sábado, 10 de agosto de 2024

Luiz Gonzaga Belluzzo e Manfred Back - O cachorro abana o rabo

CartaCapital

A crise iniciada no Japão revela o caráter desestabilizador dos capitais inflados pelos derivativos locais

O artigo da terça-feira 6 na Folha de S.Paulo, do jornalista José Paulo Kupfer, teve a saudável ousadia de explicar o papel dos mercados futuros – derivativos – nas fortes flutuações do câmbio no Brasil.

Peço licença para discordar do refrão reproduzido pelo competente jornalista, “o rabo abana o cachorro”. Não se trata de o rabo abanar o cachorro. É o rabo do cachorrão-dólar que move o cachorrinho real.

Talvez possa ser conveniente designar a concentração das posições “compradas” na moeda de Tio Sam no mercado futuro de câmbio em Terra ­Brasilis como “fuga para dentro”. Correm para o dólar, operando em reais.

Na segunda-feira 5 de agosto, o mercado acordou com uma queda de 12% da Bolsa japonesa, o pânico nas praças financeiras espalhou-se cheio de dúvidas. Recessão americana ou Circuit Breaker mental?

Nas mentes menos evoluídas surgiram lembranças da crise subprime de 2008. Alguma semelhança? Já escrevemos ancorados na ousadia dialética que as crises financeiras são iguais em suas diferenças.

Na trapalhada da segunda-feira ocorreu uma desalavancagem brusca de operações de carry trade em ienes!  Não era pouca coisa. Ao longo do período de juros nominais negativos em ienes – informam as instituições de análise financeira – valia a pena endividar-se na moeda japonesa e deitar a grana em operações com taxa de juros mais atraentes ou perspectivas de ganhos mais parrudas. Os cálculos apontam um valor de 20 trilhões de dólares negociados ao longo dos anos sob a tentação do diferencial de juros.

Em uma operação de carry trade, toma-se emprestado dinheiro no país com taxa de juros baixa e aplica-se onde a taxa de juros for mais alta. Essa é a operação tradicional, procura-se ganhar na arbitragem de taxas de juro.  Em bom português, diziam nossos avós, trata-se de apostar na diferença. Com iene fraco e taxas nominais e reais negativas por quase dez anos, era como bater em morto, captar dinheiro em ienes com 3% ao ano e procurar investir no resto do mundo a taxas reais positivas.

O dinheiro barato a 3% ao ano no Japão, aplicado a qualquer ativo que renda pelo menos o dobro, rende 100%, não é uma maravilha? Mas, se a taxa sobe no Império do Sol Nascente, o diferencial cai, e aí é um salve-se quem puder!

Trilhões de dólares se espalharam pelo mundo financeiro com essas operações de alavancagem. E a ideia de que o futuro repete o passado, que nada vai mudar, traz como consequência a expansão do volume dessas operações. Elas expandem-se exponencialmente movidas por um efeito-manada, “ganho fácil”!

Quem está fora quer entrar, quem está dentro não quer sair! As operações nos mercados futuros e de opções ateiam gasolina ao fogo nos períodos de alta e, na baixa, jogam mais água do que o necessário na fervura.

“O aumento do iene alimentou ­especulações sobre se isso poderia marcar o fim do popular chamado carry ­trade – em que um investidor toma emprestado em uma moeda com baixas taxas de juro, como o iene, e reinveste os lucros em uma moeda com uma taxa de retorno mais alta (CNBC).”

Bastou um movimento do Banco Central japonês de aumentar a taxa de juros e valorizar a sua moeda, para o diferencial do carry trade encolher, e aí todo mundo quer sair, ninguém quer entrar! Um efeito manada de desalavancagem agressiva! Moral da história, correção de ativos financeiros ao redor do mundo. Desconfiamos que, no período de carry trade apetitoso, muitas operações saíram do tédio das posições papai-mamãe tradicionais e partiram para posições mais excitantes, troca-troca de taxa de juros japonesa, com criptomoedas, ações e derivativos!

“Primeiramente, o agressivo Banco do Japão causou uma implosão do carry trade em uma base de curto prazo. Também tivemos dados ruins na manufatura dos EUA e alguns subindicadores de emprego que assustaram os mercados”, disse Cedric Chehab, consultor-chefe do banco BMI ao Street Signs Asia da CNBC na sexta-feira.

No Brasil, muitos analistas e economistas estão espantados porque a autoridade monetária não fez intervenções no mercado de câmbio.

O BC não interveio porque não há uma fuga clássica de capitais, não foram abaladas as reservas

Atenção, galera: não há uma fuga clássica de capitais, não foram abaladas as reservas brasileiras em moeda estrangeira. A novidade, nem tão nova, são 78 bilhões de reais em posições de dólar futuro no mercado de derivativos, hedgeados diariamente em reais! Uma fuga para dentro!

Nas últimas duas décadas, não escassearam provas da natureza instabilizadora dos movimentos de capitais privados, incapazes de se comportar de acordo com as prescrições dos manuais de economia internacional. Quando abraçam as moedas frágeis dos países emergentes, os capitais apaixonados exageram nas juras de amor. As moedas se valorizam e reduzem a competitividade das exportações e estimulam perigosas incursões no mundo das operações com derivativos. Com o mesmo fervor, os capitais abusam do desprezo no momento em que decidem abandonar a presa. Por isso causam estragos na autoestima da vítima, que se entrega aos desesperos das crises cambial e financeira.

Depois dos anos 70 do século passado, a reconfiguração institucional da finança capitalista acirrou a concorrência entre os bancos e demais instituições na atração da clientela e aprisionou as empresas nas estratégias financeiras mais ousadas. Os gestores de portfólios – bancos de investimento, fundos mútuos e fundos de pensão – trataram de atrair os investidores e vencer a corrida pelo melhor desempenho. Os administradores de carteiras abriram espaço para operações com derivativos. Lastreados em ativos de maior risco, os derivativos passaram a governar os balanços das instituições a partir de estratégias mais ousadas.

A criatividade dos mercados concentrou-se, sobretudo, nas tentativas de reduzir os riscos de mercado, isto é, proteger-se contra variações abruptas dos preços dos ativos e, portanto, minimizar as perdas de rendimento ou de capital.

Os chamados derivativos são considerados instrumentos de repartição de risco. Dizem os sabidos dos mercados financeiros que sua existência sob forma padronizada, em mercados específicos, amplia as possibilidades de proteção dos agentes. Mas, como é óbvio, não eliminaram o risco, mas agregaram a possibilidade de flutuações mais intensas na precificação dos ativos. Os instrumentos transacionados nos mercados de futuros ou de opções não podem neutralizar o chamado risco sistêmico, quando irrompe uma flutuação generalizada e não antecipada nos preços dos ativos subjacentes. •

Publicado na edição n° 1323 de CartaCapital, em 14 de agosto de 2024.

Um comentário:

Daniel disse...

Excelente!