O primeiro caso foi imediatamente tratado por dezenas de portais como sendo "o ataque de um islamista ocorrido num bairro de judeus". O homicida, um australiano, foi abatido por uma policial que tentou impedi-lo.
No segundo, o delinquente foi preso pela polícia. Como a missa estava sendo transmitida online, além de policiais o esfaqueamento levou cerca de duas mil pessoas para o redor da igreja. No confronto, vários carros da polícia foram danificados e alguns agentes foram feridos, já que os presentes queriam executar ali mesmo o esfaqueador. Defendido pela polícia, ele ainda aguarda julgamento.
Facadas mais recentes – e mais notáveis ainda – aconteceram há poucos dias, na Inglaterra. Na segunda-feira passada, 30 de julho, na cidade turística de Southport, um rapaz de 17 anos matou 3 meninas, de 4, 7 e 9 anos, num evento de dança infantil, deixando outras 8 feridas.
Antes mesmo que a polícia revelasse a identidade do assassino, segundo o inglês Marc Owen Jones, um analista de desinformação online, houve "pelo menos 27 milhões de visitas ou de postagens no X declarando ou considerando que o atacante foi um muçulmano, um imigrante, um refugiado ou um estangeiro" (@marcowensjones).
Mas entre muitos, um dos maiores divulgadores do esfaqueamento foi o inglês Andrew Tate – que aguarda julgamento na România, acusado de estupro e de tráfico humano. Tate postou no X para seus 10 milhões de seguidores que "um imigrante ilegal chegou de barco há um mês atrás e decidiu esfaquear crianças" (@Cobratate). Em seguida postou uma foto do rosto de um homem negro com os dizeres: "Este é o homem de Cardiff que assassinou as crianças. Recém chegado em um barco". E concluiu: "Um monstro demoníaco de 17 anos".
De fato, confirmou a polícia, o rapaz tinha 17 anos e era negro. Mas nunca chegou de barco pois nasceu em Cardiff, na Inglaterra, filho de pais africanos, vindos de Ruanda. O rosto na postagem de Tate não é o do rapaz (a pessoa que vi na foto, e no meu entender, tem em torno de uns 40 anos ou mais). A "notícia" postada por Tate foi de imediato adotada e expandida por Dan Wooden e Lawrence Fox, dois comentaristas recentemente demitidos da GB News inglesa por divulgarem informações falsas.
A reviravolta da civilidade
O próximo portal no X a embarcar nessa onda foi a Europe Invasion. Ali foi postada e acessada 7 milhões de vezes a versão de que "o atacante é suspeito de ser um imigrante muçulmano". A frase é ilustrada por uma imagem criada por inteligência artificial que mostra um menino de uns 3 anos, correndo. Ele corre, sendo seguido por 4 homens adultos, vestidos como orientais, um deles erguendo uma espada próxima à cabeça da criança.
Chegou-se mesmo a inventar um nome para o rapaz: Ali-All-Shakati foi o nome dado por uma negacionista da mudança climática e extremista anti-COVID lockdown na Inglaterra (@artemisfornow). O nome foi adotado e divulgado por um tal Channel3Now News, um canal anônimo no Youtube. A velocidade e o alcance dos meios digitais nos levaram ao resultado esperado: no mesmo dia, e nos dias seguintes, em pelo menos 12 grandes e médias cidades inglesas, aglomerações de centenas e mihares de pessoas vieram para as ruas. Atacaram, no mesmo dia 30, duas mesquitas em Southport. E em outras cidades, algumas acomodações onde os governos locais acomodam refugiados políticos e imigrantes, todos aguardando sua regularização no país.
A polícia interveio de imediato para conter os ataques mas foi recebida com um nível de violência quase nunca visto – e muito menos esperado! – na Inglaterra. Latas de lixo, tijolos e outros objetos foram jogados contra os policiais e vários de seus veículos foram incendiados ou seriamente danificados.
Segundo a BBC inglesa, o nome verdadeiro do assassino é Axel Rudakubana. A polícia também apurou que ele é membro de uma modesta família cristã. Revelou ainda que o jovem já havia sido diagnosticado com "uma severa desordem dentro do espectro autista". Segundo a mesma nota da BBC de Londres "ele andava se negando a sair de casa e a se comunicar com os demais membros da família, já por um certo período de tempo". Preso, vai ser indiciado esta semana.
Caberia aqui aquele já cansativo clichê: até quando as redes sociais irão continuar semeando mentiras ou fomentando violências – neste caso, a racial – sem que seus donos sejam responsabilizados? Cinco dias depois das facadas e seu desfecho, em 4 de agosto Elon Musk postou uma frase, querendo dar a entender que a imigração em massa e as fronteiras abertas causaram os motins: "guerra civil é inevitável". Frase curta, como rezava a cartilha do antigo Twitter.
Ao correr da semana que hoje se encerra, segundo a ABC australiana, 6.500 policiais foram mobilizados e muitos foram colocados próximo a 100 agências ou firmas legais que processam imigrantes. Muitas lojas e todas as mesquitas também foram fechadas em cidades como Bristol, Oxford, Liverpool e Birmingham. No entanto, em vez de apenas bandos de "right-wing thugs" – como a eles se referiu o Primeiro-Ministro – a polícia passou a encontrar nessas mesmas áreas centenas de milhares de manifestantes pacíficos, com cartazes e dizeres contra os grupos violentos anti-imigração.
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