O que dizem as ruas – Editorial | O Estado de S. Paulo
O ano de 2019 foi marcado por grandes protestos em diversos países da América Latina. Governos caíram ou se viram obrigados a fazer concessões para não balançar, tamanha a pressão vinda das ruas. Cada país enfrentou sua crise particular, motivada por questões locais, mas é possível, na maioria dos casos, observar um padrão comum: o descontentamento de uma classe média que se considera esquecida ou menosprezada pelo Estado que ela paga para manter.
Nada disso começou em 2019. Recorde-se que governos da América Latina vêm sendo derrubados em meio a tumultos nas ruas desde os anos 2000 - como esquecer do então presidente argentino Fernando De La Rúa fugindo de helicóptero da Casa Rosada para não ser alcançado pela turba enfurecida em meio ao desastre econômico do país?
Portanto, há pelo menos duas décadas o continente demonstra, aqui e ali, mal-estar com a estagnação econômica que condena à mediocridade - quando não à pobreza - grande parte da população. E tem feito pouca ou nenhuma diferença se o governo é de esquerda ou de direita: a sensação dos eleitores em geral é que, em qualquer dos casos, as promessas de desenvolvimento e de prosperidade só se cumprem para os que já estão no topo da pirâmide.
Não há dúvida de que se vive melhor hoje, em qualquer país deste continente, do que há meio século. Mas a formidável riqueza proporcionada pelas novas formas de produção derivadas da revolução digital ainda em curso tem se concentrado nas mãos de poucos investidores globais, enquanto à maioria das pessoas comuns resta adaptar-se o mais rápido possível ou condenar-se ao subemprego e à falta de perspectiva.
Nesse processo, os governos não somente têm sido lentos para encontrar meios de reduzir um pouco o crescente fosso socioeconômico, como também, em alguns casos, contribuem para ampliar esse abismo - por exemplo, ao manterem um sistema tributário regressivo e privilegiarem empresas com subsídios e renúncia fiscal, enquanto privam cada vez mais os trabalhadores de direitos em nome de um estímulo à geração de empregos que jamais se concretizou na amplitude desejada.
Mesmo governos de esquerda, supostamente dotados de sensibilidade social e comprometidos com a busca de meios para promover uma melhor distribuição de renda, fracassaram absolutamente no enfrentamento dessa longa crise. Em 2013, ao completar uma década no poder, o PT experimentou a fúria das ruas, onde a classe média, indignada, exigia serviços públicos de qualidade - única forma de garantir padrão de vida decente para a maioria da população. O governo petista na ocasião reagiu como sempre: preferiu o populismo assistencialista às reformas estruturais capazes de devolver ao Estado sua capacidade de investimento e de prestação de serviços.
Foi o bastante para que o mau humor dos eleitores se transformasse em surras no Congresso, com o impeachment da presidente Dilma Rousseff, e nas urnas, com a vitória do grande antípoda do PT, Jair Bolsonaro. Este, por sua vez, elegeu-se com um discurso revolucionário, em que luzia a promessa de uma renovação absoluta da política, desacreditada por décadas de corrupção e incompetência de grande parte dos que nela fizeram carreira.
Faz sentido que tal promessa tenha seduzido quase 58 milhões de brasileiros na eleição presidencial do ano passado. Não é de hoje que a maioria dos eleitores se desencantou com a política, vista não como o lugar onde opiniões distintas se conjugam na direção do bem comum, mas sim como a zona cinzenta onde os privilegiados articulam a manutenção de seus privilégios.
Contudo, nenhum governo será bem-sucedido na hercúlea tarefa de devolver a milhões de cidadãos brasileiros a esperança de dias melhores se não tiver coragem de realizar reformas impopulares, as únicas capazes de ampliar a produtividade no País e, assim, acelerar o crescimento sustentável da economia - com geração de empregos, melhores condições de vida para todos e, principalmente, a perspectiva de um futuro menos sombrio. Prestar atenção ao que reclamam as ruas é essencial numa democracia; responder a essas demandas com demagogia, contudo, é apenas irresponsabilidade.
Continuidade – Editorial | Folha de S. Paulo
Ajustes econômicos de orientação liberal, iniciados há 5 anos, avançam em 2019
Quem observar a evolução de medidas e indicadores econômicos, sem se ater em demasia à alternância de governos, perceberá que este 2019 fez parte de um processo de ajustes e reformas em andamento há cinco anos —com intensidade e taxas de sucesso variáveis.
Desde o desfecho das eleições presidenciais de 2014, com efeito, a agenda mantém os objetivos de conter a despesa pública, normalizar inflação e juros, eliminar subsídios ao setor privado e reduzir a intervenção estatal nos negócios.
Decerto que o liberalismo radical do atual ministro Paulo Guedes destoa da vocação dirigista da ex-presidente Dilma Rousseff (PT). Entretanto é a necessidade que dita a pauta, como se viu na reforma da Previdência —retomada por Dilma, proposta por Michel Temer (MDB), repaginada e enfim aprovada sob Jair Bolsonaro.
Nesse sentido, pode-se considerar satisfatório o progresso geral obtido neste ano, entre altos e baixos e a despeito dos ruídos políticos provocados pelo governo.
Não há motivo para entusiasmo, todavia, tratando-se de um país que ainda não se recuperou do impacto da brutal recessão de 2014-16, que marcou os passos iniciais do ajuste econômico. Desde então, o Produto Interno Bruto nacional rasteja na casa de 1% ao ano.
Nos últimos meses deste 2019, ao menos, houve melhora de expectativas de empresas e famílias, o que contribui para a queda gradual do desemprego, de 11,2% no trimestre encerrado em novembro. Trabalha-se agora com projeções de expansão do PIB acima de 2% no ano prestes a começar.
Do lado positivo devem ser elencadas ainda o controle da inflação e a queda dos juros básicos para o patamar mais baixo já documentado no país. A perspectiva de controle das despesas com aposentadorias e encargos da dívida afasta com algum grau de segurança o risco de insolvência do Estado.
O apoio e protagonismo do Congresso se mostraram essenciais para superar a resistência às mudanças nas regras das aposentadorias. A reforma robusta conseguiu atender aos objetivos essenciais de redução de pagamentos e justiça social, embora manchada pela preservação de privilégios militares.
Resta que as mudanças cheguem aos estados e municípios, mas felizmente há governadores e prefeitos tomando a frente nesse processo.
O novo cenário dos juros, por sua vez, parece consistente e promissor. Para tanto contribuiu decisivamente a inscrição de um teto para o gasto federal na Constituição, iniciativa do governo de Temer que deu maior previsibilidade ao ajuste orçamentário e à trajetória da dívida governamental.
Se mantida por tempo suficiente, a Selic em níveis civilizados poderá alterar a dinâmica da economia, favorecendo investimentos. Cumpre fazer avançarem medidas para a redução das taxas bancárias, com aumento da competição.
Tenha-se claro que tão cedo o gasto do governo não será capaz de dar impulso à atividade, o que faz do setor privado o motor quase solitário do PIB. Tal circunstância confere urgência ainda maior e providências destinadas ao aumento da eficiência e da produtividade.
Nesse ponto, Guedes e sua equipe deixaram a desejar. As intenções de abertura comercial, por exemplo, se mantêm mais no plano da retórica que da prática. Do mesmo modo, as privatizações não chegam perto das metas anunciadas.
Perdeu-se tempo precioso, ademais, nos estudos da reforma tributária com a obsessão de recriar a CPMF, uma bobagem política e econômica pelo visto ainda não abandonada em definitivo.
Por fim, uma profusão de propostas de emendas constitucionais e medidas provisórias, algumas delas de relevância menor ou mérito duvidoso, sugere falta de foco após o desfecho das mais urgentes mudanças previdenciárias.
Esta Folha endossa, há muito, os princípios de uma agenda liberalizante —a busca de um mercado aberto à competição, com regras estáveis, compreensíveis e, tanto quanto possível, comuns a todos.
Tais condições devem se fazer acompanhar de um Estado que não promova favores e privilégios e, sem perder de vista as restrições orçamentárias, seja capaz de tributar com justiça e combater a pobreza e a desigualdade.
São objetivos que transcendem o mero controle da inflação ou das contas públicas, por essenciais que estes sejam. Governos e legislaturas de diferentes orientações proporcionaram avanços nessa direção, ainda que lentos e nem sempre coerentes. Cumpre perseverar.
Projetos contra a seca consomem bilhões e nunca terminam – Editorial | O Globo
Falta de planejamento e desencontro entre órgãos estão entre motivos do atraso
Oito em cada dez desastres naturais ocorridos no Brasil nas últimas duas décadas são decorrentes de estiagens, secas, enxurradas e inundações, de acordo com dados da Agência Nacional de Águas. Entre as áreas mais críticas está o semiárido do Nordeste, território vulnerável, afetado por longas estiagens.
Para atenuar o problema, há mais de duas décadas o país iniciou um conjunto de cinco grandes obras hídricas: Integração do Rio São Francisco, o Canal Adutor do Sertão Alagoano, a Adutora do Agreste, o Canal Adutor Vertente Litorânea e o Cinturão das Águas do Ceará.
Esses projetos já consumiram cerca de R$ 25 bilhões. No entanto, permanecem inacabados. Caso exemplar é o do Canal Adutor do Sertão, com extensão de 250 km pela zona mais árida de Alagoas. O planejamento começou há 28 anos, a contratação do primeiro lote de serviços (trecho de 45 km) completou um quarto de século, e a obra continua distante da conclusão.
Nesse conjunto de empreendimentos tem-se um resumo das incongruências do Estado brasileiro na política de segurança hídrica.
As soluções e atenuantes possíveis não estão disponíveis por desencontros — numa qualificação suave — da miríade de órgãos públicos com atribuições relevantes na segurança hídrica.
Dinheiro existe e tem sido alocado no orçamento. O problema, conforme diagnóstico do Tribunal de Contas da União a partir de duas centenas de auditorias no setor, é a inexistência de planejamento com base em normas técnicas, identificação clara das principais carências hídricas por região e imposição de critérios objetivos tanto na seleção quanto na prioridade para execução das obras públicas.
Exemplo: o Ministério da Integração é legalmente o principal formulador do Plano Nacional de Segurança Hídrica, ferramenta de orientação dos investimentos públicos setoriais. Porém, o processo de elaboração desse plano tem sido conduzido de fato, e integralmente, pela Agência Nacional de Águas.
O Tribunal de Contas arguiu o ministério sobre o histórico de sua participação na formulação do planejamento de segurança hídrica. Não houve resposta. A uma outra questão, sobre a sua real participação operacional, o ministério limitou-se a informar: “Sobre planos operacionais também não foram encontrados documentos formalmente instituídos para esse fim.”
Sem planejamento adequado, procedimentos institucionais eficientes e integração efetiva entre órgãos públicos, sobram desperdícios de dinheiro em empreendimentos públicos que, embora sejam essenciais à sobrevivência de milhões de brasileiros, atravessam décadas sem sair do papel. Isso não impede, é claro, o uso das obras inacabadas para “inaugurações”, sobretudo nas temporadas eleitorais.
Governo ainda deve resposta sobre vazamento de óleo na costa do país – Editorial | O Globo
Falta de estrutura para prevenir e combater desastres desse tipo ficou evidente
Um mar de dúvidas ainda cerca o vazamento de óleo que atingiu praias do Nordeste e do Sudeste, no maior desastre ambiental já registrado na costa brasileira. Passados quatro meses do aparecimento das primeiras manchas, especula-se muito e sabe-se pouco sobre a origem do problema. O que se pode dizer é que, com exceção dos milhares de voluntários que fizeram mutirões para limpar as areias, por vezes pondo em risco a própria saúde, devido ao perigo de contaminação, pouco ficou de positivo desse episódio.
Na verdade, a costa brasileira foi vítima de dois desastres, um ambiental e outro traduzido na inércia governamental, agravada por uma sequência de falhas, que vão desde a detecção do problema até a mitigação dos danos, passando pela descoordenação entre os órgãos e a falta de um plano de contingência. As primeiras manchas teriam surgido em fins de agosto, no litoral da Paraíba. Desde então, atingiram todos os nove estados do Nordeste e dois do Sudeste (Espírito Santo e Rio de Janeiro). Segundo o Ibama, mais de 800 localidades foram afetadas, e aí incluem-se praias paradisíacas, santuários ecológicos, áreas de manguezal e balneários que têm no turismo uma de suas principais atividades econômicas.
O aparecimento das manchas de óleo, parecidas com piche, foi fartamente noticiado pela imprensa. Mas o governo despertou tarde para o problema. Somente no dia 5 de outubro, mais de um mês depois, o presidente Jair Bolsonaro determinou a criação de uma força-tarefa envolvendo Marinha, Ibama, Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e Polícia Federal para tratar do assunto.
Assistiu-se a um desfile de versões sobre as causas do derramamento. Numa delas, um navio fantasma com petróleo da Venezuela seria o responsável pelo desastre. Numa outra, o produto teria vazado de um navio alemão que naufragou em 1944 na costa do Recife. Na que parecia mais plausível, o responsável seria o petroleiro Bouboulina, de bandeira grega, cuja empresa chegou a ser notificada, e negou. A hipótese começou a perder força quando se descobriram imagens de satélite que mostravam manchas escuras antes da passagem do Bouboulina. Suspeita-se ainda que o óleo tenha vazado em abril, no mar da África, chegando ao Brasil em setembro.
À medida que as manchas vão se esvanecendo, quase não se fala mais no assunto. Em breve, terá sido esquecido, até porque o país tem outras demandas. Mas o governo continua devendo uma resposta sobre o que aconteceu, quando, onde e por que ocorreu. A vulnerabilidade da costa brasileira a acidentes desse tipo ficou evidente. E as ações do governo estiveram sempre à deriva. Isso certamente será lembrado.
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