O Globo
Reino Unido recebe muitos imigrantes e isso
gera um incômodo enorme
A desinformação é um problema real. Muitas
vezes, porém, é utilizada para não olhar para problemas sociais difíceis,
fazendo parecer que a principal causa deles é a difusão de mentiras.
Há dez dias o Reino Unido assiste a protestos anti-imigração cada vez mais violentos em resposta a um ataque à faca contra crianças na cidade de Southport, norte da Inglaterra. No dia 29 de julho, um adolescente de 17 anos invadiu uma oficina de dança e ioga para crianças e esfaqueou 11 crianças e dois adultos, matando três meninas. O crime bárbaro, que teve como alvo um grupo de meninas de 6 a 11 anos, chocou o país. O agressor foi imediatamente preso pela polícia, ainda na cena do crime, e sua identidade não foi revelada em respeito às leis que garantem o anonimato de menores acusados de crimes.
Logo após o ataque, perfis de extrema direita
começaram a dizer que o agressor seria um imigrante muçulmano. Na noite do
próprio dia 29, uma manifestação em frente a uma mesquita, convocada por grupos
de extrema direita, feriu 39 policiais. Nos dias seguintes, protestos violentos
se espalharam por todo o Reino Unido.
Publicações anônimas nas mídias sociais
afirmavam que o agressor se chamava Ali Al-Shakti e tinha chegado ao Reino
Unido num barco em 2023. Segundo levantamento da Agência Reuters, postagens
dizendo que o agressor era um imigrante ou alguém que buscava asilo tiveram 16
milhões de visualizações nas mídias sociais. Outro levantamento, de um
professor na Universidade Hamad Bin Khalifa, de Doha, encontrou 27 milhões de
visualizações de publicações afirmando que o agressor era muçulmano, imigrante,
refugiado ou estrangeiro. Influenciadores e líderes de grupos de extrema
direita amplificaram os rumores.
Após quatro dias de protestos, o juiz do caso
decidiu, em nome do interesse público, revelar a identidade do agressor. Não é
nem muçulmano nem imigrante. É um adolescente britânico, filho de pais
ruandenses, de família cristã. Não está claro até o momento o motivo do ataque.
A revelação da identidade do agressor não
conteve os protestos. Eles continuaram nos dias seguintes e ganharam em
amplitude e violência. Mais de 400 pessoas foram presas, e há dezenas de
feridos. Nos últimos dias, contraprotestos convocados por grupos antirracistas
e pró-imigrantes começaram a acontecer, em muitos casos com maior adesão do que
os atos convocados pela extrema direita. A onda de manifestações já é
considerada a maior dos últimos dez anos.
A ênfase do discurso do governo e da imprensa
na atuação de grupos de extrema direita clandestinos e na desinformação de que
o autor seria um imigrante ilegal muçulmano sugere que a raiz dos protestos é
um logro — que a população britânica foi maliciosamente enganada e induzida a
se manifestar.
Não há dúvidas de que, efetivamente, houve
difusão de mentiras e uma campanha orquestrada. Mas, se a desinformação nas
mídias sociais e a militância clandestina de grupos neonazistas ajudam a
explicar como a situação se inflamou, elas não devem ser vistas como os únicos
ou mesmo os principais motivos. A causa de fundo é que o Reino Unido recebe
muitos imigrantes — por motivos econômicos e por refúgio e asilo — e isso gera
um incômodo enorme que, apenas depois, é explorado de maneira oportunista por
esses grupos maliciosos.
Uma pesquisa do instituto YouGov — feita alguns dias
depois da revelação da identidade do autor do atentado — mostrou que, embora
haja grande rejeição aos atos violentos que se seguiram, 42% dos britânicos
acham que as manifestações são em alguma medida justificadas, e 58% têm
simpatia por aqueles que protestaram “pacificamente”.
Governo e imprensa podem atribuir os
protestos à desinformação e à insídia dos grupos neonazistas, mas, ao fazê-lo,
deixam de olhar para a raiz da questão. O Reino Unido tem um enorme problema de
imigração. Dezesseis por cento dos seus habitantes — um em cada seis — nasceram
em outro país. A assimilação de uma massa de imigrantes nessa escala é um
enorme desafio, cultural e de políticas públicas. E a imigração está ligada a
grandes desigualdades regionais e à ampliação de crises humanitárias pelo
mundo. Fingir que o problema está com a desinformação, com grupelhos de extrema
direita ou com as mídias sociais não ajuda a encontrar uma solução.
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