- O Estado de S.Paulo
Ao longo do ano, o mercado cantou “só quero saber do que pode dar certo”. Mas há de admitir que muito tempo se perdeu
O otimista rejubila-se com a reforma da Previdência enfim aprovada pelo Congresso Nacional. Também aponta a inflação sob controle, os mais baixos juros e a retomada econômica que, tímida, dá o ar da graça. É melhor ser alegre que ser triste. E é necessário justificar apostas (frustradas), feitas após a eleição. Ao longo do ano, o mercado cantou “só quero saber do que pode dar certo”. Mas há de admitir que muito tempo se perdeu.
Os mais rigorosos sabem que o ano poderia ter sido melhor. Rejubila-se o otimista porque o ano foi bom somente por não ter sido pior. Para um primeiro ano de governo, o presidente Jair Bolsonaro desperdiçou a lua de mel já na noite de núpcias: nos discursos de posse, amarrou-se ao mastro do sectarismo e ao gueto eleitoral. Não atinou para a obrigação de ser “presidente de todos”, foi estreito. Abusou do personalismo, desprezou a impessoalidade republicana; transformou a família no centro do governo. Não percebeu que deixara de ser deputado do baixo clero, da pauta de costumes, da crítica kitsch ao socialismo; da política externa incapaz de diferenciar interesses de ideologias.
De fato, Bolsonaro prometeu – e tem entregue – uma nova forma de fazer política: a não política, que troca o diálogo pela truculência. Quase nada construiu. Ganhou fama no planeta soando arrogante; isolou o País do continente; colocou em risco relações com a China, os árabes, a maioria da Europa. Agarrou-se a Donald Trump com paixão e indisfarçada submissão – política e estética. Na ciência, basicamente, retrocedeu ao terraplanismo; no meio ambiente, o descaso e o estímulo às piores práticas bateram recordes diários de constrangimento.
Se é verdade que rompeu com os vícios do presidencialismo de coalizão, é notório que restou sem coalizão alguma no Congresso Nacional, sequer com partido político. Inaugurou o “presidencialismo em transe”, que ao mesmo tempo implica em vertigem e alteração de consciência, como também parece ser um caminho sinuoso para algures.
Sorte sua ter podido contar com Rodrigo Maia na presidência da Câmara e na persistência de uma pauta positiva; não um tipo Eduardo Cunha. Pura sorte. É possível que o presidente eleito acredite que os 57 milhões de votos que recebeu no segundo turno da eleição o tornam mais legítimo que deputados e senadores. Negou-se a articular; blefou com a relação direta com o povo, que diz representar – e que não saiu às ruas.
O Congresso não piscou: ignorando os acessos dos bonapartistas do bolsonarismo, vem consolidando o sistema de freios e contrapesos possível. É inaudito e estruturalmente positivo, embora não vá aí qualquer sentido estratégico: o fortalecimento do Parlamento corresponde mais à fragilidade da liderança do Executivo do que retrata aprimoramento institucional.
De volta à economia: o presidente enfatiza nada compreender a respeito, o que é fato. “É ‘qüestão’ do Paulo Guedes”, como diz. Seria um sinal de liberdade e autonomia de seu ministro, livre para tocar a agenda reformista, de ajustes das finanças públicas. Mas a “carta branca” é, porém, mais complexa: trata-se de um lavar de mãos do presidente; o desresponsabilizar-se de ônus e insucessos. De fato, a economia não está no foco de Jair Bolsonaro.
Mas tampouco Guedes parece preparado a conduzi-la com a habilidade política necessária. Foram inúmeros os atropelos, sinais contraditórios, declarações infelizes; os desencontros com a democracia e com o Congresso. Também aí há sorte enorme em contar com Rodrigo Maia. E com as imposições próprias das circunstâncias: os imperativos que fizeram a reforma da Previdência, o corte dos juros; a baixa inflação, resultante de uma economia anêmica. Em 2019, o Congresso salvou o governo de si próprio.
Difícil dizer o que esperar de 2020: nos últimos dias, o noticiário tornou a ferver. O presidente e sua família estão acuados; o bolsonarismo movimenta-se desordenado, entre o embaraçoso e o patético das plateias nas portas dos palácios. A emoção estará ainda mais presente, sobretudo em ano eleitoral, como será o caso. O ambiente volátil, disputas nas bases municipais; a luta pelo território e pelas máquinas que pode reforçar conflitos.
Choques no seio da direita e no interior da esquerda serão comuns, assim como o embate entre estas. À falta de um centro, a polarização é inevitável.
Com o calendário apertado, deve-se esperar menos produtividade do Congresso. O fortalecimento da liderança do presidente da República tampouco pode ser projetado. E há também no horizonte a delicada sucessão das presidências da Câmara e do Senado, o que já é sussurrado nos corredores. Equação complexa, dada a importância que as disposições pessoais de Maia e Alcolumbre adquiriram. Sucedê-los será um risco, mantê-los ao arrepio da Constituição tampouco é solução. Além da insegurança jurídica, há fila no Centrão. A impressão mais forte é que 2020 será 2019, segunda temporada; a sequência do mesmo thriller alucinante. Sem virtù, o País depende da fortuna.
* Carlos Melo é cientista político e professor do Insper
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