirá sobre eventuais indiciamentos.
As primeiras conclusões, entretanto, são
categóricas: o então presidente Trump é acusado de estar no centro de “uma
conspiração de várias etapas com o objetivo de derrubar o governo eleito”, nas
palavras do presidente do comitê, o democrata Bennie Thompson. Para a
republicana Liz Cheney, vice-presidente da comissão, Trump convocou e reuniu
uma multidão para “acender a chama deste ataque”. Ela declarou: “Donald Trump
se foi, mas sua desonra permanecerá”.
As declarações ganham ainda mais peso com o fato de que foram transmitidas ao vivo, no horário nobre da TV americana. O objetivo, óbvio, foi dar conhecimento ao maior número possível de americanos que sua democracia, malgrado as tentativas de Trump e de seus seguidores de arruiná-la, segue vigorosa. Talvez os extremistas continuem a acreditar em suas mirabolantes teorias e estejam dispostos a causar mais confusão, mas o fato é que o regime que eles tentam subverter está mostrando sua força.
Bolsonaro deveria manter diálogo com Joe
Biden
O Globo
Levando em conta a expectativa, até que foi
positiva a participação brasileira na Cúpula das Américas. O presidente Jair
Bolsonaro viajou para Los Angeles de má vontade, tamanho o ressentimento
acumulado com o americano Joe Biden, que derrotou seu aliado Donald Trump em
2020 (Bolsonaro foi um dos últimos a cumprimentar o vencedor). O encontro
bilateral com Biden na quinta-feira serviu para desanuviar o clima e
estabelecer o mínimo que se espera de antagonistas ideológicos que precisam
zelar pelo interesse de seus países: um convívio civilizado.
Depois de 35 minutos de conversa com Biden,
Bolsonaro demonstrou ter deixado para trás ao menos parte das restrições.
Considerou o encontro “maravilhoso” e, ao que parece, compreendeu a importância
de manter desobstruído o canal de comunicação com a Casa Branca. Em discurso
ontem, ele manteve uma sobriedade que tem sido incomum ultimamente.
Isso não significa que as desavenças tenham
sumido. Tome-se o exemplo da Amazônia. Ainda na campanha eleitoral, Biden
afirmara que, se eleito, destinaria US$ 20 bilhões para “o Brasil não queimar
mais a Amazônia”. No encontro com Bolsonaro, se referiu à necessidade de o
Brasil receber ajuda para conservar a floresta. Bolsonaro, ainda assombrado
pelo fantasma da “internacionalização” que apavora militares e nacionalistas, comentou
que “por vezes nos sentimos ameaçados na nossa soberania”. Não parece haver
avanço tangível nessas bases.
Um tema que tinha tudo para gerar celeuma é
o endosso de Bolsonaro às mentiras de Trump sobre o resultado da eleição de
2020, mantidas até hoje por seus correligionários (os Estados Unidos acompanham
com atenção as conclusões da comissão da Câmara que apontou Trump como mentor
da invasão do Capitólio). Mas a satisfação do presidente brasileiro sugere que
a questão não atravancou o diálogo.
Bolsonaro também foi comedido ao falar nas
urnas eletrônicas brasileiras. Limitou-se, antes de as portas se fecharem para
a conversa particular com Biden, a afirmar desejar eleições “limpas, confiáveis
e auditáveis”. Pouco depois afirmou que chegou ao governo pela democracia e
concluiu: “Tenho certeza de que, quando deixar, também será de forma
democrática”. É um compromisso que lhe deve ser cobrado sempre que retomar sua
retórica golpista.
Tudo caminhava para Bolsonaro nem
comparecer ao encontro de Los Angeles, que já não contaria com o mexicano
Andrés Manuel López Obrador, contrariado pelo veto dos Estados Unidos à
presença dos ditadores de Venezuela, Nicarágua e Cuba. Sem Brasil nem México,
os dois maiores países latino-americanos, a Cúpula de Biden naufragaria. Para
evitar o desastre, ele enviou seu assessor especial Christopher Dodd a
Brasília, que costurou o encontro bilateral.
O balanço positivo significa que a conversa
fluiu sem desentendimentos insuperáveis. Claro que Bolsonaro está longe de ter
vencido sua deficiência crônica no front externo. Sempre pesarão contra ele a
política ambiental desastrosa, o alinhamento incondicional a autocratas como
Trump ou o húngaro Viktor Orbán, a visita descabida a Vladimir Putin antes da
invasão da Ucrânia e até a tentativa ridícula de levar a campanha eleitoral
para a Flórida, com um passeio de motocicleta previsto para hoje. Mas foi
importante, quase no fim do governo, ter estreado na diplomacia como ela deve
ser exercida.
STJ tomou decisão certa ao limitar a
cobertura dos planos de saúde
O Globo
O Superior Tribunal de Justiça (STJ)
decidiu num caso de enorme repercussão que os planos de saúde não terão a
obrigação de cobrir exames e procedimentos não previstos no rol da Agência
Nacional de Saúde Suplementar (ANS), exceto quando não houver tratamento
similar na lista. A decisão levantou a previsível grita de grupos de defesa do
consumidor e especialistas em saúde, que viram nela a submissão da Justiça e da
ANS aos interesses e à ganância dos planos de saúde, cujos lucros são vistos
como abusivos diante do direito universal à saúde estabelecido na Constituição.
Os ataques reverberaram também porque a
clientela dos planos está atônita diante dos reajustes autorizados pela ANS
neste mês (15,5% em média). A oposição mais veemente veio de associações
ligadas a pacientes cujos tratamentos não estão previstos no rol da ANS, como
autistas ou portadores de certos tipos de câncer. É esperado que os
insatisfeitos levem o caso ao Supremo Tribunal Federal (STF).
Em que pese o drama das famílias que terão
mais dificuldade para obter tratamento, a decisão do STJ está correta.
Primeiro, por trazer clareza a um universo cinzento. Um estudo anterior à
pandemia verificou que, entre 2008 e 2017, as demandas relativas a saúde na
Justiça cresceram 130%. Entre 2015 e 2020, resultaram em mais de 2,5 milhões de
processos, segundo levantamento do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Há uma
indústria de advogados dedicados a processar os planos de saúde, uma vez
recusados tratamentos. É uma situação absolutamente insustentável e injusta
para os pacientes. Os planos são incentivados a negar procedimentos, porque
sabem que nem todos irão à Justiça, e só quem pode arcar com o custo dos
processos obtém acesso ao recomendado.
O segundo motivo para o acerto do STJ é
econômico. Ao estipular regras claras, em vez de deixar tudo ao alvitre do juiz
de ocasião, a decisão contribui para assegurar maior eficiência ao negócio dos
planos e, indiretamente, garantir melhores preços ao mercado (com a queda no
custo da judicialização). Evidentemente, a contrapartida é que haja mais afinco
da ANS na manutenção de um rol de procedimentos compatível com os melhores
tratamentos disponíveis. Em vez de se submeter aos desígnios dos planos, a
agência precisará ser rigorosa ao manter uma lista completa e exaustiva. Isso
será também do interesse das seguradoras, pois serão obrigadas a cobrir o que
não tiver similar nesse rol.
Zelar pelo direito à saúde é dever do Estado. Isso exige recursos abundantes — trata-se de um “direito positivo”, no jargão jurídico-filosófico. Embora a lei brasileira seja deficiente na atribuição desses recursos, o país dispõe de um sistema de saúde público universal e gratuito, o Sistema Único de Saúde (SUS), de qualidade irregular (há áreas de excelência internacional, enquanto o grosso da população é sujeito a condições precárias). Garantir a qualidade do SUS aliviaria a carga que recai sobre a população que busca saúde suplementar. É nisso que o governo deveria investir.
Um comentário:
O Estadão parece estar vivendo no mundo da fantasia ... Os diretores da ANS respondem a que interesses? São indicados por quem? Os juízes que julgam são comprados por quais corporações?
Postar um comentário